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A construção da identidade nacional na imprensa desportiva portuguesa:
análise do discurso jornalístico durante o Euro 2000 de futebol
Rui Gomes e Marisa Freitas

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 48 - Mayo de 2002

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    O segundo nível de demonstração de valores é o nível social. O desporto é uma construção social que, enquanto tal, representa as ideias e valores dominantes. O desporto de alta competição tem sido utilizado pelos estados para promoverem as interpretações que procuram demonstrar como deve funcionar a vida social (Coakley, 1998). O caso português não constitui excepção. A análise de conteúdo revela o futebol como uma metáfora da concepção democrática-meritocrática da sociedade (Bromberger, 1995): valores como o trabalho, espírito de equipa, ambição, união, esforço, modéstia, respeito e disciplina, entre outros, tornam proeminente a crença na eficácia do país.

    As metáforas privilegiadas no período analisado ilustram bem este propósito. No conjunto, as metáforas guerreira, da ambição e da produção possuem um total de 57,3%, seguidas das metáforas que revelam sentimento, com 23,6%. O campeonato ora aparece como um campo de batalha: «Portugal vai ambientar-se e preparar a primeira grande batalha que todos esperam que seja favorável às nossas cores.» (A Bola, 6 de Junho: 10); ora como uma demonstração da nova ambição: «O seleccionador nacional coloca a fasquia ao mais alto nível.» (A Bola, 5 de Junho: 10); ora, ainda, como espelho de sucesso: «Um jacto de quatro vitórias, verdadeiramente estonteantes, as que vitimaram a Inglaterra e Alemanha - uma derrota (...) após discussão taco a taco com os Campeões do Mundo.» ( A Bola, 30 de Junho: 8)

    A retórica jornalística, plasmada na metáfora, sublinha os aspectos que promovem a competição, a produtividade, a confiança, a vitória, bem como os sentimentos de esperança e de ligação à selecção que fortalecem a união entre o povo e os embaixadores da nação. Procura-se demonstrar a mudança que, contrariando o velho modelo de «jogar bonito mas perder», faça descobrir e crer, aos portugueses, que não estão mais na cauda da Europa e que, finalmente, chegou a hora de ter uma palavra a dizer, de ter um espírito ganhador.


Conclusão

    O futebol e a selecção nacional contribuem em larga escala para a formação da identidade nacional. Em seu torno produzem-se e reproduzem-se várias identidades, especialmente a identidade nacional. Esta, enquanto visão hegemónica, encontra na selecção as condições necessárias para impulsionar a sua formação: exalta a consciência de pertença, de união e gera emoções e sentimentos que são celebrados em conjunto e que se sentem como comuns a todos os cidadãos do país.

    É através destes elementos que a selecção nacional consegue actualizar a identidade nacional, dotando-a de um forte senso comum, ao mesmo tempo que se articula com entidades políticas ou recorre ao passado histórico da pátria, a símbolos, cuja significação não oferece quaisquer dúvidas, a valores morais já enraizados na sociedade ou a estereótipos que funcionem como guias de consonância. Os géneros jornalísticos dominantes enfatizam consensos e vozes de autoridade institucional, sejam elas do campo político ou do campo desportivo. Os valores promovem representações de sucesso, ambição e eficácia do país, embora permaneça uma configuração motivacional particularista. As metáforas promovem de uma outra forma a ambição, a competição e o sucesso individual e nacional. A caracterização dos participantes nas acções desportivas descritas são feitas através de narrativas e estilos conversacionais que promovem sentimentos de pertença, de união e de identidade. A utilização da voz dos outros, em especial dos actores estrangeiros, jornalistas, treinadores e jogadores, enquadra muitas vezes o discurso positivo sobre Portugal, acentuando, com esta forma de reconhecimento, o sentimento de orgulho nacional.

    Deste modo, o discurso da mediação jornalística garante a tradução dos eventos desportivos para quadros de sentido partilháveis pelas audiências a que se destinam. Mais que o relato de factos é a sua construção que assim se revela. Neste caso, uma particular construção da celebração nacional.


Notas

  1. Este trabalho resultou da recolha de dados produzida pela finalista da licenciatura Marisa Freitas, no ano lectivo 2000-2001, no âmbito do seminário Análise Sociológica da Educação Física e do Desporto (orientação de Rui Gomes).

  2. O jornal diário A Bola tem 48 páginas, unicamente dedicadas ao desporto, 80% das quais, cerca de 39 páginas, foram destinadas, durante o período analisado, à modalidade de futebol.

  3. Segue-se de perto a tipologia de valores e motivações proposta por Parsons (1952). O paradigma parsoniano deduz as possíveis alternativas que se apresentam aos actores sociais nos termos de cinco dicotomias básicas. Destas cinco dicotomias seleccionámos para a análise dos valores duas delas, daí resultando a seguinte definição sumária de cada um dos termos: Universalistas - valores de natureza cognitiva-instrumental orientados para a renovação e os contactos culturais; Particularistas - valores de natureza afectivo-expressivo orientados para a criação de fronteiras e evitação de trocas; Adscriptivos - valores que conferem prioridade aos atributos intrínsecos dos actores, ao que eles são; Realização - valores que conferem prioridade às contribuições sociais dos actores, ao que eles fazem.

  4. A configuração motivacional diagnosticada por McClelland, relativa ao Portugal de 50, revelava uma singularidade surpreendente, caracterizada então por ser particularista-adscriptiva: valorizava os papéis de natureza afectivo-expressiva e dava primazia aos atributos intrínsecos dos actores. Os principais traços distintivos desta configuração podem sintetizar-se a partir das tendências para a aceitação de critérios e soluções recebidas, para o individualismo subjectivo e para o anti-autoritarismo, certa despreocupação quanto aos objectivos mais remotos da sociedade, indiferença perante os grandes temas sociais e elevada afiliação, entre outros (Jesuíno, 1982). Parece sublinhar-se aqui o imobilismo, a resistência à mudança e comportamentos muito autocentrados que bloqueiam o exercício da competência.


Bibliografía

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  • Bourdieu, P. (1999). The State, Economics and Sport. In H. Dauncey e G. Hare (Eds.) , France and the 1998 World Cup: The National Impact of a World Sporting Event (pp. 15-21). Londres: Frank Cass.

  • Bromberger e col. (1995). Le Match de football: Ethnologie d'une passion partisane à Marseille, Naples et Turin. Paris: Maison des Sciences de l'Homme.

  • Coakley, J.J. (1998). Sport in Society (6ª ed.). Boston: McGraw -Hill.

  • Coelho, J. (1998). «Portugal a equipa de todos nós»: a reprodução ideológica da nação nos jornais desportivos. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Coimbra: FEUC.

  • Dauncey, H., Hare, G. (2000). World Cup France 98. International Review for the Sociology of Sport, 35 (3), 331-347.

  • Dias, J. (1971). Estudos do Carácter Nacional. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.

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  • Gamson, W. (1984). What's News. Nova Iorque: The Free Press.

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  • Jesuíno, J.C. (1982). Anomia e mudança na sociedade portuguesa. In A. Knoke e col. (Eds.), Mudança Social e Psicologia Social (pp. 33-104). Lisboa: Livros Horizonte.

  • Parsons, T. (1952). The Social System. Londres: Tavistock.

  • Rocher, G. (1989). Sociologia Geral - Acção Social (5ª ed.). Vol. 1. Lisboa: Editorial Presença.

  • Santos, B. S. (1994). Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Edições Afrontamento.

  • Smith, A. D. (1991). Nationalism and Modernism. Londres e Nova Iorque: Routledge.


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