ISSN 1514-3465
O jogo no desenvolvimento da criança com deficiência
intelectual. Um olhar na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural
The Game in the Development of Children with Intellectual Disabilities.
A Look from the Perspective of Historical-Cultural Theory
El juego en el desarrollo de niños con discapacidad intelectual.
Una mirada desde la perspectiva de la Teoría Histórico-Cultural
João Paulo dos Passos-Santos
joao.santos@ifpr.edu.br
Mestre e Doutorando em Educação
pela Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Docente de Educação Especial
pelo Instituto Federal do Paraná (IFPR)
(Brasil)
Recepción: 26/12/2024 - Aceptación: 29/04/2025
1ª Revisión: 09/04/2025 - 2ª Revisión: 26/04/2025
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0
|
Este trabalho está sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt |
Cita sugerida
: Passos-Santos, J.P. dos (2025). O jogo no desenvolvimento da criança com deficiência intelectual. Um olhar na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural. Lecturas: Educación Física y Deportes, 30(325), 123-140. https://doi.org/10.46642/efd.v30i325.8080
Resumo
Este estudo tem como objetivo analisar o jogo como atividade essencial para o desenvolvimento de crianças com deficiência intelectual (DI), sob a perspectiva da Teoria Histórico-Cultural (THC). O estudo destaca que os jogos são fundamentais para o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores (FPS) – percepção, atenção, imaginação, memória, pensamento e linguagem – em crianças com e sem DI, por constituírem a atividade principal na idade pré-escolar, proporcionando um contexto rico para a interação social, a exploração do mundo e a internalização de ferramentas culturais que mediam o desenvolvimento. Contudo, crianças com DI podem necessitar de mais tempo, mediações pedagógicas específicas e ensino sistematizado para alcançar o desenvolvimento esperado. A zona de desenvolvimento iminente é enfatizada como espaço crucial, focando nas potencialidades e não nas limitações do processo de aprendizagem e desenvolvimento escolar.
Unitermos:
Desenvolvimento humano. Jogo. Deficiência intelectual. Teoria Histórico-Cultural.
Abstract
This essay aims to analyze play as an essential activity for the development of children with intellectual disabilities (ID), from the perspective of the Historical-Cultural Theory (HCT). The study highlights that play is fundamental for the development of Higher Psychological Functions (HPFs) – perception, attention, imagination, memory, thought, and language – in children with and without ID, as it constitutes the primary activity in preschool age, providing a rich context for social interaction, world exploration, and the internalization of cultural tools that mediate development. However, children with ID may require more time, specific pedagogical mediations, and systematized teaching to achieve the expected development. The zone of proximal development is emphasized as a crucial space, focusing on the potentialities and not on the limitations of the school learning and development process.
Keywords:
Development. Game. Intellectual disability. Historical-Cultural Theory.
Resumen
Este estudio tiene como objetivo analizar el juego como actividad esencial para el desarrollo de niños con discapacidad intelectual (DI), desde la perspectiva de la Teoría Histórico-Cultural (THC). El estudio destaca que los juegos son fundamentales para el desarrollo de las Funciones Psicológicas Superiores (FPS) – percepción, atención, imaginación, memoria, pensamiento y lenguaje – en niños con y sin DI, ya que constituyen la principal actividad en la edad preescolar, proporcionando un contexto rico para la interacción social, la exploración del mundo y la internalización de herramientas culturales que median el desarrollo. Sin embargo, los niños con DI pueden necesitar más tiempo, mediación pedagógica específica y enseñanza sistemática para lograr el desarrollo esperado. Se enfatiza la zona de desarrollo próxima como un espacio crucial, centrándose en las potencialidades y no en las limitaciones del proceso de aprendizaje y desarrollo escolar.
Palabras clave
: Desarrollo humano. Juego. Discapacidad intelectual. Teoría Histórico-Cultural.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 30, Núm. 325, Jun. (2025)
Introdução
No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), o termo Deficiência Intelectual (DI) consta como "transtorno do desenvolvimento intelectual". Compreende-se a DI como o funcionamento intelectual e adaptativo1 abaixo da média, abrangendo os domínios conceitual, social e prático. O termo diagnóstico da DI equivale ao CID-11, que especifica a gravidade em leve, moderada, grave e profunda. (APA, 2023)
O DSM-V define algumas características essenciais da DI, como déficits em capacidades mentais genéricas, envolvendo avaliação clínica em que o resultado médio do Quociente de Inteligência (QI) apresente um valor de escore de cinco pontos abaixo do esperado (critério A), prejuízos na função adaptativa diária, comparadas a indivíduos com características próximas (critério B), e a ocorrência inicial no período do desenvolvimento (critério C). (APA, 2023)
Nesse sentido, Januzzi (2012) afirma que a Educação Especial, desde o século XIX, mostra-se como uma área de interesse por parte de pesquisadores, profissionais e principalmente das próprias pessoas com deficiência (PCD). Para Passos-Santos, e Herold Júnior (2023; 2024), observa-se hoje uma ênfase na capacidade produtiva humana, inclusive das PCD, sendo necessário repensar em conjunto qual seria o projeto de organização social interessante ao desenvolvimento e apropriação de conhecimentos de todos os brasileiros.
Autores da Teoria Histórico-Cultural (THC) foram utilizados como referencial teórico neste estudo, para fundamentar o jogo, a aprendizagem e o desenvolvimento de crianças com e sem deficiência: Vigotski (1997, 2000, 2001, 2007, 2009, 2018)2, Leontiev (2016), Luria (2016), Elkonin (1998), Jukovskaia (1990), Mukhina (1995), e Zaporózhets (1987, 2011). Desse encontro, reforça-se o interesse em investigar as contribuições dos jogos para crianças com DI, para o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores (FPS) – percepção, atenção, imaginação, memória, pensamento e linguagem.
Sobre as FPS, Luria (2016), fundamentado em Vigotski, explica que o desenvolvimento nos primeiros anos de vida ocorre em processos naturais com a herança biológica, trazendo impressões diretas relacionadas ao caráter emocional, regulando assim o córtex cerebral. Em seguida, na função reguladora da realidade e do comportamento, têm-se os sistemas interfuncionais adotados pela percepção dos objetos, memória concreta e, finalmente, pela atividade verbal, originando as demais FPS reconstituídas, atribuindo significados.
Shimazaki, e Mori (2012) discorrem que, no trabalho pedagógico com pessoas com DI, na mediação social, é necessário consolidar as funções que estão se desenvolvendo. Desse modo, o docente tem o papel de contribuir nas abstrações e, a partir daí, disponibilizar os subsídios para o discente reorganizar seu pensamento, mediando juntamente com toda a equipe escolar o processo de desenvolvimento das FPS.
Dentre as FPS, a linguagem3 é de suma importância, pois sem ela as funções elementares4 não se transformam em superiores, mediadas pelo uso dos signos e da cultura. Ela está presente no jogo em que a criança, na Educação Infantil (EI), assume papéis sociais que surgem na interação com o outro, representando situações que lhe chamam atenção no mundo adulto. Assim, deve-se objetivá-la como uma FPS extremamente relevante, por organizar as demais. (Mukhina, 1995; Elkonin, 1998; Pasqualini, 2006; Leontiev, 2016; Santos; 2018; Passos-Santos, e Shimazaki, 2020)
Diante disso, os "jogos", assunto de interesse deste estudo, são frequentemente mencionados nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a EI (DCNEIs), ao indicar caminhos para o trabalho pedagógico nos eixos da interação e da brincadeira (Brasil, 2010). Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), referente às ideias introdutórias à etapa da EI no contexto da educação básica, é reforçado o previsto nas DCNEIs:
Ainda de acordo com as DCNEI, em seu Artigo 9º, os eixos estruturantes das práticas pedagógicas dessa etapa da Educação Básica são as interações e a brincadeira, experiências nas quais as crianças podem construir e apropriar-se de conhecimentos por meio de suas ações e interações com seus pares e com os adultos, o que possibilita aprendizagens, desenvolvimento e socialização (Brasil, 2018, p. 37, grifos meus).
Desse modo, é orientado aos currículos e docentes que organizem as práticas pedagógicas de forma a proporcionar interações e experiências por meio de jogos na EI, elevando o patamar de conhecimentos das crianças, proporcionando o desenvolvimento e as aprendizagens desses sujeitos. Na THC, os conceitos "interações", "experiências", "jogos", "desenvolvimento" e "aprendizagem" ganham outro sentido, pois através desses processos o homem transforma suas funções psicológicas elementares em FPS.
Por outro lado, na THC, é necessário destacar a "vivência", pois ela "[...] é uma unidade na qual se representa, de modo indivisível, por um lado, o meio, o que se vivencia – a vivência está sempre relacionada a algo que está fora da pessoa [...]", e, por outro lado, como ela vivenciou isso (Vigotski, 2018, p. 78). A forma como a pessoa capta os traços das informações que a experiência proporcionada pelo meio torna-se "[...] uma unidade indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação que está representada na vivência". (Vigotski, 2018, p. 78)
Destarte, o jogo aparece como a atividade principal da idade pré-escolar (Mukhina, 1995) e, consequentemente, as vivências proporcionadas por ele devem ser levadas em consideração para o desenvolvimento das FPS das crianças (Vigotski, 2007; 2009; 2018). Com base nessas afirmações, os autores de base da THC neste estudo, e as demais literaturas correlacionadas a eles, foram selecionados, justificando-se a relevância de suas contribuições para a compreensão da influência da atividade lúdica nas FPS e no processo de ensino e aprendizagem.
O texto está estruturado em duas seções que exploram: [1] o jogo para o desenvolvimento da criança na THC e [2] o jogo no desenvolvimento da criança com DI. Ambas as seções se inter-relacionam com as implicações dessas teorias para a prática pedagógica, buscando responder à questão: quais as contribuições dos jogos na aprendizagem e desenvolvimento de crianças com DI, sob enfoque da THC? Contudo, o objetivo geral deste estudo é analisar o jogo como atividade essencial para o desenvolvimento de crianças com DI, sob a perspectiva da THC.
O jogo para o desenvolvimento da criança na THC
O jogo infantil, em sua gênese, distingue-se da ludicidade animal por ser uma atividade objetiva, intrinsecamente ligada à percepção que a criança desenvolve do mundo material e cultural dos objetos historicamente constituídos pela humanidade. Diferentemente do brincar animal, motivado por instintos, o jogo humano na primeira infância reflete a crescente compreensão dos significados e funções desses objetos dentro de um contexto cultural específico. Na idade pré-escolar, observa-se uma expansão consciente no conhecimento dos objetos do mundo adulto (Leontiev, 2016), o que enriquece o universo lúdico infantil, tornando as brincadeiras mais simbólicas e representacionais, como forma ativa de internalizar e se apropriar da realidade cultural.
Como ainda não existem condições físicas, também não há atividade teórica abstrata nessa faixa etária, ela acontece somente lado a lado à ação. Existe na criança a necessidade de agir com os objetos que a cercam, e o domínio vem posteriormente à medida que interage e é mediada pelos signos psicológicos, algumas vezes essa oposição na atividade lúdica5 é resolvida por meio das representações possíveis no jogo. (Pasqualini, 2006; Leontiev, 2016)
Assim, é na atividade lúdica que a criança utiliza objetos substitutos, de acordo com as reais relações que eles possuem para ela. No entanto, não é aceitável que ocorram variações dentre os objetos (Jukovskaia, 1990; Mukhina, 1995; Elkonin, 1998), como exemplo, "ela está disposta a [...] aceitar que a metade de uma vela seja o ursinho, que a vela inteira seja uma ursa e que a caixa de velas seja a cama do urso. Mas a criança não aceitará uma variante na qual o ursinho seja a caixa e a vela a cama" (Mukhina, 1995, p. 156). Isso ocorrerá, pois os objetos utilizados como suporte ao jogo deverão obter relação entre si de funcionalidade, para que se aproximem das significações desejadas pelo participante, caso contrário sairá do ambiente simbólico criado pelo jogador.
Logo, um fator importante ao desenvolvimento dos jogos são as relações sociais que adultos e crianças sempre tiveram na história da humanidade, ocorrendo pelas necessidades biológicas, quanto menor for a faixa etária. O afastamento da criança do mundo do trabalho também pode ter contribuído para o desenvolvimento do jogo infantil como ocorre hoje, pois além das condições físicas, essa foi a única forma de participar das atividades coletivas. (Elkonin, 1998; Pasqualini, 2006)
Destarte, os jogos que as crianças criam são ricos em conteúdo, geralmente trazem sentimento de alegria a quem participa e, ainda, tomam o papel de outra pessoa, comumente um adulto. Na maioria das vezes, ampliam criativamente os argumentos, surgindo na base do desenvolvimento da observação, memória, pensamento, sentimentos, imaginação, entre outros. (Jukovskaia, 1990)
Por meio do jogo é possível perceber uma grande contribuição no desenvolvimento da percepção visual e atenção. Isso ocorre porque "no começo da idade pré-escolar, a atenção da criança se concentra nos objetos e nas ações de seu meio, mas a criança só se mantém concentrada até seu interesse desvanecer" (Mukhina, 1995, p. 284). Ademais, "a relação entre o uso do instrumento e a fala afeta várias funções psicológicas, em particular a percepção, as operações sensório-motoras e a atenção, cada uma das quais é parte de um sistema dinâmico do comportamento". (Vigotski, 2007, p. 21)
A atividade principal, ou seja, a participação encontrada com mais frequência em cada fase do desenvolvimento, é caracterizada pela necessidade de dominação do brinquedo, e na pré-escola pela realização do jogo. Na fase pré-escolar, a criança geralmente não brinca mais do que três ou quatro horas por dia, mas a questão da quantidade do tempo não é o que realmente importa. A relevância nesse caso seria a influência da atividade em conexão com as principais mudanças que estão ocorrendo, nas quais se desenvolvem os processos psíquicos, preparando o caminho para a criança se desenvolver da melhor maneira possível. (Pasqualini, 2006; Leontiev, 2016)
E, segundo Mukhina (1995), o conteúdo do jogo também varia conforme a experiência, por isso, geralmente crianças mais velhas possuem maior variedade e duração em seus jogos. Os pré-escolares, na maioria das vezes, repetem as ações inúmeras vezes e o jogo surge de acordo com o objeto que possuem, gerando vários conflitos entre eles, trocando de papéis diversas vezes. Os de idade mediana possuem "[...] um caráter mais concentrado do que os atos dos menores". (Mukhina, 1995, p. 159)
Com base na literatura de Vigotski (2007), um fator que converge em todos os jogos é a presença de regras, posto que até mesmo quando puramente imaginários, eles possuem formas de regular o comportamento, fundamentados no conceito que previamente possuem. Um exemplo seria quando duas irmãs decidem brincar de irmãs, de acordo com o que conhecem sobre tal assunto, elas encenam a realidade, ou seja, fantasiam o que é verdadeiro com base nas condutas que possuem, criam de forma imaginária as regras do que uma irmã faz e não faz. Posteriormente, as regras vão perdendo o caráter puramente lúdico, tornando-se visíveis, porém, nunca deixam de existir. A imaginação também não desaparece nos jogos de crianças em idades em idade escolar, porque quando é limitada a possibilidade de ação pelas regras explícitas, torna-se necessário imaginar outras formas de atingir o objetivo.
Elkonin (1998) explica que na EI é conservada uma unidade interna em relação aos jogos com regras e de personagens, onde as normas emergem do próprio enredo da brincadeira. Somente ao final da pré-escola "[...] se destacam regras convencionais totalmente desligadas do argumento" (Elkonin, 1998, p. 396), indicando uma crescente capacidade da criança de compreender e seguir normas abstratas, independentes de um contexto imaginário. O autor teoriza sobre uma tendência em que a criança parece estar preparada para ir à escola quando as regras ganham caráter convencional, demonstrando um avanço na autorregulação e na adaptação a sistemas sociais estruturados.
Existe ainda, segundo Pasqualini (2006) e Leontiev (2016), uma diferença entre a operação e a ação, sendo que a operação nem sempre corresponde à ação. A operação corresponde aos meios em que a ação é realizada, ou seja, as relações objetivas, e não simplesmente o objeto. Um exemplo é a brincadeira de cavalinho de pau. A criança usa um bastão para cavalgar no cavalo, imaginando a ação, porque na realidade ela não pode realizar essa atividade. A madeira nesse caso seria a operação e o cavalo imaginário a ação. Logo, "torna-se muito importante compreender que a criança não realiza toda essa transformação de uma só vez, porque é extremamente difícil para ela separar o pensamento (o significado de uma palavra) dos objetos". (Vigotski, 2007, p. 115)
A operação lúdica é também real, ela não é encarada como fantástica. A diferença de uma situação que não é uma brincadeira é puramente a motivação, a ação lúdica é encarada no psicológico independente do resultado, pois o que motiva sua realização não depende de resultado (Leontiev, 2016). Vigotski (2007) e Cavasin (2018) fundamentam que os signos auxiliares proporcionam uma fusão entre o sensorial e a ação, possibilitando novos comportamentos que criam uma barreira funcional compreendida entre a ação inicial e final no processo de escolha.
Desse modo, a utilização do sistema de signos reorganiza a totalidade do sistema psicológico, sendo o sujeito a partir de então, capaz de dominar seu movimento. O que ocorre é um deslocamento da percepção direta, em detrimento das funções simbólicas no momento de escolha. Esse processo é muito importante na aprendizagem, uma vez que "esse desenvolvimento representa uma ruptura fundamental com a história do comportamento e inicia a transição do comportamento primitivo dos animais para as atividades intelectuais superiores dos seres humanos". (Vigotski, 2007, p. 27)
Mukhina (1995), Vigotski (2007) e Cavasin (2018) ainda afirmam que em idade pré-escolar, a criança já pode, com a ajuda do adulto, operar com signos, agindo não só biologicamente, mas com motivos sociais objetivados nesse meio. A utilização do signo acontece somente na dimensão psicológica, sendo assim, primeiramente no plano interpsicológico, posteriormente no intrapsicológico.
Da mesma forma, os signos psicológicos são de extrema relevância no desenvolvimento da criança, e durante o jogo existe a possibilidade de potencializá-lo, pois serão utilizados por toda a vida durante as interações sociais, em especial nas aprendizagens mais abstratas, como a leitura e escrita, proporcionadas geralmente pela escola. Vigotski (2000) relata que é na mediação entre objetos e pessoas que se emprega o signo, e ao utilizar-se da linguagem que são produzidos os sinais artificiais. E para Mukhina (1995) e Pasqualini (2006), conforme a criança desenvolve a capacidade de elaborar e utilizar um argumento complexo e planejar uma ação em conjunto com outras crianças, ocorre a necessidade de reconhecimento dentre os participantes, ajustando seus desejos e possibilidades.
Então, a criança assume nos papéis ao mesmo tempo uma necessidade de operar sobre várias perspectivas, tendo em vista que ela atua em novas formas de comportamentos, porque ao mesmo tempo ela deve pensar como ser singular e, também como se fosse o outro, comparando-se a um diferente modelo. Ela vai aprendendo novas formas de relacionamento e constituindo sua própria conduta. (Marcolino, Barros & Mello, 2014)
Em relação às atividades práticas da criança pré-escolar, para que elas não sejam concentradas apenas na dimensão ambiental, limitando o desenvolvimento das FPS em funções elementares, Zaporózhets (1987) esclarece que se for utilizado todo o potencial que o jogo oferece, por intermédio de diferentes formas de aprendizagem de maneira intencional, possibilita-se a formação e transformação de novos tipos mais elevados de atividade motora na EI. E caso os novos movimentos ensinados, em que a criança ainda não os domina, não se automatizaram, eles devem ser formados em outro contexto, em outra atividade, antes de serem utilizados na resolução de tarefas práticas.
Por intermédio da autoria de Zaporózhets (2011), compreende-se que a percepção é um processo muito complexo, e por esse motivo inclui processos elementares e sensoriais, também como procedimentos mais complexos perceptivos e ações propriamente ditas. Aos sujeitos deverá ser oportunizado um desenvolvimento, em que suas percepções vão sendo atreladas a um reconhecimento como um protagonista em seu contexto sociocultural.
Logo, na interação social, há o favorecimento do desenvolvimento da linguagem, quando a criança sente a necessidade em dialogar com o outro, ou manusear objetos, para atribuir suas significações, e segundo Luria (2016) parafraseando Vigotski, a atividade verbal "palavra", que dá origem a todos os demais processos psicológicos reconstituídos, possibilitando atribuir significados. E nos constructos de Vigotski (2009), a ação é o princípio da linguagem, seguida da palavra que "[...] lhe parece o estágio supremo do desenvolvimento do homem comparada à mais suprema expressão da ação [...] A palavra é o fim que coroa a ação". (Vigotski, 2009, p. 485)
Assim, o jogo vai se desenvolvendo com a ação em segundo plano, mas separar o significado de objetos diverge da ação. Operar no significado de coisas leva ao pensamento abstrato, mas o desenvolvimento da vontade acontece por meio de escolhas conscientes, operando no significado das ações. A dificuldade concerne em mudança afetiva e não lógico concreta, por isso, o jogo é uma contradição no desenvolvimento. (Pasqualini, 2006; Vigotski, 2007)
Jukovskaia (1990) descreve esta forma de jogo como a reprodução, pela criança, de eventos, objetos e as pessoas que os manipulam no mundo ao seu redor. O fascínio por esses fenômenos impulsiona a criança a imitá-los e recriá-los em seu brincar. Seja a sonoridade de um trem ou os gestos de um adulto em uma atividade específica, o que impressiona torna-se o núcleo da atividade lúdica. Ao simular essas ações e sons, a criança desenvolve a observação e a compreensão inicial do ambiente físico e social, internalizando suas dinâmicas. (Jukovskaia, 1990)
Para Jukovskaia (1990), nos jogos de papéis, a criança transcende a simples imitação, incorporando a identidade de um adulto ou personagem. Brincar de piloto ou de médico exige a representação de ações, falas e traços de personalidade, fomentando a imaginação e a representação simbólica. Sob a lente da teoria de Vigotski (2018), esses jogos se manifestam na Zona de Desenvolvimento Iminente, pois ao assumir papéis mais complexos com o apoio de outras crianças ou adultos, a criança ensaia e internaliza comportamentos e compreensões sociais que ainda não domina completamente em seu cotidiano (Vigotski, 2018). Essa interação e imitação de modelos mais experientes impulsionam o desenvolvimento da empatia e da capacidade de descentração. (Jukovskaia, 1990; Vigotski, 2007)
Jukovskaia (1990) também caracteriza os jogos como a reprodução de fenômenos em imagens materiais, onde a criança expressa seu conhecimento do mundo através da criação de representações concretas. Modelar com massinha ou construir com blocos permite à criança materializar sua compreensão. Essa atividade estimula a criatividade, o raciocínio espacial e a coordenação motora, além de facilitar a transformação de ideias abstratas em formas tangíveis (Jukovskaia, 1990). Ao manipular materiais para representar o mundo, a criança organiza seu pensamento e desenvolve sua capacidade de simbolização.
Como foi possível verificar, na THC o jogo possui diversas funções no desenvolvimento humano, especialmente à criança. E o processo educacional na EI se mostra como um período crucial à formação e transformação das FPS. Logo, entende-se o jogo como um instrumento pedagógico de extrema importância à crianças com DI, tendo em vista os limitantes cognitivos correlatos a esse diagnóstico, e que podem ser potencializados na ação lúdica, favorecendo o desenvolvimento das FPS desses sujeitos.
O jogo no desenvolvimento da criança com DI
O jogo para crianças com DI está sofrendo grande influência de um tradicionalismo e uma posição hoje ultrapassada. Encontra-se em turmas de Educação Especial maneiras estereotipadas de trabalho pedagógico, ocasionando nos alunos desinteresse, fator que nega o potencial do aluno. (Ribeiro, 2011; Santos, 2018; Cavasin, 2018; Passos-Santos, e Shimazaki, 2020)
Vigotski (1997) cita que o aspecto clínico pode restringir o desenvolvimento da criança com DI, observando a limitação como dificuldade e não um processo. Inicialmente, a DI parecia um problema para a escola burguesa, planejando objetivos puramente negativos, selecionando os alunos que poderiam estudar e aqueles que não deveriam aprender, restringindo o potencial dos alunos com dificuldades na aprendizagem. As abordagens qualitativas mensuradas por testes, como um exemplo Binet, não observam as possibilidades de aprendizagem, somente os ciclos de aprendizagem já concluídos.
De acordo com Ribeiro (2011), são vários os fatores que contribuem para que ainda existam na escola essas barreiras. A autora reflete sobre uma necessidade de discussão acerca do tema, mas também percebe que existem esforços isolados por parte de diversos professores, porém, sem um necessário respaldo científico "[...] para documentar e divulgar suas atividades, compartilhando-as com a comunidade, o que produziria efeitos mais conscientes". (Ribeiro, 2011, p. 150)
Para Mukhina (1995), Vigotski (1997), Pasqualini (2006) e Cavasin (2018) qualquer situação que explique aparentemente a criança em caráter de atraso em seu desenvolvimento, depende de muitas condições psíquicas. Averiguar as causas é o principal problema da psicologia infantil, não se propondo apenas encontrá-las, mas sim quais influências sofrem e, desse modo, como superá-las.
As crianças com acentuadas irregularidades no desenvolvimento não são a regra, são a exceção. A psicologia se interessa sobretudo pelas regras. Sem elas é impossível entender as exceções. Por isso, uma das principais tarefas da ciência não é destacar as circunstâncias particulares do desenvolvimento, mas destacar o significado das condições gerais, graças às quais a criança se converte em pessoa e sem as quais é impossível o desenvolvimento normal (Mukhina, 1995, p. 36, grifos da autora).
A citação de Mukhina (1995) enfatiza que as irregularidades no desenvolvimento são exceção, e a psicologia foca nas regras gerais para entender tais casos. Assim, a prática pedagógica com crianças com deficiência deve ir além da identificação de dificuldades, investigando causas e buscando a superação por meio de ensino adequado. O processo de ensino-aprendizagem torna-se crucial ao criar um ambiente estimulante que mobilize o potencial da criança, compense dificuldades e promova seu desenvolvimento pleno, focando no que ela pode aprender e oferecendo suporte individualizado.
Com o conceito de zona de desenvolvimento iminente, Vigotski baliza que "o jogo vivido pela criança deficiente mental6 permite a redução desta distância e a revisão do papel do professor, porque, para que ele seja realmente um mediador, um articulador, ser-lhe-á exigido muito estudo, coerência e comprometimento" (Ribeiro, 2011, p. 152), para ampliar a proximidade entre o conhecimento escolar do aluno com DI e o potencial metodológico oferecido pelo jogo.
Em contribuição à educação escolar de alunos com deficiência, Vigotski (1997) sugere três pontos sobre o conceito de compensação da deficiência:
Devem-se substituir as faltas pelas possibilidades, optando pela opção científica favorável, pois assim, juntamente com as deficiências estarão as forças para superá-la. A supercompensação vem a ser o ponto extremo dos possíveis desenlaces deste processo. Outro ponto é o fracasso da compensação, porque ao ser frustrada ela é convertida em uma barreira defensiva, orientando o planejamento por um caminho falso e negativo. Situa entre esses dois polos, níveis possíveis de compensação, desde o mínimo até o máximo.
Evitar a confusão das ideias da compensação que leve a valorização mística da deficiência, como se fosse um sofrimento. Ocorre uma potencialização da doença em detrimento da saúde. Nessa teoria não se valoriza o sofrimento, mas sim sua superação, contrariando o que é defeituoso. Para que ocorra a supercompensação, o sujeito deve ser compreendido com suas capacidades de desenvolvimento cultural, delimitando-se com clareza o rompimento com a ideia da psicologia do ideal cristão e da debilidade, como exemplo, o pensamento nietzcheano da força individual.
A teoria da compensação é delimitada entre a antiga teoria biológica ingênua de compensação dos órgãos dos sentidos. Assim, os órgãos dos sentidos são equiparados como se fossem gêmeos; o tato e o ouvido compensam a visão perdida, ou seja, o que está menos orgânico é coberto por outra estrutura biológica, sem discutir as questões da psicologia social, em que o ouvido impulsiona a utilização das sensações da pele às compensações, tendo em vista que a visão não afeta as funções imprescindíveis à vida. O que a THC discute, nesse caso, é que a ausência da visão ocasiona o desenvolvimento de uma função psicológica superior sobre estrutura, assim, no cego, existe um desenvolvimento superior da memória, atenção e aptidões verbais.
Nesse contexto, ao analisar o conceito de compensação com um aluno com deficiência múltipla severa em um contexto de inclusão, Dainez (2014) e Cavasin (2018) trouxeram algumas reflexões importantes à área da Educação Especial. As autoras afirmam que quando essa conceituação é reduzida, pressupondo somente a correção do defeito, pode não considerar a heterogeneidade de práticas e as várias formas de participação e constituição social, possibilitando uma visão ingênua à dinâmica das relações sociais que compõem o funcionamento da mente à mudança, pois Vigotski trabalha na formação das condições de vida. Dessa forma, as autoras salientam que as considerações sobre a compensação necessitam sempre da ressignificação do desenvolvimento humano.
Sendo assim, a THC fundamenta que, durante a infância tem-se a fusão do desenvolvimento humano (cultural e biológico) em duas linhas paralelas que se fundem. Entretanto, na criança com deficiência, geralmente isso não ocorre, os planos se desenvolvem em menor ou maior grau. Consequentemente, determina-se que para eles sejam criadas vias colaterais de desenvolvimento cultural, objetivando formas de condutas especiais para formar fins experimentais. (Vigotski, 2000)
O autor supracitado explica ainda que rudimentos da linguagem verbal que apareceram na idade escolar, em uma criança com deficiência, de forma geral ocorrem aos dezoito meses (Vigotski, 2000, p. 44):
[...] comparativamente deve-se estudar o desenvolvimento verbal; assim temos uma chave para aprender o entrelaçamento do desenvolvimento biológico e cultural em criança normal. Divergência e entrelaçamento devem mutuamente explicar em um estudo comparativo entre si. (Vigotski, 2000, p. 44, tradução nossa)
Para tanto, o autor ainda esclarece que se deve estudar a história do desenvolvimento cultural da criança com e sem deficiência, mas como um processo único em sua natureza e diferente na maneira de seu curso.
Dainez (2014), Cavasin (2018) e Passos-Santos, e Shimazaki (2020) complementam que a discriminação é sem dúvida um problema que perpassa toda a história da PCD, contudo, hoje essas pessoas ganharam maior visibilidade, com o aparecimento na mídia e em diversas discussões políticas. Mas, ainda se torna necessário acreditar em um trabalho educativo que conduza o indivíduo a desenvolver suas potencialidades que levem a pessoa à humanização.
Deve-se levar em consideração que as crianças com DI podem necessitar de um maior tempo em sua escolarização e com recursos especiais para que possam chegar a níveis elevados de pensamento, entretanto não podem ser subestimadas. Todavia, não se pode dizer que ele chegará ao mesmo desenvolvimento que àquelas crianças sem comprometimento, fato este, que não impede o sujeito de ser desafiado, conduzindo-o à generalização do pensamento, e a transformação de suas FPS. (Garcia, 2012; Mori et al., 2017; Santos, 2018; Passos Santos, Shimazaki, 2020)
Para tanto, ao utilizar o jogo um recurso à educação, o professor será o responsável pela organização do espaço físico e esfera lúdica. Nessa concepção, o aluno não deve ser limitado, deve ter espaço para suas decisões, valorizando ao máximo o que o jogo pode oferecer. Porém, quando se trata da criança com DI, não é possível um planejamento ao acaso, ele deve conduzir a criança às suas ressignificações. Caso a aula não ocorra de maneira coerente, o educando pode ser limitado unicamente a uma atmosfera simbólica específica. (Ribeiro, 2011; Santos, 2018)
As ideias de Vigotski conduzem ao pensamento de que a condição de deficiência não impede a ação social e educacional, pelo contrário, a possibilidade de desenvolvimento é idealizada no âmbito social, pois é constitutivo do psiquismo humano que conduz e orienta os rumos a se desenvolver. O princípio da educação não é enfatizar as especificidades da deficiência para correção do defeito, mas é o investimento para promover as possibilidades que podem ser determinadas no processo de trabalho do homem sobre o homem (Dainez, 2014; Cavasin, 2018).
[...] de forma totalmente distinta, veremos que nos oferece a possibilidade de estudar comparativamente o desenvolvimento verbal; dispomos assim de uma chave para apreender o entrelaçamento do desenvolvimento biológico e cultural na criança normal. A divergência e o entrelaçamento se esclarecem e explicam mutuamente em um estudo comparativo entre si. (Vigotski, 2000, p. 44, tradução nossa)
À vista disso, Jukovskaia (1990) exemplifica a importância do jogo entre crianças com desenvolvimentos diferentes:
Quando, no jogo, o forte ajuda o fraco, obtém-se um duplo benefício; no fraco o sentimento de simpatia, de carinho amigável se desenvolve por sua vez. Em conversas individuais com crianças mais desenvolvidas, os educadores falam sobre a ajuda real que deve ser dada aos mais fracos. [...] Esse estímulo do relacionamento amigável com os companheiros desperta nas crianças o desejo em se tratar melhor. (Jukovskaia, 1990, p. 307, tradução nossa)
A coletividade proporciona a vivência de ações reais em diversas situações do jogo. Em turmas com crianças com e sem deficiência, um pode contribuir com o outro, em especial aqueles que estão em maior desenvolvimento. Em relação à DI, por exemplo, professor e amigos mais desenvolvidos auxiliam nas abstrações, compensando algumas possíveis limitações na compreensão e raciocínio.
Todavia, é necessário que o professor tenha atenção, visto que tal colaboração "[...] não deve ser incorporada a uma forma perigosa de superioridade de algumas em relação a outras. É necessário realizar o processo educativo para que a criança que solicitada ajuda, também tenha a oportunidade de servir outro parceiro". (Jukovskaia, 1990, p. 308)
Para tanto, a intervenção do professor tem função de grande importância, necessitando de atenção ao intervir nas condutas exageradas que podem surgir nas interações entre as crianças e, da mesma forma, é possível que estejam apresentando alguma característica do comportamento docente observada por eles, nesse caso, é válida uma autoavaliação a respeito da postura e métodos adotados durante as mediações dos conhecimentos que objetivam a compensação da deficiência.
É na vida social e coletiva da criança e na socialização de sua conduta, segundo Vigotski (1997), que se encontra o suporte para construir as funções internas que dão origem ao processo de desenvolvimento compensatório. Não se pode entender que o destino da criança DI é diferente do das demais pessoas, por possuir capacidade biológica diferente, pois isso está determinado no desenvolvimento das FPS.
Assim sendo, para incrementar o jogo no currículo escolar de crianças com deficiência ou não, é preciso ter coragem. Esse instrumento pedagógico apresenta ambiguidades ao oferecê-lo no planejamento, de acordo com os objetivos propostos. Dessa maneira, o professor deve estar preparado para agir com mediações precisas, ao surgir às incertezas da resposta infantil. (Ribeiro, 2011; Santos, 2018; Mori et al., 2017; Passos-Santos, e Shimazaki, 2020)
A análise da literatura sob a lente da THC revela que o jogo transcende a noção de uma simples atividade recreativa, configurando-se como uma poderosa manifestação cultural e uma rica fonte de experiências para crianças com DI. O jogo, em sua essência, promove a interação vital com o outro humano – sejam os pares da turma ou os educadores – e com o mundo não humano, abrangendo a exploração de objetos e a vivência em diferentes espaços. Essas interações, permeadas por trocas e vivências singulares, demonstram um potencial significativo para impulsionar diversas áreas do desenvolvimento desses educandos, abrangendo o pessoal, o afetivo, o motor e o social.
No entanto, a perspectiva da THC nos convida a uma reflexão mais aprofundada sobre a aplicação pedagógica do jogo no contexto da DI. Não se trata meramente de organizar atividades lúdicas de forma intencional, mas de reconhecer que a escolha e a metodologia dos jogos devem estar intrinsecamente conectadas ao tipo e ao nível específico da deficiência apresentada por cada criança. A eficácia do jogo como ferramenta de aprendizagem e desenvolvimento não se resume à disponibilidade de recursos materiais dentro do ambiente escolar.
A questão crucial que emerge da THC reside na natureza desse ambiente escolar em sua totalidade. Ele verdadeiramente favorece a prática do jogo em suas múltiplas facetas? Essa cultura lúdica se manifesta de forma integrada nos diversos espaços de aprendizagem, como na sala de aula do ensino comum, na sala especializada do AEE e até mesmo nos momentos informais como o recreio?
Sob o prisma da THC e de seus autores, a contribuição do jogo para esses educandos vai além de uma prática organizada e bem-intencionada. A teoria nos direciona a considerar como a mediação do educador – tanto o do ensino comum quanto o do AEE – pode transformar o jogo em uma ferramenta de ensino eficaz. A chave reside em compreender a Zona de Desenvolvimento Iminente de cada criança (Vigotski, 2018) e em orquestrar atividades lúdicas que, embora desafiadoras, sejam acessíveis com o suporte adequado. Ao intervir de forma estratégica durante o brincar, o educador atua como um facilitador da internalização de novas habilidades e conhecimentos, impulsionando o desenvolvimento das FPS.
Portanto, a contribuição dos jogos na aprendizagem e desenvolvimento de crianças com DI, sob o enfoque da THC, reside na sua capacidade de oferecer um contexto significativo para a interação social autêntica, a exploração ativa do mundo e a internalização de ferramentas culturais essenciais. A resposta à questão-problema não se limita a afirmar a importância do jogo, mas a sublinhar a necessidade de uma mediação pedagógica qualificada e sensível às especificidades da deficiência, que reconheça o potencial do jogo como um instrumento para a constituição plena desses indivíduos como seres sociais ativos e em constante transformação.
Conclusões
O jogo organizado em um processo educativo que tenha intencionalidade, certamente é a vivência indicada, tanto ao professor quanto ao aluno. Levando assim, em consideração que as FPS de todos os sujeitos apresentem avanços ao considerar-se a história individual e as possibilidades iniciais de cada um.
Observa-se que a linguagem de maneira geral, é uma função relevante no desenvolvimento da criança e está presente no jogo, conforme fundamenta Vigotski (2018), pois é por meio da linguagem significada na comunicação, que há o intercâmbio sociocultural e o pensamento torna-se generalizante. Portanto, é favorecido o processo de abstração e generalização.
A partir da perspectiva da THC, compreende-se que o jogo desempenha um papel crucial no processo de desenvolvimento das FPS de crianças com DI, assim como para os demais sujeitos na idade pré-escolar, sendo reconhecido como a atividade principal desse período do desenvolvimento. Contudo, é plausível inferir, com base nos princípios da THC e nas particularidades do desenvolvimento atípico, que os sujeitos com DI podem necessitar de mais tempo, mediações pedagógicas específicas e oportunidades de ensino sistematizado para alcançar os níveis de significação e desenvolvimento que o jogo tipicamente oferece. Nesse sentido, a Zona de Desenvolvimento Iminente emerge como o espaço simbólico que demanda maior atenção, pois direciona o foco para as potencialidades e não para as limitações inerentes ao processo de aprendizagem e desenvolvimento escolar.
Diante do exposto, sugere-se a continuidade de estudos que objetivem analisar a aprendizagem e o desenvolvimento das FPS de alunos com DI na idade pré-escolar. Nessa direção, pesquisas futuras poderiam incluir o planejamento e a implementação de intervenções pedagógicas específicas, fundamentadas na apropriação de conceitos científicos da THC, visando a criação de evidências empíricas sobre a eficácia de diferentes abordagens lúdicas mediadas. Entretanto, a visão ingênua de inclusão no ensino comum, que busca proporcionar ao aluno a compensação de sua deficiência primordialmente por meio das interações sociais potencializadas na Zona de Desenvolvimento Iminente, certamente necessita de novas discussões e ressignificações. É imperativo que a inclusão não ocorra a qualquer custo, sob o risco de, paradoxalmente, excluir ainda mais a PCD, negligenciando suas necessidades educacionais específicas e a mediação pedagógica individualizada que a THC preconiza.
Notas
Entende-se por comportamento adaptativo a funcionalidade do indivíduo em várias situações de sua vida: habilidades conceituais (linguagem, leitura, escrita, matemática, raciocínio), sociais (interpessoais, responsabilidade social, autoconsciência) e práticas (cuidados pessoais, vida diária, saúde/segurança, vocacionais), em comparação com indivíduos da mesma idade e cultura. Essas limitações devem coexistir com déficits intelectuais e ter se manifestado no período de desenvolvimento (até os 18 anos).
Vigotski é central na THC e estudos da educação especial por destacar o papel da interação social e da cultura no desenvolvimento cognitivo de indivíduos com deficiência, oferecendo caminhos para a compensação de dificuldades através da mediação. Sua teoria da Zona de Desenvolvimento Iminente e a ênfase na linguagem e ferramentas culturais fornecem bases para práticas pedagógicas inclusivas que exploram o potencial de aprendizado. Essa perspectiva inovadora, focada na superação de desafios e no desenvolvimento máximo, o torna o autor mais citado em pesquisas da área. (Dainez, 2014)
Na falta de desenvolvimento da linguagem oral, no caso do surdo, por exemplo, Vigotski (1997) nos explica que deverá ocorrer uma compensação da ausência da oralidade, em que, mediante o desenvolvimento cultural, serão desenvolvidas outras formas de comunicação por memorização visual por meio de gestos, sinais e expressões faciais, como às línguas de sinais organizadas em meio à comunidade da população surda.
As funções psicológicas elementares, segundo Vigotski (2000), são processos biológicos caracterizados pelo imediatismo, pois restringem o desenvolvimento humano às respostas direcionadas por situações-problemas ao organismo, por meio de questões ligadas ao estímulo ambiental. Nas FPS há interação na atividade mediada pelos signos psicológicos e pela cultura.
Para o estudo da história do lúdico, entendido aqui como a atividade espontânea e prazerosa de brincar, sugere-se a leitura da obra clássica Homo Ludens de Johan Huizinga (1994).
Este estudo permaneceu com a nomenclatura original do texto, no entanto, para esta pesquisa foi adotada como indica a literatura o termo “deficiência intelectual”.
Referências
American Psychiatric Association (2023). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5-TR (5ª ed., texto revisado). Artmed Editora.
Brasil (2010). Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. MEC, SEB. http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/diretrizescurriculares_2012.pdf
Brasil (2018). Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação. https://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf
Cavasin, M.F.S. (2018). Educação e desenvolvimento do psiquismo da pessoa com deficiência visual: um estudo sob a perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural [Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá]. https://ppi.uem.br/arquivos-2019/PPI_2018%20Fatima%20Cavasin.pdf
Dainez, D. (2014). Constituição humana, deficiência e educação: problematizando o conceito de compensação na perspectiva histórico-cultural [Tese de doutorado em Educação. Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas,]. https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/927683
Elkonin, D.B. (1998). Psicologia do jogo. Editora Martins Fontes.
Garcia, D.I.B. (2012). Aprendizagem e desenvolvimento das funções complexas do pensamento e a deficiência intelectual na perspectiva histórico-cultural. In: E.M. Shimazaki, e E.R. Pacheco (Orgs.), Deficiência e inclusão escolar (pp. 69-82). Editora da Eduem.
Januzzi, G.S.M. (2012). A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI (3ª ed.). Autores Associados.
Jukovskaia, R.I. (1990). La educación del niño en el juego (2ª ed.). Editorial Pueblo y Educación.
Leontiev, A.N. (2016). Os princípios da brincadeira pré-escolar. In: L.S. Vigotskii, A.R. Luria, e Leontiev, A.N. (Orgs.), Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem (14ª ed., pp. 119-142). Ícone Editora.
Luria, A.R. (2016). Vigotskii. In: L.S. Vigotski, A.R. Luria, y A.N. Leontiev (Orgs.), Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (14ª ed., pp 21-38). Ícone Editora.
Marcolino, S., Barros, F.C.O.M., e Mello, S.A. (2014). A teoria do jogo de Elkonin e a educação infantil. Psicol. Esc. Educ., 18(1), 1-10. https://doi.org/10.1590/S1413-85572014000100010
Mori, N.N.R., Passos-Santos, J.P., Shimazaki, E.M., Goffi, L.C.D., e Auada, V.G.C. (2017). Jogos e brincadeiras no desenvolvimento da atenção e da memória em alunos com deficiência intelectual. Práxis Educativa, 12(2), 551-569. https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.12i2.0015
Mukhina, V. (1995). Psicologia da idade pré-escolar. Editora Martins Fontes.
Pasqualini, J.C. (2006). Contribuições da psicologia Histórico-Cultural para a educação escolar de crianças de 0 a 6 anos: desenvolvimento infantil e ensino em Vigotski, Leontiev e Elkonin [Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho]. http://hdl.handle.net/11449/90339
Passos Santos, J.P., e Shimazaki, E.M. (2020). Intervenção pedagógica por meio de jogos para o desenvolvimento de crianças com deficiência intelectual. Interfaces da Educação, 11(33), 544-563. https://doi.org/10.26514/inter.v11i33.4426
Passos-Santos, J.P., e Herold Junior, C. (2023). História do autismo: ideias, conceitos, práticas e instituições (1930-2010). Cadernos de História da Educação, 22. https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-228
Passos-Santos, J.P., e Herold Junior, C. (2024). História do autismo na Viena Nazista de Hans Asperger: da educação curativa à eutanásia infantil. Revista HISTEDBR Online, 24. https://doi.org/10.20396/rho.v24i00.8668131
Ribeiro, M.L.S. (2011). O jogo na organização curricular para deficientes. In: T.M. Kishimoto (Org.), Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação (14ª ed., pp. 149-160). Cortez Editora.
Santos, J.P. dos P. (2018). Jogos educacionais no desenvolvimento das funções psicológicas superiores em crianças com deficiência intelectual [Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Estadual de Maringá, Maringá].
Shimazaki, E.M., e Mori, N.N.R. (2012). A formação de conceitos por pessoas com deficiência intelectual. In: R.C. Faustino, e L.T. Mota (Orgs.). Cultura e diversidade cultural: questões para a Educação (pp. 209-226). Editora Eduem.
Vigotski, L.S. (1997). Fundamentos de defectologia (Obras Escogidas, Tomo V). Editorial Visor.
Vigotski, L.S. (2000). Problemas del desarrollo de la psique (Obras Escogidas, Tomo III, 2ª ed.). Editorial Visor.
Vigotski, L.S. (2001). Pensamiento y lenguaje (Obras Escogidas, Tomo II, 2ª ed.). Editorial Visor.
Vigotski, L.S. (2007). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores (7ª ed.). Editora Martins Fontes.
Vigotski, L.S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem (2ª ed.). Editora Martins Fontes.
Vigotski, L.S. (2018). Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia. Organização e tradução: Zoia Prestes, Elizabeth Tunes. Editora E-Papers.
Zaporózhets, A.V. (1987). Estudio psicológico del desarrollo de la motricidad em el niño preescolar. In: V. Davidov, e M. Shuare (Orgs), La Psicología Evolutiva y Pedagógica en la URSS (antología) (pp. 71-82). Editorial Progreso.
Zaporózhets, A.V. (2011). Características de la actividad orientativo-investigativa y su papel en la formación y la realización de los movimientos voluntarios. In: L.Q. Rojas, e Y. Soloviera (Orgs.), Las funciones psicológicas en el desarrollo del niño (2ª ed. pp. 127-177). Editorial Trillas.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 30, Núm. 325, Jun. (2025)