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1. Introdução

    As artes marciais compreendem um grupo de atividades físicas milenares, que através de exercícios de combate, força, agilidade e disciplina buscam a integração da mente com o corpo. Quando se pratica uma arte marcial, entra-se em contato com a prática uma série de princípios determinados, que compõem a filosofia de cada técnica de luta.

    Hoje em dia notícias sobre brigas de praticantes de jiu jitsu, campeonatos de vale tudo e até filmes de ação promovem outra imagem das lutas marciais, geralmente associando-as à violência, descontrole, agressividade. Dentre estes, destaca-se a agressividade como um dos aspectos mais discutidos neste tema. Afinal, as artes marciais podem estimular a violência? A agressividade poderia ser um resultado do treino de esportes de combate? Seria possível estabelecer quais as variáveis que estariam determinando as condutas violentas?

    A agressividade, hostilidade e raiva são os componentes do comportamento emocional. Pode-se afirmar que são fenômenos únicos, que variam de indivíduo para indivíduo, em decorrência de uma série de fatores internos e externos.

    As expressões de raiva e agressão envolvem diversas manifestações psicobiológicas, dentre elas reações psicomotoras, alterações endócrinas e neurovegetativas.

    Segundo Brandão (1995), a regulação do comportamento agressivo estaria relacionada a três estruturas, especialmente: os bulbos olfatórios, associados à percepção de sinais olfatórios e à inibição tônica da reatividade do organismo; o septo, cuja lesão proporciona a hiperatividade e facilita a agressão; as fibras serotonérgicas ascendentes , originadas nos núcleos de Rafe, também vêm desempenhar o papel associativo entre os significados das informações sensoriais e a reação emocional. Ainda são apontadas outras áreas, tais como amígdala, córtex temporal e hipotálamo ventro medial, que estariam relacionadas à agressividade.

    O comportamento agressivo apresenta-se id6entico em homens e mulheres, ou seja, os circuitos neurais responsáveis pela reação de raiva são os mesmos. Aponta-se, contudo, diferenças entre os sexos relacionadas às situações em que tais comportamentos são manifestados e os mecanismos hormonais que desencadeiam ou inibem a agressividade.

    Várias são as definições de agressão. Dollard, Doob, Miller, Mowner e Sears (1939)¹ afirmam que agressão é "qualquer seqüência de comportamentos, cujo objetivo é causar dano à pessoa a quem é dirigida". Buss (1961)² que agressividade é toda resposta que tenha como resultado um estímulo nocivo a outro organismo.

    Atualmente são encontradas diferentes teorias relacionadas à agressão. Dentre elas a posição psicanalítica, a etológica, além das teorias do "drive" e da aprendizagem social.

    Freud apresentava dois conjuntos de instintos: os de vida (Eros), compreendendo a sexualidade e auto-preservação, e os de morte (Thanatos), relacionados a morte, agressão e destruição. Assim sendo, os comportamentos agressivos seriam resultados de impulsos à destruição, atendendo aos instintos de morte.

    A etologia, representada por Konrad Lorenz (1966)³, também compreende a agressão como um instinto indispensável para o progresso, para proteção e precisa ser descarregado, para o próprio benefício da pessoa e do grupo. Isto é, a inibição do impulso agressivo implicaria no acúmulo de energias, prejudicando a pessoa.

    Segundo a teoria dos "drives", a agressão não seria uma energia inata, mas sim resultados de um drive (motivo) produzido pela frustração. Esta teoria, juntamente com a Psicanálise e a Etologia, considera a agressão inevitável, tornando necessária a expressão da mesma.

    A aprendizagem social destaca o papel dos modelos na aprendizagem dos comportamentos. As experiências aversivas (frustração) e as conseqüências cognitivamente antecipadas levam à excitação emocional difusa, podendo causar diferentes condutas (agressão ao meio, autopunição ou fuga) de acordo com o histórico de aprendizagem de cada indivíduo.

    À luz destas perspectivas, a Psicologia do Esporte apresenta diversas contribuições para a compreensão da relação entre agressividade e esportes.

    Suay, Salvador, González, Sanchis, Simón e Montoro (1996) afirmam que a discussão a respeito da prática desportiva exacerbar ou não o comportamento agressivo depende da perspectiva teórica que está sendo adotada. Assim sendo, se a agressão é compreendida como um impulso biológico que deve ser exteriorizado, os esportes, principalmente as lutas, seriam a forma ideal de canalizar este impulso. Já se a agressão é entendida como um comportamento aprendido, a prática de esportes de combate pode ser considerada um facilitador de comportamentos agressivos.

    As tendências agressivas podem ser estimuladas ou dissipadas por situações de esportes. Se a necessidade individual por expressões de raiva é elevada e o esporte produz muitas situações frustrantes é muito provável que a hostilidade seja estimulada. Por outro lado, se o indivíduo apresenta baixa necessidade de agressão ou recebe respostas positivas do meio de treinamento (apoio ou conquistas), sua hostilidade pode ser reduzida.

    É apontado, ainda, que os esportes podem ser um modo socialmente aceito de apresentar condutas agressivas. O atleta que apresenta maior motivação para agressividade pode encontrar no esporte um meio de expressar seus impulsos (Husman e Silva, 1984).

    Baseando-se nestas perspectivas, o presente estudo busca compreender a relação entre as artes marciais, ou esportes de combate, e a manifestação de comportamentos agressivos.

2. Método

Sujeitos

    Participaram desta pesquisa 18 sujeitos, praticantes de duas artes marciais, kung fu (8 sujeitos) e tae kwon do (10 sujeitos), pertencentes a três faixas etárias distintas: adolescentes, de 14 e 15 anos, jovens universitários, 19 a 26 anos de idade, e adultos, 29 a 43 anos de idade. Destes sujeitos, 4 (quatro) eram do sexo feminino e 14 (quatorze) do sexo masculino. Foram observadas 2 (duas) turmas de tae kwon do, uma do programa de extensão da UnB e outra de uma academia do Plano Piloto (DF). A turma de kung fu avaliada também faz parte do programa de atividades comunitárias da UnB.

    O tempo de prática da arte marcial está compreendido entre 3 (três) meses e 12 (doze) anos. São observadas diferenças entre as turmas de tae kwon do e kung fu, no que diz respeito à graduação dos alunos. Assim sendo, os primeiros são qualificados por faixas e graduações, enquanto os praticantes de kung fu não estão subdivididos em "classes".

Instrumento

    Foram aplicados questionários de interesse e o Inventário de Expressão de Raiva Como Estado e Traço (S.T.A.X.I.), de Spielberger, adaptado por Biaggio (1994) para as normas brasileiras.

    Este inventário tem como objetivo medir a experiência de raiva de um indivíduo através de oito escalas: estado de raiva (estado emocional momentâneo caracterizado por sentimentos subjetivos relacionados à raiva), traço de raiva (vivenciam freqüentemente reações de raiva), temperamento (expressão de reação de raiva sem muita provocação), reação de raiva (sensibilidade a críticas, afrontas e avaliações negativas), raiva para dentro (vivência de sentimentos de raiva que são reprimidos), raiva para fora (vivência de raiva, expressada em comportamentos agressivos), controle de raiva (investimento de energia para o monitoramento e prevenção da experiência e expressão de raiva) e expressão de raiva (experiência de intensos sentimentos de raiva, reprimidos ou expressos).

Procedimentos

    Os questionários foram entregues aos sujeitos nos locais de treinamento. Doze sujeitos responderam ao questionário no local de treinamento e seis levaram-no para casa. As instruções foram lidas em voz alta e caso surgisse alguma dúvida poderia ser esclarecida antes da aplicação. Os sujeitos que responderam em casa também receberam instruções, no momento em que os questionários foram distribuídos.

3. Análise dos resultados

1. Resultados dos questionários de motivos

    Dos 18 sujeitos participantes, 4 não responderam ao questionário de motivos que levaram à atividade física. Analisando os questionários respondidos chega-se às seguintes categorias de respostas:

1. A atividade física como uma forma de desenvolver a forma física (condicionamento, resistência, flexibilidade, aparência, força)

2. Atividade física para desenvolver aspectos psicológicos (harmonizar a mente, disciplina, controle de emoções, relaxamento, busca de equilíbrio, meio de extravasar sentimentos, tais como frustração, raiva, tristeza, estresse, ansiedade).

3. A atividade física em si, ou seja, o indivíduo admira a arte marcial que pratica, gosta de sua filosofia, sua prática, seu método de treinamento ou outros.

4. A atividade física como forma de defesa contra violência urbana.

5. A atividade física como meio de auto-conhecimento (reconhecer as próprias capacidades, necessidades, potenciais).

6. Desenvolvimento da saúde e melhoria da qualidade de vida (problemas respiratórios, de articulações, cardíacos).

7. Questões sociais, como por exemplo recomendação de amigos que já praticam a atividade, necessidade de estabelecer vínculos com pessoas novas, admirar o grupo de treinamento.

2. Resultados do Inventário de Expressão de Raiva como Estado e Traço (STAXI)

    Todos os sujeitos responderam ao STAXI. Apenas dois questionários foram excluídos da amostra devido à marcação incorreta na folha de respostas (respostas rasuradas, impossibilitando a identificação do resultado).

    Os escores brutos foram convertidos em percentis, a partir das normas brasileiras, apresentadas por Biaggio (1992). Os escores das escalas entre os percentis 25 e 75 são considerados normais, sendo que altos escores dentro dessa variância poderiam indicar uma propensão a experimentar sentimentos de raiva.

    A amostra deste estudo apresentou médias similares àquelas observadas no grupo de sujeitos da amostra de padronização apresentadas por Biaggio (1992).

	Médias amostra	Médias pop.
Estado de raiva	13,1	11,86
Traço de raiva	18,2	18,92
Temperamento	6,5	6,86
Reação de raiva	8,33	8,94
Raiva para dentro	16,05	17,06
Raiva para fora	14,05	13,71
Controle de raiva	22,6	21,96
Expressão de raiva	23,5	24,66

    Analisando os dados individualmente, não foi possível estabelecer relação de causa entre os resultados de raiva e o tipo de arte marcial praticada, ou seja, a prática de kung fu ou tae kwon do não interfere nos resultados apresentados nos inventários.

3. Comparação entre resultados do STAXI e questionário de motivos.

    Nesta seção serão apresentados os resultados deste grupo, subdivididos segundo as faixas etárias dos sujeitos, em comparação com os itens apresentados nos questionários de motivos.

	Sujeito 1		Sujeito 2		Sujeito 3		Sujeito 4
	Escore bruto	Percentil	Escore bruto	Percentil	Escore bruto	Percentil	Escore bruto	Percentil
Estado	10	50	10	50	10	50	10	50
Traço	14	15	13	10	22	75	19	60
Temperamento	5	30	6	50	4	10	9	85
Reação	6	20	5	5	10	70	8	50
Raiva p/ dentro	20	75	15	35	12	15	10	75
Raiva p/ fora	18	90	12	35	12	35	13	40
Controle	24	65	27	80	24	65	21	45
Expressão	30	75	16	15	16	15	18	20

    Neste subgrupo, todos os sujeitos são praticantes de tae kwon do, com idades de 14 (sujeitos 2, 3 e 4) e 15 anos (sujeito 1).

    O sujeito 1 apresenta escores baixos de Traço e Reação de raiva, entretanto destacam-se também resultados elevados nas categorias Raiva para fora e Expressão, demonstrando que o sujeito experimenta poucos sentimentos de raiva. Quando estes ocorrem são expressos em comportamentos agressivos.

    Nos resultados do sujeito 2 também são encontrados baixos escores de Traço, Reação e Expressão de raiva. Há um destaque para o alto escore de Controle (percentil 80), que juntamente com escores medianos de raiva para dentro e para fora, levam a crer que o sujeito não manifesta sentimentos de raiva, mesmo quando experimenta este tipo de sentimento.

    O terceiro sujeito, ao contrário dos anteriores, apresenta um Traço de raiva elevado, indicando alta propensão à experiência de sentimentos de raiva. Entretanto estes sentimentos não são expressos em comportamentos agressivos, como demonstra o alto escore de Controle.

    O sujeito 4 apresenta escores normais em seus resultados, com destaque para os escores de Temperamento e Traço, indicando comportamentos impulsivos, ou seja, não controla seus comportamentos de raiva.

    Ainda apresentando os resultados deste subgrupo, encontra-se como motivos para a prática de artes marciais a busca de desenvolvimento de habilidades físicas (sujeitos 1, 3 e 4), admiração pela arte marcial em si (sujeitos 2, 3 e 4), meio de defesa (sujeitos 3 e 4) e forma de desenvolvimento psicológico (sujeito 3).

	Sujeito 1
	Escore bruto	Percentil
Estado	11	60
Traço	22	60
Temperamento	10	85
Reação	6	5
Raiva p/ dentro	10	5
Raiva p/ fora	17	25
Controle	17	30
Expressão	26	45