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A construção da identidade nacional na imprensa desportiva portuguesa:
análise do discurso jornalístico durante o Euro 2000 de futebol
Rui Gomes e Marisa Freitas

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 48 - Mayo de 2002

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    A «Selecção de todos» é também a selecção do jornal. A tabela seguinte indica-nos o número de páginas dedicadas ao Europeu: ocupando 23.4% do número total de páginas do jornal, a maior parte deste espaço - 59.9% - é consagrado à selecção nacional e o restante a outras selecção e a outros assuntos. Esta tabela regista bem a discrepância existente entre as páginas referentes à selecção e as páginas referentes a outras selecções, sendo a primeira praticamente o dobro da segunda. Embora o evento seja determinado pela globalização do futebol, a construção da notícia é local, fornecendo-lhe um estatuto de referência nacional.

Tabela 1 - Distribuição do número de páginas da temática e respectiva
referência à selecção nacional, a outras selecções e a outros asuntos

    A comparação a partir do critério número de notícias não é tão esmagadora mas é ainda assim significativa: 46,3% das notícias foram dedicados à selecção nacional e apenas 30% às outras selecções.

Tabela 2 - Nº total de notícias tratadas e não tratadas do Euro 2000

    A análise destas duas tabelas permite-nos concluir que a grande maioria das notícias são dedicadas à selecção nacional. Esta atribuição quantitativa de importância não é inocente e apesar de passar despercebida, porque concordante com o que o auditório espera do jornal, exerce uma forte influência sobre o leitor. Os media dispõem de um importante papel ideológico no processo de construção do evento, por força do ângulo interpretativo que escolhe, especialmente quando, pelas sua práticas profissionais, pretendem ser os lídimos representantes das expectativas e da linguagem do público a que se dirige. Ao reforçar o que consideram ser os conhecimentos partilhados pelo auditório formam a base da reciprocidade entre produtores e leitores no espaço público. Deste modo, o leitor lê muito mais acerca da sua selecção, e ainda que pretenda não se centrar nesse assunto, é sobre ele que mais se fala, o que aumenta fortemente as probabilidades de ser influenciado pelos media, relativamente às normas, ideias e valores da sua identidade nacional em detrimento de outros significados possíveis.

    O acontecimento relatado, o acontecimento provocado e o comentário. A linguagem do jornalismo não é uniforme e remete para processos diferenciados de construção. Charaudau (1997) distingue o acontecimento mediático, seja este relatado na notícia ou reportagem seja provocado pela entrevista, da instância enunciativa que implica o comentário editorial do jornal. Nos diferentes modos discursivos do jornalismo cada texto manifesta-se em formas variadas. Entre uma notícia breve, feita com base num comunicado de imprensa, a reportagem, que implica directamente o jornalista, e o editorial da estrita responsabilidade da direcção ou do conselho de redacção, estão diferentes géneros que são, simultaneamente, diferentes posições e autoridades.

    A distribuição por géneros jornalísticos revela o predomínio da reportagem com e sem citações: 42.6% e 28.2% respectivamente. Existe uma primazia daquilo a que poderemos chamar informação naturalizada: os termos de representação da realidade são feitos segundo um estilo conversacional no qual a citação ou a declaração dos actores é usado para transmitir uma visão comum do mundo que é dada por adquirida e que, por conseguinte, não tem de ser provada.

    A descoberta do sentido é tácita e é orientada por significados prévios que circulam no contexto da audiência. Reforça-se um sentido hegemónico de interpretação do mundo por intermédio de uma selecção dos aspectos que na «realidade» se encontram em consonância com aquele.

    A notícia não aparece tal como ela é, mas sim com alterações que a transformam e compõem. A imprensa, enquanto aparelho revelador de factos, aparece afinal como narrador destes e a informação torna-se um conjunto de expressões perfeitamente articuladas, homogéneas e coerentes. Promove-se a ideologia da objectividade, de informação-espelho, que procura induzir no leitor a sensação de que as notícias que lê são a realidade tal qual se apresenta. Verifica-se, portanto, um défice de mediação analítica, sendo esta remetida apenas para o editorial, a crónica ou o artigo de opinião, onde de um modo explícito o jornalista emite a sua versão dos factos. No restante, as mensagens aparecem de um modo implícito, deixando transparecer sentimento, drama e uma carga afectiva que, na verdade, não deixa de ser uma construção do próprio jornalista. Os enquadramentos são sugeridos através de metáforas, de lugares-comuns, de exemplos históricos e imagens que, no seu conjunto, constituem símbolos de condensação (Gamson, 1984).


Metáforas, Valores e Discursos da Identidade Nacional nos jornais desportivos

O consenso nacional e os «outros». Quando se procede ao estudo do discurso jornalístico utilizado pelo jornal A Bola encontramos palavras repetidamente utilizadas que formam uma espécie de vocabulário base sem o qual não é possível falar-se da nação. A criação de cumplicidade e proximidade com o leitor é procurada por intermédio de um idioma público reconhecivel. A utilização corrente dos pronomes comuns «nós» e «nossos» evoca, permanentemente, um sentimento de comunhão e de pertença.

«O estágio em Chaves antecipa a preparação na Holanda. O que aqui se fizer será fundamental para afinar as capacidades dos "nossos" jogadores.» ( A Bola, 29 Maio: 11)

«Começou a contagem decrescente. É já no dia 12 que Portugal começa a defender o sonho de todos nós. Que saiba dizer sim ao seu próprio destino.» (A Bola, 3 Junho: 3)

    As palavras utilizadas para caracterizar tanto os participantes directos - os jogadores, os treinadores e os dirigentes - , como indirectos - o público e as audiências vão no mesmo sentido:

    para os participantes directos: Portugal - 26,7 %; selecção - 24,1%,

«Só que Portugal tem gente que faz a diferença, que não baixa os braços e que quando espicaçada, ofusca qualquer adversário.» (A Bola, 13 Junho: 22)

«A Selecção nacional está pois a postos para o início da campanha.» (A Bola, 4 Junho: 5)

    para os participantes indirectos: portugueses - 59,3%; país - 19,3% e povo - 9,3%,

«(...)a alegria de milhares de portugueses no estádio e milhões por esse mundo fora (...)» (A Bola, 18 Junho: 3)

«Com a selecção nacional é o país inteiro que canta o hino dos seus sentimentos e crenças (...)» (A Bola, 11 Junho, p. 8)

«Na nossa selecção nacional mora a alma de um povo (...)» (Ibidem)

    Os vocábulos mais usados são aqueles que incrementam os sentimentos de pertença, de união, de identidade. Aqueles jogadores não são um grupo são Portugal. Assim se convoca a unidade nacional. Embora não conheçamos todos aqueles a quem nos devemos sentir ligados ou que o sentimento não seja comum a todos, o idioma público que contextualiza as notícias assenta numa representação consensual do mundo, constituindo representações fortíssimas para a formação de interpretações e emoções. Emoções que constituem a antecâmara da intervenção, por que se referem também ao imperativo de passar do papel de mero espectador para o de participante num espaço imaginário comum em que todos têm o dever moral de apoiar a equipa nacional.

«Um por todos e todos por um. Ou melhor onze no campo e dez milhões a jogar por fora.» (A Bola, 29 Maio: 10)

«(...) esta onda de entusiasmo encoraja-nos ainda mais para atingir com redobrado empenho e vontade os nossos objectivos.» (Idem)

    O desporto torna-se um ritual repleto de emoções que alimentam o ideal de comunidade imaginada e que impulsionam o sentimento nacionalista. Esta mesma função é cumprida por outras palavras. É o caso de «nacional», «país», «futebol português», «povo», que nem sempre aparecem textualmente acompanhados do vocábulo «Portugal», porque é facilmente perceptível que a ele se referem.

«O apoio generalizado do povo português à selecção nacional agrada de sobremaneira a Humberto Coelho.» (A Bola, 9 Junho: 5)

«A paixão pela história pátria faz ferver em mim o protesto de que um povo pequeno pode ser grande no coração e na alma, nos sonhos e nos horizontes, nas metas e nos feitos.» (A Bola, 11 Junho: 8)

«(...) sentimos todo o público, todo o povo, com a selecção nacional. Deixamos de ser alguns, para passarmos a ser um todo. Não há divisões no povo e sente-se que a selecção é o clube de todos, do nosso país.» (A Bola, 31 Maio: 4)

«É um momento particularmente significativo para o futebol português, num grupo extraordinariamente difícil, no qual seria muito problemático somar seis pontos nos dois primeiros jogos da primeira fase.» (A Bola, 18 Junho: 9)

    Todo o discurso produzido se destina a fomentar o sentimento de unidade e de igualdade, despertando por conseguinte o sentido da diferença com os «outros». Quando o jornal fala de uma outra nação fá-lo numa linguagem mais distanciada, sem pronomes pessoais, porque não pretende criar o sentimento de pertença ou de partilha para com o país, nação ou povo referido. A referência aparece marcada pelo pronome «eles» ou pela identificação da respectiva selecção sempre sinalizada pela sua nacionalidade.

    A ambição de criar identidades entre o «nós» e diferenças com os «outros» culmina muitas vezes na elaboração de uma espécie de personalidade colectiva do ser português, bem patente quando os jornais desportivos se referem à existência de um futebol «tipicamente português».

«(...) os portugueses deslumbraram com a sua técnica, a sua fantasia, a riqueza de recursos em jogo e afirmaram um tipo característico de futebol que até há bem pouco tempo poucos aceitavam existir: o futebol português.» (A Bola, 22 Junho: 18)

    A evocação do território e a comparação são as técnicas mais usadas para promover o sentido de identidade, de pertença e de união, ao mesmo tempo que procuram prestigiar o grupo, a comunidade, a nação. A mais óbvia refere-se à comparação entre a «pequenês geográfica do país» e a grandeza da selecção. Mas outras, mais implícitas, existem quando se evoca a «comitiva lusa» como signo de limitação de um território primordial que abarca a nação.

«Não devemos ter demasiado medo da grandeza da nossa selecção, face à óbvia pequenês geográfica do país (...).» (A Bola, 22 Junho: 9)

    Este elemento é reforçado pelo factor emigração: o facto de muitos dos melhores jogadores portugueses não exercerem a sua profissão em território português é tornada positiva no contexto das relações entre nações, por que os atletas são denominados embaixadores e representantes das mais valias desportivas existentes no país. Facto que atinge cumes de exacerbação quando se sugerem comparações com o passado de conquistas e emigração pelo mundo.

«(...) a maturação dos jogadores portugueses que conquistaram a sua carta de alforria nalguns dos mais competitivos campeonatos do velho continente (...).» (A Bola, 4 Junho: 11)

«Dos 22 jogadores (...) exactamente 50% alinham em território nacional, o que significa que outra metade actua em equipas estrangeiras, com maior grau de efectividade e sucesso.» (A Bola, 5 Junho: 11)

    A procura do consenso está revestida de uma forte componente de legitimação política nem sempre perceptível. De facto, tanto o governo como outras instâncias políticas procuram a transferência de consensos da esfera desportiva para a esfera política, sobretudo quando se trata de afirmar o país na cena internacional.

«Depois de Fernando Gomes o ministro do desporto, seguiu-se o indefectível adepto das cores lusitanas: Jorge Sampaio» (A Bola, 2 Junho: 5)

«A presença da mais alta individualidade da nação foi como que uma autenticação à «selecção de todos nós». (A Bola, 2 Junho: 5)

    Os Valores desportivos e a nova ambição para Portugal. A presença do universo político serve como confirmação do carácter nacional da empresa, ampliando o sentido de mobilização e de coesão nacionais. Os discursos que as notícias põem em primeiro plano evocam um «nós» sem dissidentes, desideologizando a campanha da selecção: a exposição de ideias é sempre positiva, abordando aquilo que de melhor se pode dizer acerca da selecção e da nação, sendo apresentada de uma forma que não permite dúvidas, que é inquestionável, porque dotado de um forte senso comum. Os valores morais são muito marcantes nesta presença do político: «dignidade», «orgulho» e «honra» no que somos e no que fazemos, «união» do povo entre si e para com a sua selecção, «confiança» nas nossas capacidades, «esperança» que tudo corra como desejamos e «ambição» para conseguir cada vez mais e melhor.

    No processo de fixação de valores a nação é colocada num lugar preeminente. Ambição e vitória surgem como obrigações nacionais maiores, por oposição a um passado de pequenês e derrotas. Valores que, sugere-se, se devem estender ao contexto social e económico mais vasto.

«(...) uma selecção não representa apenas uma modalidade desportiva; representa sobretudo os valores que nos perfazem como nação. É uma configuração do compromisso de aproveitarmos o presente para actualizar o passado e para projectar e construir o futuro.» (A Bola, 11 Junho: 8)

«Portugal tem hoje, na sua selecção de futebol, uma imagem importante de referência, e que transmite internacionalmente uma ideia de qualidade, de modernidade e de maioridade deste país.» (A Bola, 10 de Junho: 9)

«Um bom resultado será importante para o país a todos os níveis, tanto política como socialmente.» (A Bola, 10 de Junho: 9)

    Desta forma se actualiza e reforça a comunidade imaginada. Ancorada no passado, projecta-se numa metáfora de modernização que se pretende ver alargada a diferentes esferas. Ela não diminui as outras esferas, especialmente a económica e cultural, porque procede à transferência de qualidades, tornando-as intermutáveis.

    Esta tendência torna-se mais visível quando consideramos o peso relativo dos valores encontrados na análise de conteúdo. Se considerarmos os quatro tipos diferentes de valores segundo a sua natureza particularista/universalista3 ou adscriptivo/realização encontramos a seguinte repartição.

Quadro 1. Valores

    Desta análise resulta uma alteração relativamente à configuração de valores sugerido por McClelland (1961, apud Jesuíno, 1982) para Portugal4 . Na verdade, o singular padrão português, do tipo adsciptivo-particularista dá lugar neste estudo a uma combinação orientada para o motivo de realização e para um equilíbrio entre os valores universalistas e particularistas. Os traços principais desta configuração traduzem-se na primazia pouco nítida dos valores e dos papéis de natureza afectivo-expressiva, dos sentimentos individuais, embora se persiga agora, de um modo mais competitivo, os objectivos e aquilo que os actores podem fazer para os concretizar.

    Enquanto estrutura simbólica colectiva o futebol é uma poderosa metáfora para a nação e para o sistema de relações interestatais. A dimensão das relações internacionais é propriamente política e refere-se ao facto de o Estado procurar alcançar reconhecimento e posições na arena internacional através do desporto. Consequentemente, enfatiza a participação em acontecimentos mundialmente significativos e procura obter a organização de eventos também com uma forte expressão internacional, como é o caso do Europeu de 2004. Nestas iniciativas está omnipresente o sentimento de desperiferização do país.

    Os media são os elementos propícios à difusão dessa imaginação de centro, ao reproduzirem de forma exaustiva as interpretações comparativas entre o «nacional» e o «estrangeiro», entre o «nós» e o «eles», realçando de forma categórica as opiniões positivas sobre a «nossa selecção» e o «nosso país»:

« (...) uma selecção não representa apenas uma modalidade, representa sobretudo valores que nos perfazem como nação.» (A Bola, 11 de Junho: 8)

«O ministro que tutela o desporto considerou que 'a participação da selecção nacional' na prova que terá inicio dia 10 pode ser um cartaz para o que vai acontecer daqui a quatro anos'.» (A Bola, 1 de Junho: 9)

«'Uma grande campanha no Europeu representará um imenso valor acrescentado para o nosso país ... para todas as vertentes da sociedade.»" (idem)

    Em tudo transparece um forte sentimento de mudança, de renovação, apoiado nas vantagens que o país poderá obter com uma participação bem sucedida.

«(...) vai ser um jogo de propaganda ao nosso país, sempre dentro de um espírito minimamente competitivo, mas com aquela parte cultural e social.» ( A Bola, 8 de Junho: 11)

«Exemplos como as exibições e vitórias da equipa das quinas batem aos pontos qualquer outra acção de marketing e divulgação externa do nome de Portugal...» (A Bola, 14 de Junho: 22)

    Associado a toda esta dinâmica ressurge a sombra do país pouco desenvolvido. O discurso vem em claro-escuro: umas vezes camuflado pela vontade de dignificar e orgulhar o país, outros pelas esperanças depositadas nas capacidades da selecção nacional ou ainda pela comparação estabelecida com as outras selecções. O país deposita na selecção nacional a ambição da vitória, mas não deixa de revelar o medo da derrota, por que esta se associa à humilhação, à vergonha e a outros tantos vocábulos associados ao valor da honra.

«(...) podemos prometer muito trabalho, aplicação e determinação na honra da camisola nacional.» (A Bola, 27 de Maio: 4)

«A nossa vontade é elevar Portugal ao mais alto nível.» (A Bola, 1 de Junho: 6)

"Portugal conquistou o respeito dos adversários cometendo até agora a maior proeza que se viu neste Europeu." (A Bola, 14 de Junho: 7)

«Não queremos ser os palhaços da festa e chegar a Portugal a dizer que fomos eliminados (...).» (A Bola, 16 de Junho: 23)


Lecturas: Educación Física y Deportes · http://www.efdeportes.com · Año 8 · Nº 48   sigue Ü