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RELAÇOES DE INTERCAMBIO ENTRE BRASIL, URUGUAI E ARGENTINA...
3. A viagem de 1945 e o contexto da Escola Nacional de Educaçao Física e Desportos.
Fundada em 1939, é a partir de meados da década de 40 que se pode perceber importantes mudanças no interior da ENEFD. Findado o regime de exceçao de Getúlio Vargas, a Escola começa a se rearticular e substituir sua outrora preocupaçao fundamental com a formaçao de um profissional adequado aos padroes de cidadania do Estado Novo, por uma notável pretensao de embasamento científico maior e de ocupaçao do espaço nacional de Escola-padrao - privilégio garantido pelo decreto de fundaçao 6 - responsável por direcionar, desenvolver e uniformizar a Educaçao Física no país 7 .

Nesse contexto, paulatinamente surgem novas correlaçoes de força e novas proposiçoes. O auge desse processo se dá com a ascensao à direçao do grupo dos médicos, mas sem sombra de dúvidas a direçao do capitao Antônio Pereira Lira (professor da cadeira de Metodologia da Educaçao Física) foi deveras marcante como transiçao e lançou as bases de algumas modificaçoes que seriam operacionalizadas pelos médicos no futuro 8 .

A 'Viagem de estudos ao Uruguai e a Argentina', logo, surgiu a partir de duas necessidades básicas que se apresentavam naquele momento: a) havia um movimento para reestruturar a ENEFD, que passava pela modificaçao da denominaçao dos cursos oferecidos, pela mudança de denominaçao e inclusao de disciplinas, por alteraçoes substanciais no Regimento Interno e, muito importante, pela modificaçao do tempo do curso principal de dois para três anos 9 ; b) um grupo de professores brasileiros buscava desenvolver um Método Nacional de Educaçao Física; ou melhor, a adequaçao de métodos internacionais conhecidos à realidade do povo e da sociedade brasileira.

Assim, com financiamento do Ministério da Educaçao e da Saúde, os professores Antônio Pereira Lira e Alfredo Colombo foram verificar mais profundamente como andava o desenvolvimento e quais eram as peculiaridades da Educaçao Física no Uruguai e na Argentina, pois havia uma apreensao geral, inclusive devido aos já constantes contatos, de que nesses países seria possível encontrar uma prática mais organizada; em um estágio mais avançado.

Parece que a apreensao que os conduziu nao estava de completo equivocada. Nenhuma suposta rivalidade, nem o sentimento de 'orgulho nacional', que andava em alta naquele momento, estimulado pelas açoes do Estado Novo, foram suficientes para impedir que os professores assumissem a constataçao de que, tanto no que se refere à formaçao profissional, quanto entre a populaçao como um todo, a Educaçao Física 10 estava sensivelmente mais desenvolvida no Uruguai e na Argentina:

"...sob o ponto de vista técnico, jamais realizamos viagem mais proveitosa que esta última, pois pelas nossas observaçoes, concluímos que, em certos aspectos da Educaçao Física geral, os platinos estao, de fato, mais adiantados do que nós" (LIRA, 1945a, p. 104).
Recebidos de maneira amável e calorosa pelos dirigentes dos órgaos responsáveis pela Educaçao Física naqueles países 11 , Lira e Colombo dedicaram vários dias a conhecer o máximo que fosse possível e a colher informaçoes que fossem úteis para a Educaçao Física brasileira. É importante destacar que o contato nao se limitou aos dirigentes. Colombo e Lira trocaram experiências com muitos professores, tanto dos colégios e academias, quanto dos Institutos de Educaçao Física (responsáveis pela formaçao profissional); conheceram diversas instalaçoes; assistiram, participaram e até mesmo ministraram algumas aulas.

Mas o que pode ter significado esta viagem para a ENEFD e para a Educaçao Física brasileira?

4. Significados do intercâmbio para a ENEFD e para a Educaçao Física brasileira.
Naquele contexto na ENEFD, onde começava a fervilhar o desejo de mudanças, a Viagem de Estudos foi de grande importância por acrescentar novas perspectivas e por ratificar as necessidades já identificadas previamente. Algumas dessas perspectivas nao passaram de sonhos ou iniciativas embrionárias. Mas outras, em momentos e de maneiras diferentes, se operacionalizaram e foram de grande importância para a Escola.

Por exemplo, Colombo e Lira retornaram convencidos de que a ENEFD deveria funcionar em regime de Internato, tal qual na Argentina. Esta seria, segundo eles, a única maneira de garantir a formaçao integral do futuro professor que teria a primordial funçao de forjar cidadaos. Na verdade, o depoimento dos professores nos leva a crer que a Educaçao Física na Argentina e no Uruguai tinha uma estrutura bastante influenciada pelas Instituiçoes militares, até mesmo mais do que no Brasil 12 .

As mudanças propostas diretamente ligadas a aspectos da vida na caserna, como o regime de internato, foram, contudo, freadas pela própria mudança no contexto da sociedade e da ENEFD. Logo os médicos assumiriam a direçao e os rumos de conduçao da Escola, mudando significativamente o sentido das açoes. A partir de entao, a 'ciência' passou a ser a palavra-chave que impregnava as proposiçoes.

Outras constataçoes geraram propostas que obtiveram êxito maior. Por exemplo, se percebeu que na Argentina a formaçao profissional contava com disciplinas ligadas a sociologia aplicada, recreaçao e jogos, canto coral, danças regionais (para as mulheres) e debuxo (desenho esquematizado). Naquele mesmo ano foram observadas iniciativas para de alguma forma encaminhar tais assuntos na formaçao profissional brasileira.

Debuxo nunca chegou a ser efetivamente introduzido na ENEFD. Canto coral foi bastante estimulado, até mesmo com a participaçao de Heitor Vila-Lobos, mas nao como disciplina e sim como atividade extra. Sociologia aplicada somente veio a ser considerada mais profundamente na segunda metade da década de 50. Danças regionais foram plenamente incorporadas pela cadeira de Rítmica 13 .

Já as preocupaçoes com a recreaçao e jogos merecem destaque, pois realmente foram significativas e paulatinamente foram ganhando espaço no interior da ENEFD. Pode-se até mesmo dizer que a Escola foi uma das grandes responsáveis pela relaçao histórica que existe entre o professor de Educaçao Física e as atividades de recreaçao/lazer no Brasil. Muitas foram as iniciativas ligadas a preocupaçoes com a capacitaçao do professor de Educaçao Física para atuar no referido campo, como palestras, cursos de extensao e cursos de especializaçao 14 .

Outro fato significativo a ser considerado foi o estímulo ao aumento do tempo da formaçao profissional de dois para três anos. A Escola já vinha pleiteando isso há algum tempo. Lira já tinha até mesmo enviado correspondências oficiais a Getúlio Vargas, solicitando tal mudança 15 . Ao verificar que na Argentina e no Uruguai a formaçao era realizada em três anos, Lira renovou suas forças e encontrou um exemplo próximo para referendar suas argumentaçoes. Poucos anos depois, quando Lira já nao era mais professor da Escola, essa reivindicaçao seria atendida.

Também, curiosamente, a Viagem de Estudos pode ter conduzido a uma nova postura para com o Diretório Acadêmico, já que na Argentina este órgao (conhecido como departamento de Educaçao Física) era bastante privilegiado, trabalhava em conjunto com os professores e tinha várias funçoes, como garantir o funcionamento das bibliotecas e a organizaçao de atividades extra-curriculares. Alfredo Colombo chega a afirmar:

"Isso tudo nos convenceu ainda mais da necessidade de prestigiar os Diretórios Acadêmicos, prevendo no horário, dias para as suas reunioes, que orientadas a exemplo do que ocorre na Argentina sao tao ou mais importantes que as aulas"(1946, p.24).
Para o movimento estudantil em Educaçao Física, certamente foi um marco introdutório da mudança de funçao de uma entidade que ainda era pouco significativa, mas que futuramente seria de grande importância para os rumos da Escola 16 .

Mas no meu entender, a grande influência da Viagem de Estudos foi o questionamento da utilizaçao quase que exclusiva do Método Francês na realidade brasileira. Ao chegarem aos referidos países, os professores se surpreenderam como a atividade física fazia parte da vida daqueles povos 17 e como os professores nao se prendiam somente a um método. Lá percebem que além do Método Francês, aliás pouco utilizado, eram utilizados os métodos Sueco e Dinamarquês, além da Ginástica Acrobática, segundo Lira a grande e eficaz novidade mundial naquele momento(1945a) 18 .

A partir desta constataçao, os professores começam a questionar e criticar o Brasil pela febre excessiva na utilizaçao do Método Francês. Com certeza nao foi a primeira vez que no Brasil tal Método fora questionado, mas tais críticas foram de grande importância por terem surgido no interior de uma Escola que era responsável por imprimir unanimidade e divulgar referenciais teóricos a serem seguidos. Futuramente, diversas e crescentes resistências ao Método Francês poderiam ser observadas.

Mais ainda, Colombo e Lira percebem que o Brasil ainda usava em excesso o Método Francês por nao estar acompanhando pari-passu o desenvolvimento da Educaçao Física mundial. Nao posso afirmar categoricamente, nem posso destinar responsabilidade exclusiva a tal fato, mas creio que há grande possibilidade disto ter influenciado nas preocupaçoes futuras de promoçao de intercâmbios com países europeus, que muitas vezes significaram a presença no Brasil de grandes nomes da Educaçao Física mundial.

É importante observar que, a despeito do avanço da Educaçao Física naqueles países, a pesquisa na Educaçao Física brasileira parecia estar mais avançada. Isto pode indicar uma tradiçao de pesquisa bem anterior do que nós imaginamos e denunciar que nossa Educaçao Física, desde as teses nas Faculdades de Medicina do século XIX, carrega uma peculiar 'vocaçao para a ciência', embora isto nao possa ser observado de forma global e homogênea no decorrer da história 19 .

5. A continuidade do Intercâmbio.
As iniciativas de intercâmbio ainda continuariam a ocorrer. Por exemplo, em 1947, quando a professora Maria Jacy Vaz (Metodologia da Educaçao Física e Desportos) e o professor Oswaldo Ferreira Costa (Desportos Aquáticos e Náuticos) participaram da III Conferência de Professores de Educaçao Física, realizada em Buenos Aires.

Na ocasiao, a professora Vaz aponta a excelente possibilidade de contato com professores argentinos que recém-chegados da Europa (Suécia, Dinamarca, entre outros países) trouxeram novidades da Educaçao Física no mundo. Tais informaçoes dificilmente chegavam ao Brasil.

Afirma ainda Vaz:

"...bem reconhecemos que as reunioes periódicas de educadores e técnicos, sejam quais forem os seus resultados imediatos, constituem iniciativas de grande alcance, para cuja justificaçao bastaria o fato de realizarem a aproximaçao dos homens empenhados numa obra comum e lhes darem melhores oportunidades para o estudo, novos pontos de vista na apreciaçao dos problemas da educaçao" (1948, p. 96).
Naquela Conferência, a professora ficou responsável por apresentar o Regulamento Nº 7, que até entao uniformizava o Método Francês como indicado para o Brasil. O seu depoimento é denunciador de mudanças já em andamento no interior da ENEFD:
"Tivemos, entao, oportunidade de desfazer a impressao de que éramos ortodoxos seguidores do mesmo (Método Francês), mostrando que (...) muito já havíamos evoluído..." (ibid., p. 98).
Enfim, algum avanço já era observável dois anos depois da Viagem de 1945, mas Vaz ainda lembra:
"Nós que pretendemos conhecer bastante bem o nível cultural (...) do professor de Educaçao Física brasileiro, é com real pezar que confessamos que o consideramos aquém daquele que verificamos entre nossos colegas argentinos" (id., p. 99).
Assim, a autora declara que:
"Reconhecemos que teria sido elemento de excepcional valia (...) o intercâmbio de idéias e de pontos de vista (...) Isto teria constituído, para nós, um apoio nao só técnico como até mesmo moral" (id., p. 99) 20 .
O professor Inezil Penna Marinho também esteve entre os que mais procuraram incentivar relaçoes de intercâmbio entre os países latino-americanos. Em 1947, tivera a oportunidade de viajar proferindo conferências por 7 países da América do Sul, a partir de convites dos governos locais e com recursos do governo Brasileiro. Ao voltar, frequentemente passa a preconizar a busca do estabelecimento de relaçoes mais freqüentes. Como diretor-geral da Revista Brasileira de Educaçao Física e Desportos (RBEF) 21 , passou a abrir espaços cada vez maiores para artigos de professores de outros países da América Latina:
"... A Revista Brasileira de Educaçao Física ampliou a sua esfera de açao, ultrapassando as nossas fronteiras, já trazendo notícias e colaboraçao de todos os países americanos, já levando informaçoes a cada um dos países da América" (MARINHO, 1947, p. 5).
Com isso, a RBEF começa a receber artigos e publicar sobre as especificidades da Educaçao Física no Uruguai, Argentina, Bolívia, Chile, entre outros. Até mesmo sessoes fixas foram estabelecidas para as notícias de países da América do Sul. Provavelmente, tais açoes nao se deram somente no sentido 'altruístico' de promover a uniao entre os povos latino-americanos, mas também porque significava a ampliaçao de mercado para a circulaçao da revista.

De qualquer forma, no final da década de 40, parece bastante claro que as relaçoes de intercâmbio eram observáveis e efetivas:

"A Educaçao Física se tem constituído excelente veículo de Panamericanismo, proporcionando a realizaçao de um programa que efetivamente muito vem contribuindo para maior aproximaçao entre os povos do novo continente" (ibid., p. 5) 22 .
Enfim, para a ENEFD, a Viagem de Estudos de 1945 foi na época um forte argumento para os professores que pleiteavam mudanças conseguirem impor sua visao, inclusive entre os professores conservadores (palavras de Lira) da ENEFD. Isso pode ocorrer devido as condiçoes do momento na Educaçao Física brasileira, que influenciada pelo Panamericanismo, buscava estabelecer contatos com os povos vizinhos da América Latina. A Viagem de Estudos de 1945, de alguma forma, também ajudou a concretizar as bases de um intercâmbio que já existira desde 1941 e desde os Congressos Panamericanos. Intercâmbio que nos dias de hoje nao mais pode ser identificável.

6. Uma breve conclusao... uma livre reflexao... uma proposta.
A conclusao para esse trabalho poderia ser bastante clara e óbvia. Aquela Viagem de Estudos, fato pouco conhecido na memória da Educaçao Física brasileira, parece ter tido significativa influência nos rumos da ENEFD, seja ratificando antigas propostas, seja dando origem a novas. Para a Educaçao Física brasileira como um todo, além dos importantes futuros reflexos da influência da ENEFD, significou simultaneamente a conseqüência de um momento onde a busca de intercâmbio era notável e a ratificaçao de tal necessidade.

Quero aproveitar, entretanto, este momento final para correr o risco de uma livre reflexao a partir de alguns indicadores do texto.

A despeito do intercâmbio ter se estabelecido naquele momento às custas das idéias de Panamericanismo, nao se pode negar que muitos foram os ganhos advindos desta relaçao. Assim como naquele momento histórico, penso que existam boas possibilidades de crescimento para os países envolvidos no estabelecimento de iniciativas estruturadas de intercâmbio. Obviamente, isto será determinado pela maneira e pelas condiçoes que o intercâmbio seja estabelecido; pelo projeto e pela visao de mundo subjacente.

Nao saberia dizer se hoje a Educaçao Física do Uruguai e da Argentina estao 'mais desenvolvidas' do que a brasileira. E penso que isso pouco importa. Mais do que uma presumível diferença no 'grau de desenvolvimento', devemos vislumbrar o que pode estar por trás do estabelecimento de um contato maior entre esses países. Importante é que temos muitos problemas em comum, advindos de nossa situaçao de latino-americanos, de sul-americanos, de países de terceiro mundo, de povos que passam pelo mesmo processo de exploraçao e dominaçao.

É possível perceber que entre os muitos pesquisadores estrangeiros que recebemos nos últimos anos, poucos vieram da Argentina e do Uruguai. Será que nesses dois países nao temos pesquisadores interessantes? Será que somente os países europeus podem ter bons pesquisadores? Ao tomar tal procedimento, estamos a também nos desvalorizar e a manter nossa mentalidade de povo colonizado, que valoriza tudo que vem da língua inglesa/francesa e faz questao de manter uma rivalidade, que já nao mais se justifica, com países que apresentam problemas bastante similares ao nosso.

Assim, penso que seja a hora de estabelecermos profundamente contatos entre os pesquisadores desses três países e outros da América Latina. Contatos que devem extrapolar o encontro ocasional e individual, devendo significar um esforço de valorizaçao de conhecimento profundo mútuo e do estabelecimento de açoes em conjunto.

Afirmou Alfredo Colombo, no seu comentário final sobre a Viagem de Estudos:

"Além desse intercâmbio pessoal ora iniciado é grande o desejo dos professores argentinos e uruguaios de manter pelo menos uma correspondência postal (...) Essa ansiedade manifesta-se também entre os estudantes (...) o que confirma a nossa opiniao de que nada melhor para a aproximaçao dos povos do que esse conhecimento mútuo, ainda mais entre nós que trabalhamos para a realizaçao de um fim em comum - a educaçao do homem americano" (op. cit., p. 30).
O contato pessoal e a troca de correspondências já foram iniciados mais periodicamente pelos recursos das listas de discussao na internet 23 . Cabe-nos agora entabular açoes para a aproximaçao dos povos e a realizaçao do fim em comum apontado já em 1946 por Colombo: a educaçao do homem americano. Obviamente nao exatamente no sentido que o professor apontou naquele momento. Mas para que essa educaçao possa significar nossa contribuiçao para um ideal maior: a libertaçao do povo latino-americano.

7. Referências Bibliográficas.


Lecturas: Educación Física y Deportes. Año 2, Nº 5. Buenos Aires. Junio 1997
http://www.efdeportes.com