ISSN 1514-3465
A configuração do lazer sob as condicionalidades do tempo-de-não-trabalho
The Configuration of Leisure under the Conditions of Non-Working-Time
La configuración del ocio en las condiciones del tiempo-de-no-trabajo
Alisson Slider do Nascimento de Paula
alisson_slider@uvanet.br
Professor Adjunto do Departamento de Educação Física
da Universidade Estadual Vale do Acaraú (DEF/UVA)
Pós-Doutor em Educação pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa
em Política, Educação, Esporte e Lazer (GEPPOEL)
(Brasil)
Recepción: 21/02/2025 - Aceptación: 21/04/2025
1ª Revisión: 04/04/2025 - 2ª Revisión: 19/04/2025
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0
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Cita sugerida
: Alisson Slider do Nascimento de Paula, A.S. do N. de (2025). A configuração do lazer sob as condicionalidades do tempo-de-não-trabalho. Lecturas: Educación Física y Deportes, 30(324), 2-13. https://doi.org/10.46642/efd.v30i324.8150
Resumo
Este estudo objetiva refletir sobre a lógica do lazer sob as condicionalidades da sociabilidade do capital e suas reverberações para o ser social. Compreende-se que lazer situado no bojo das relações humanas subjugadas pelo sistema produtor de mercadorias, apresenta um caráter iníquo e estranhado. A pesquisa possui abordagem qualitativa do tipo bibliográfica, além de estar calcada no paradigma epistemológico crítico-dialético. O desenvolvimento do lazer na perspectiva do reino da liberdade é inconcebível nos moldes do atual modo de produção e reprodução da vida, ainda, compreendendo o lazer como tempo-de-não-trabalho, com efeito, o lazer pode ser engolido pela lógica da expansão de mercadorias próprias do sistema metabólico do capital. O lazer se configura, no interior do sociometabolismo do capital, como um nicho de mercado crucial para a extração lucrativa por parte de setores empresariais.
Unitermos:
Lazer. Tempo. Trabalho.
Abstract
This study aims to reflect on the logic of leisure under the conditions of the sociability of capital and its repercussions for the social being. It is understood that leisure situated within the human relations subjugated by the commodity-producing system presents an unfair and strange character. The research has a qualitative approach of the bibliographic type, in addition to being based on the critical-dialectical epistemological paradigm. The development of leisure from the perspective of the realm of freedom is inconceivable within the molds of the current mode of production and reproduction of life. Furthermore, understanding leisure as non-work time, in effect, leisure can be swallowed up by the logic of the expansion of commodities typical of the metabolic system of capital. Leisure is configured, within the sociometabolism of capital, as a crucial market niche for the profit extraction by business sectors.
Keywords
: Leisure. Time. Work.
Resumen
Este estudio busca reflexionar sobre la lógica del ocio en el contexto de la sociabilidad del capital y sus repercusiones en el ser social. Se entiende que el ocio, situado en el contexto de las relaciones humanas subyugadas por el sistema productor de mercancías, presenta un carácter injusto y alienado. La investigación presenta un enfoque cualitativo de tipo bibliográfico, además de basarse en el paradigma epistemológico crítico-dialéctico. El desarrollo del ocio desde la perspectiva del ámbito de la libertad es inconcebible dentro de los moldes del actual modo de producción y reproducción de la vida. Además, al entender el ocio como tiempo no laboral, este puede verse absorbido por la lógica de la expansión de las mercancías, propia del sistema metabólico del capital. El ocio se configura, dentro del sociometabolismo del capital, como un nicho de mercado crucial para la extracción de beneficios por parte de los sectores empresariales.
Palabras clave
: Ocio. Tiempo. Trabajo.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 30, Núm. 324, May. (2025)
Introdução
O processo de subordinação da vida do ser social ao capital se dá através de diversas relações. No bojo da sociabilidade capitalista é possível introjetar os aspectos próprios do metabolismo do capital mundializado, o que decorre nas relações estranhadas dos sujeitos coletivos. Estas relações estranhadas consistem em relações que se baseiam na lógica da propriedade privada e no assalariamento da força de trabalho.
Em acréscimo, o processo contínuo de evolução da humanidade propicia vários “fenômenos sócio-históricos que interferem na vida individual e social dos sujeitos envolvidos, por ser a sociedade um todo dialético integrado” (Silva, e Luduvice, 2012, p. 271). Nessa lógica, o trabalho e o lazer situados no bojo das relações humanas subjugadas pelo sistema sociometabólico do capital, apresentam um caráter iníquo e estranhado.
A gênese do Lazer, para alguns autores (Marcellino, 1987; Freitas 1999), reside sob duas perspectivas, a primeira diz respeito à concepção de Lazer como produto que precede a revolução industrial, contudo, a segundo se opõe com o lazer como fruto da sociedade moderna. A sociedade em que regia o modo de produção feudal, conforme Carneiro, e Soares Jr. (2011), por se tratar de um período em que o espaço predominante era o campo, as dimensões da vida do homem não eram separadas, deste modo, há uma relação lazer e trabalho numa perspectiva em que o primeiro é encontrado no segundo.
Em verdade, Marcellino (1995) concebe o lazer dentro de duas perspectivas: i) lazer na perspectiva da atitude; ii) lazer na perspectiva do tempo. Nesse sentido, o lazer na perspectiva da atitude é bem representado pela lógica que foi exposta acima, uma vez que, “a que se fundamenta na variável da atitude, considera o lazer como um estilo de vida, portanto independente de um tempo determinado” (Marcellino, 1995, p. 23-24). Na perspectiva da atitude o lazer é compreendido como algo que gera satisfação ao indivíduo. Nesse sentido, essa perspectiva possibilita o lazer ser encontrado, inclusive, no trabalho, pelo prazer em realizar algo de seu agrado.
Em um sentido oposto, o lazer na perspectiva do tempo, o lazer é caracterizado como “tempo liberado do trabalho ou como tempo livre, não só do trabalho, mas de outras obrigações: familiares, sociais, políticas e religiosas, enfatizando a qualidade das ocupações desenvolvidas”. (Marcellino, 1995, p. 24)
Nessa perspectiva, o tempo livre ele não é verdadeiramente “livre” em decorrência da expansão do capital a todas as dimensões da vida. No entanto, o que se precisa destacar é a importância do trabalho nesse contexto. Antunes (2012), discorre acerca da atuação do trabalho sobre a reprodução social do ser humano e, portanto, nos dar base para compreender a lógica do lazer na contradição capitalXtrabalho.
O trabalho é exatamente aquilo que garante a reprodução social diária e imediata e também aquilo que torna possível ao ser humano – ao conjunto dos seres humanos – dedicar-se a atividades que possibilitem uma existência cada vez mais plena, na medida em que exatamente por intermédio dos acúmulos sócio-históricos das realizações e aquisições dos processos de trabalho, cerne de todo o processo formativo humano – o que significa que cada nova geração não precisa redescobrir o fogo, ou reinventar a roda –, que torna possível que os seres humanos, a partir da assegurada a supressão das necessidades básicas, possam conduzir sua existência de modo cada vez mais (pelo menos potencialmente) livre, humano. (Antunes, 2012, p. 14)
Em acréscimo, compreende-se ser a atividade laborativa o fundamento da relação estabelecida entre o Reino da Necessidade e o Reino da Liberdade, pois ao passo do
Desenvolvimento das forças produtivas (no qual já está contida, ao mesmo tempo, a existência empírica humana, dada não no plano local, mas no plano histórico-mundial) é um pressuposto prático [da emancipação humana], absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda a velha imundice acabaria por se restabelecer. (Antunes, 2012, p. 14)
Nessa acepção, a riqueza espiritual do ser social depende diretamente das relações sociais concretas, assim, o trabalho como resposta às necessidades naturais, como meio de subsistência e desenvolvimento, torna-se, portanto, idêntica à plenitude humana, isto é, à realização da liberdade humana. (Marx, e Engels, 2007)
Essa lógica se justifica em função da liberdade humana não ser verdadeiramente uma liberdade absoluta, muito menos se trata da necessidade vital de trabalhar – esta necessidade está assentada na condição natural –, contudo, em sentido oposto, “é a afirmação do trabalho” (Antunes, 2012, p. 15), logo, “quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital” (Marx, 2012, p. 31), é que o ser social será, de fato, “posto em contato prático com a produção (incluindo a produção espiritual) do mundo inteiro e [...] estando em condições de adquirir a capacidade de fruição dessa multifacetada produção de toda a terra”. (Marx, e Engels, 2007, p. 40)
Esta compreensão é crucial para se obter uma aproximação com o que de fato é lazer efetivo longe e com o trabalho. Ora, o trabalho sob a égide do sistema sociometabólico do capital incorpora elementos que negam a natureza humana, que degrada o desenvolvimento do ser social, que engendra as contradições capitalXtrabalho, etc. Nessas circunstâncias, com relação a lazer e trabalho, Marcellino et al. (2007, p. 16), compreende que o lazer não pode ser considero como,
Apenas a oportunidade de recuperação da força de trabalho, ou que possa ser caracterizado como instância da força de trabalho, ou que possa ser caracterizado como instância de consumo alienado, ou “válvula de escape”, que ajude a manter o quadro social injusto.
Não obstante, o problema do espaço da cidade e suas múltiplas dimensões não propicia condições materiais para a efetivação do lazer, assim, o lazer se tornou uma forte indústria com fins lucrativos, estritamente articulada com poder de compra, “oferta de produtos massificados a sociedade, feitos normalmente apenas para passatempo e não, atividades gratificantes a seus usuários”. (Carneiro, e Soares Jr., 2011, p. 3)
Decerto, fica nítida a necessidade de ações de teor democrático, nas quais propiciem uma maior apropriação do lazer, ainda que no reino da necessidade, aos indivíduos inseridos no espaço da cidade. Conforme Marcellino (1995, p. 62),
A ação democratizadora precisa abranger, além da construção de novos equipamentos em locais adequados e acessíveis, a luta pela mudança da mentalidade na utilização dos equipamentos não específicos e a busca da participação da população na defesa do seu patrimônio ambiental urbano, o que implica em preservar o espaço, revitalizar construções e manter a riqueza da paisagem urbana, podendo significar inclusive, um elemento que se contraponha à homogeneidade cultural tão presente na vida dos habitantes das cidades, em si mesmas os grandes espaços para a prática democrática do lazer.
Nessas circunstâncias, é lícito questionar quais as implicações do modo de produção e reprodução da vida engendram para o lazer? O tempo é uma categoria que sob o sistema de capital sofre metamorfoses? Destarte, este estudo objetiva refletir sobre a lógica do lazer sob as condicionalidades da sociabilidade do capital e suas reverberações para o ser social. A pesquisa possui abordagem qualitativa do tipo bibliográfica, além de estar calcada no paradigma epistemológico crítico-dialético. O desenvolvimento do lazer na perspectiva do reino da liberdade é inconcebível nos moldes do atual modo de produção e reprodução da vida, ainda, compreendendo o lazer como tempo de não trabalho, com efeito, o lazer pode ser “engolido” pela lógica da expansão de mercadorias próprias do sistema metabólico do capital. No limite, o referido texto não busca empreender uma análise empírica de como o lazer no ponto de vista da política e dos programas se realizam, contudo, limita-se em compreender o estatuto do lazer sob as condicionalidades do sistema sociometabólico de capital.
A mercadorização do lazer na sociedade moderna
Com a crise que eclodiu na década de 1970 em decorrência da grande produção que não encontrou correspondente consumo, o sistema de capital teve que procurar novos meios pelos quais possibilitassem o capital superar sua até então crise.
Na superfície, essas dificuldades podem ser melhor apreendidas por uma palavra: rigidez [...]. Por traz de toda a rigidez específica de cada área estava uma configuração indomável e aparentemente fixa de poder político e relações recíprocas que unia o grande governo no que parecia cada vez mais uma defesa disfuncional de interesses escusos definidos de maneira tão estreita que solapavam, em vez de garantir, a acumulação do capital. (Harvey, 2001, p. 135-136)
Nessa perspectiva, a especialização flexível passa a guiar a lógica da produção do capital para a recusa da produção em alta escala desenvolvida pelo setor industrial, assim afirmando “uma produção ‘artesanal’ em pequenas e médias indústrias, que adota uma base tecnológica mais desenvolvida, flexibilizando a produção e diminuindo a alienação do trabalhador típica da produção fordista” (Cândido, e Jinkings, 2010, p. 81). Esse tipo de especialização flexível se afasta do padrão fordista dominante nos anos dourados do capitalismo notoriamente marcado por sua rigidez, essa especialização
se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões subdesenvolvidas. (Harvey, 2001, p. 140)
O capital se afirma no bojo dessa processualidade utilizando meios para enaltecer a lógica da competitividade estabelecendo a “culpabilização” na qual denota que se o indivíduo não conseguiu se firmar como alguém “útil” à produção a culpa diz respeito somente a ele isento a sociabilidade de qualquer tipo de responsabilidade (Sequera, e Gil, 2023). Nessa acepção, a individualidade decorrente da competitividade desenfreada é desencadeada desse processo, resultando, portanto, em atitude pouco solidárias no ambiente de trabalho.
Em acréscimo, com as metamorfoses engendradas no seio da sociedade capitalista, grandes mudanças foram impulsionadas na organização estrutural social, redefinindo orientações filosóficas, políticas, educacionais oriundas do século XIX. A lógica da produção, científica e cultural se modificam, a ponto que o lazer sofre condicionalidades de modo direto.
O lazer na sociabilidade capitalista é compreendido hegemonicamente como “o momento de recomposição/potenciação da força de trabalho despendida na atividade laboral”. Historicamente, o tempo livre se configura como o momento-de-não-trabalho, como foi visto acima, contudo, nas várias formações sociais o tempo livre se manifestou de modo diverso, o ócio foi a ocupação do tempo livre no período medieval. Todavia, na sociedade em que rege o metabolismo de capital, o lazer se expressa como uma relação jurídica em que se estabelece os detentores dos meios de produção e detentores de força de trabalho como indivíduos “iguais” dentro de uma estrutura social iníqua.
Sendo o tempo livre definido por oposição ao tempo ocupado, do trabalho, dois encaminhamentos são possíveis: primeiro, o tempo livre do capitalista, que não é trabalhador, é ocupado com outra categoria que não o lazer, que pode ser o ócio, por exemplo; segundo, que o tempo livre o capitalista e o lazer que ele frui nesse tempo é determinado socialmente, mediante o mais-trabalho tomado do trabalhador. (Cândido, e Jinkings, 2010, p. 84)
Não obstante essa compressão, o lazer e o ócio em seu conteúdo não se diferem. Ora, peças teatrais, prática esportiva ou qualquer outra atividade da cultura corporal, viajar, apreciar música, etc. No entanto, o que se difere é a função inserida nas relações sociais.
Na sociedade mediada pelas mercadorias, onde se gera o lazer, a alienação do trabalhador, dos produtos e dos meios da sua atividade chega ao ponto ‘que somente como trabalhador ele pode se manter sujeito físico e apenas como sujeito físico ele é trabalhador (Castellani Filho, 2013). Pensando na função do lazer, restauração da força de trabalho no tempo livre, vê-se a sua determinação fundamental pela forma de produção social da vida nesse fato, do trabalhador ter que vender sua força de trabalho para se reproduzir como homem, e ter que existir como homem para vender sua força de trabalho, dado que para Marx o processo de trabalho é subsumido pelo processo de valorização, no capitalismo é impossível compreender o lazer – se ele é determinado pelo trabalho – sem compreender objetivo e o resultado do trabalho na sociedade do capital: a mercadoria e a valorização do valor. (Cândido, e Jinkings, 2010, p. 84)
Nesse tipo de sociabilidade o lazer existe em condições distintas para o detentor dos meios de produção e para os setores das classes populares. Padilha (2000), compreende que é preciso considerar a heterogeneidade do envolvimento de cada indivíduo nas atividades de lazer, esta heterogeneidade reside, mais diretamente, na diferença existente entre as classes. O lazer se trata de um fenômeno sócio-cultural crucial na vida dos indivíduos, contudo, ele se encontra na divisão internacional do trabalho. No limite, essa processualidade torna exequível o empresariamento da prática de lazer, haja vista sua ampla possibilidade de ser desenvolvida. Ora, o lazer não se trata apenas de realização de algum tipo de atividade “física”, todavia, a fruição, apreciação, logo, o lazer passa por um processo de “espetacularização”, estas são possibilidades da realização do lazer – dentro de suas limitações no bojo das contradições capitalistas –, contudo, o lazer se realiza dependendo do caráter social da atividade. Se um músico pretende tocar algum instrumento ou compor esta atividade, por seu turno, se torna trabalho, do mesmo modo com um atleta.
Diversos autores analisam a relação lazer/mercadoria na sociedade contemporânea, assim, concebem o corpo como parte diretamente vinculada dos processos de mercantilização do lazer. Pellegrin (apud Cândido, e Jikings, 2010, p. 87), compreende que “na modernidade o corpo assume dois ideais: “corpo produtor” e “corpo consumidor”. O símbolo da modernidade é o corpo que consome e as práticas corporais procuradas pelas pessoas como forma de lazer não estão acima desses determinantes”. Todavia, por compreender que a produção é indissociável com o consumo, Cândido, e Jikings (2010), alertam que
É mais equivocado, indicar que tônica a preocupação com o lazer como mercadoria é o consumo, e não a produção. Entende-se a impossibilidade de separar produção e consumo como se fossem duas fases do capitalismo, a fase em que se produziu muito e a fase em que se consumo muito (para onde iria a produção da primeira fase e de onde viriam os produtos consumidores dessa segunda?). Porém, considerando toda a formulação de Marx sobre a mercadoria e sua centralidade por ser portadora de valor e condição ineliminável da produção de mais-valia, não é possível tratar o lazer como mercadoria dando centralidade ao consumo, esfera da circulação, sem perder o caminho correto da análise do problema, o momento da produção do lazer como mercadoria, local de onde se origina a valorização do valor (p. 87).
Deste modo, é lícito, portanto, afirmar que como a lógica do metabolismo do capital é transformar tudo e a todos em mercadorias – bens materiais e imateriais –, o tempo de lazer dos indivíduos – trabalhadores – passou a ser mais uma mercadoria e forma alienada e fetichizada.
É preciso ressaltar a alienação advinda do lazer, considerando simplesmente divertimento/entretenimento, a ser consumido como fuga ao esforço causado pelo trabalho alienado ou como meio para compensar as frustrações geradas pelas insatisfações ocorridas no cotidiano do indivíduo. (Sá, 2003, p. 42)
Além de
O que vem aumentando nos últimos anos não é o lazer, mas o que ele denomina de “antilazer”, atividade compulsiva e realizada a partir de necessidades impostas exteriormente, com baixo grau de autonomia pessoal e autos grau de pressões e preocupações com o tempo. (Godbey apud Marcellino, 1995, p. 13-14)
Destarte, o lazer é inconcebível, dentro da perspectiva do tempo para as classes trabalhadoras. Ora, o lazer na perspectiva do tempo se realiza no tempo–de-não-trabalho do indivíduo, contudo, a lógica da atividade laborativa está permeando, inclusive, esse próprio tempo-de-não-trabalho por ultrapassar as barreiras do mero momento do dispêndio de energias, assim, para que seja efetivamente possível o usufruto do lazer, é necessário, mormente, que os humanos deixem de ser meros produtores de lucros.
Fica evidente que a classe trabalhadora se afasta a passos largos do sentido efetivo do lazer, contudo, se aproxima, na mesma medida, do ócio, que para Marcellino (1987) se trata de recuperação para o trabalho.
As posibilidades do lazer
O lazer no interior do metabolismo de capital é incorporado um caráter mercadológico, crucial para extração lucrativa de setores empresariais. Porém, sua realização se trata de um momento de fruição que satisfaça efetivamente o ser social. Nessas circunstâncias, a despeito do tempo-de-não-trabalho com os fenômenos contemporâneos frutos do entretenimento o lazer se afasta mais da vida dos indivíduos, pois estes continuam desempenhando o ciclo de reprodução do capital.
Na esteira desse processo, o indivíduo ir ao shopping e fazer compras com a família, estaria ele dentro do ciclo de reprodução do capital, contudo, a sensação de prazer e felicidade pode por ora estar presente naquele momento no shopping center por se tratar de um processo em sua consciência fruto da fetichização da mercadoria decorrendo na intensificação ainda maior da alienação.
De acordo com Iasi:
Fala-se em processo de consciência e não apenas consciência porque não se a concebe como uma coisa que possa ser adquirida. Nesse sentido, procura-se entender o fenômeno consciência como um movimento e não como algo dado. Sabe-se que só é possível conhecer algo se inserido na história de sua formação, ou seja, no processo pelo qual ele se tornou o que é; assim também com a consciência: ela não é, se torna. (2007, p. 12).
O lazer sendo compreendido como um tempo-de-não-trabalho, de descanso e consumo das mercadorias ofertadas, é crucial compreender, na mesma medida, a lógica da contradição que permeia o trabalho assalariado os indivíduos continuarão submissos às determinações do capital, e o valor de troca continuará sobrepondo-se ao valor de uso.
As possibilidades de realizar o lazer são poucas, em verdade, dentro dos limites do capital o que se pode obter de fato são aproximações com as práticas de lazer sem que esteja vinculado ao ciclo reprodutivo de capital. Mas como isso é possível? A despeito de compreender as relações estranhadas da atual organização societal, políticas públicas podem se posicionar qualitativamente no interior dessa processualidade.
A política de lazer, sem nenhuma vinculação com parcerias público-privadas e totalmente comprometida com as classes trabalhadoras podem representar grandes avanços na lógica do lazer. Esta política não pode estar vinculada ao caráter focalista e compensatório, pois se aqui pretende-se engendrar possibilidades de realização do lazer, uma política focalista atinge diretamente os setores populares e busca uma compensação de todas as desigualdades sofridas até agora (Cañada, e Izcara, 2021). Destarte, a política de lazer pensada neste trabalho compreende uma práxis que esteja compreendida com as atividades vinculadas a cultura corporal.
A práxis pedagógica oriunda do esporte, luta, dança, ginástica, artes circenses etc., estão inseridas no processo de fruição da cultura corporal, no entanto, essa fruição deverá estar desprendida de interesses mercadológicos, isto é, comprometida com os interesses dos indivíduos que passem a fazer uso de seus programas.
Nos últimos anos, diversas políticas foram implementadas, em especial nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), a saber: Programa Segundo Tempo (PST), Programa Esporte Lazer na Cidade (PELC) entre outros. Esses programas trouxeram consigo o caráter da inclusão, todavia, fortemente vinculada a lógica focalista e compensatória, o PST, por seu turno, preconizava tirar os estudantes da ociosidade no contraturno escolar, fornecendo-lhes fardamento e lanche, além de propiciar atividades esportivas, assentadas na lógica do esporte-educação que, por sua vez, traz consigo os pilares do construtivismo. No que concerne ao PELC, um programa que desenvolve atividades diretamente vinculadas à cultura corporal, contudo, sem uma sistematização de plano de ação e intervenção no seio da comunidade, opondo-se, com efeito, a necessidade de fruição e apreensão crítica dos elementos da cultura corporal.
No limite, é preciso uma política compromissada com as reais necessidades de lazer das classes trabalhadoras, possibilitando uma efetiva fruição – ainda que dentro dos limites do capital e por consequência do tempo-de-não-trabalho – da cultura corporal além de uma apreensão crítica acerca de suas vivências, o que só pode ser exequível com a práxis pedagógica em que a ação humana transformadora esteja plenamente orientando o desenvolvimento a política de lazer, sem perder de vista as relações de classes.
Conclusões
O presente trabalho buscou refletir sobre a lógica do lazer na sociedade contemporânea. Compreendeu-se que no interior do sociometabolismo do capital o lazer se configura como um nicho de mercado crucial para a extração lucrativa dos setores empresariais.
A interpretação do lazer como tempo-de-não-trabalho não indica verdadeiramente que o indivíduo esteja se aproximando do lazer, contudo, se afastando dele e se aproximando, em verdade, do ócio, atividade necessária para reestabelecer energias para a lógica da atividade laborativa. Ora, lazer se trata de fruição, apreciação e apropriação plena e crítica de algo que satisfaça o ser social, destarte, as atividades que dela decorrem que possuem finalidade de lucro com manutenção do corpo para a atividade laborativa se configura, no nosso entendimento, como ócio.
As políticas de lazer sendo implementadas, sem nenhuma vinculação com o setor privado, tendo em vista as relações de classes, o caráter iníquo do capital, além de tratar as atividades oriundas da cultura corporal dentro de uma perspectiva da práxis, isto é, ação humana transformadora, é possível denotar que haverá avanços quanto ao desenvolvimento do lazer para as classes trabalhadoras.
De modo algum pretendeu-se esgotar essa temática, decerto, um trabalho de reflexões rudimentares não daria conta de tamanha dimensão da complexidade que é o lazer na sociedade contemporânea. Em verdade, a finalidade foi a de contribuição nos debates acerca da análise crítica do lazer como mercadoria e da possibilidade de engendrar práticas que estejam diretamente vinculadas ao sentido efetivo de lazer.
Referências
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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 30, Núm. 324, May. (2025)