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ISSN 1514-3465

 

Algumas reflexões sobre os jogos: potenciais e limites

Some Reflections about Games: Potential and Limits

Algunas reflexiones sobre los juegos: potencialidades y límites

 

José Vicente Martins*

jmvin@terra.com.br

Fábio Ricardo Mizuno Lemos**

mizunolemos@gmail.com

 

*Especialista em Educação: Ciência, Tecnologia e Sociedade

pelo Instituto Federal de São Paulo (IFSP)

Bacharel e Licenciado em Educação Física pela UFSCar

Técnico de Jogos de Tabuleiro do Município de São Carlos-SP

**Doutor em Educação pela UFSCar

Mestre em Educação pela UFSCar

Licenciado em Educação Física pela UFSCar

Professor do IFSP e do Programa de Mestrado Profissional

em Educação Física em Rede Nacional (ProEF/UFSCar)

Líder do Núcleo de Investigações Progressistas em Educação (NINPED/IFSP)

(Brasil)

 

Recepção: 27/11/2022 - Aceitação: 28/06/2023

1ª Revisão: 25/04/2023 - 2ª Revisão: 25/06/2023

 

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Citação sugerida: Martins, J.V., e Lemos, F.R.M. (2023). Algumas reflexões sobre os jogos: potenciais e limites. Lecturas: Educación Física y Deportes, 28(303), 152-163. https://doi.org/10.46642/efd.v28i303.3773

 

Resumo

    Considerando as influências dos jogos no meio social e os seus potenciais educativos, o presente artigo teve como objetivo, a partir de uma pesquisa bibliográfica, indicar compreensões sobre jogos e suas relações com os seres humanos. Em “Sobre os jogos”são expostas algumas literaturas e legislações acerca dos jogos, buscando apresentar a forma como este conhecimento foi sendo conceitualizado. Em “Potenciais e limites”, possibilidades e limitações são ilustradas, apontando-se três formas assumidas pelos jogos: estratégicos, de azar e divinatórios. É possível considerar que o jogo contribui, de certa forma, para a construção da identidade social, que pode se dar livremente nas interações com o mundo-vida, mas também pode ser planejada, revelando a importância de se refletir sobre os jogos, a fim de subsidiar ações educativas que tenham pretensão de abordá-los.

    Unitermos: Jogo. Conteúdo de ensino. Potenciais educativos.

 

Abstract

    Considering the influences of games on the social environment and their educational potential, this article aimed, through a bibliographic research, to indicate understandings about games and their relationships with human beings. In “About games”, some literature and legislation on games are presented, seeking to show how this knowledge has been conceptualized. In “Potentials and limits”, possibilities and limitations are illustrated, pointing out three forms assumed by games: strategic, chance-based, and divinatory. It is possible to consider that the game contributes, in a certain way, to the construction of social identity, which can be freely given in interactions with the life-world, but can also be planned, revealing the importance of reflecting on games in order to subsidize educational actions that intend to address them.

    Keywords: Game. Teaching content. Educational potentials.

 

Resumen

    Considerando las influencias de los juegos en el medio social y su potencial educativo, este artículo tuvo como objetivo, a partir de una investigación bibliográfica, indicar comprensiones sobre los juegos y sus relaciones con los seres humanos y la legislación sobre los juegos, buscando presentar la forma en que ese conocimiento fue conceptualizado. En “Potenciales y Límites” se ilustran posibilidades y limitaciones, señalando tres formas que asumen los juegos: estratégico, de azar y adivinación. Es posible considerar que el juego contribuye, en cierto modo, a la construcción de la identidad social, que puede ocurrir libremente en las interacciones con el mundo de la vida, pero también puede ser planificada, revelando la importancia de reflexionar sobre los juegos, para llevar a cabo acciones educativas que pretendan abordarlos.

    Palabras clave: Juego. Contenido didáctico. Potencialidades educativas.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 28, Núm. 303, Ago. (2023)


 

Introdução 

 

    Ao longo da vida, as pessoas interagem com a natureza e a sociedade, adquirindo experiências individuais e únicas. Ao fazê-lo, elas se educam e criam identidades para si e suas práticas, de acordo com suas necessidades, contingências, culturas, costumes, sociedades e instituições. São nessas interações com o mundo-vida que homens e mulheres imprimem sua individualidade, fazendo valer essas múltiplas identidades com as quais transitam de um ambiente a outro, marcando seu tempo, alterando sua realidade, seguindo e desenvolvendo crenças e costumes, ressignificando, contestando ou aceitando formas, instituições e regras. Assim como o ato de aprender, a humanidade também ensina, em um único e mesmo processo dialético, conforme afirma Freire (2021, p. 23): “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”.

 

    O resultado desses processos são conhecimentos anteriores às ciências e, talvez por isso, difíceis de serem definidos ou até mesmo aceitos. O jogo, em específico, e os conteúdos do universo lúdico, em geral, parecem pertencer a essa forma de conhecimento pré-reflexivo, mais ancestral. É difícil tentar responder à seguinte questão: porque as pessoas jogam? Na maioria das vezes, a melhor, ou mais cômoda, resposta é declarar que o ato de jogar é algo divertido.

 

Imagem 1. Os jogos são considerados elementos constituintes da cultura

Imagem 1. Os jogos são considerados elementos constituintes da cultura

Fonte: Gerador de imagens de Bing (#Efdeportes)

 

    Os jogos sempre estiveram ligados à vida social, assim como às crenças, às artes e a outras manifestações culturais produzidas pela humanidade (Huizinga, 2019). Como as lendas, os mitos e os contos tradicionais há jogos cujas regras de execução foram transmitidas oralmente, de geração para geração, o que garantiu – e ainda garante – sua continuidade e, por consequência, a perpetuação das tradições históricas e culturais que determinam a identidade de um povo ou de uma época.

 

    Não é possível negar a influência dos jogos no meio social, haja vista que adolescentes ao redor do mundo se ferem gravemente e/ou cometem suicídio para completar o desafio de um determinado jogo como o Baleia Azul1, o Jogo do Desmaio2 ou o Jogo da Colher de Canela3.

 

    Diante do evidente potencial dos jogos na sociedade, o presente artigo teve como objetivo, a partir de uma pesquisa bibliográfica (Sousa, Oliveira, e Alves, 2021), indicar compreensões sobre jogos e suas relações com os seres humanos.

 

    Inicialmente, é importante destacar que uma pesquisa bibliográfica sobre jogos pode enfrentar um problema inicial: grande parte da literatura existente versa apenas sobre regras, tipos e técnicas de jogos. Acredita-se que a obra fundadora a esse respeito foi o Libro de acedrex, dados e tablas, produzida por ordem do Rei Afonso X de Leão e Castela, em 1283. Segundo España (2023):

    “Se trata de un compendio de juegos que recoge la rica tradición lúdica oriental, especialmente de India, a través de las fuentes árabes. Se compone de tres partes: la dedicada al ajedrez, que representa el intelecto, la de los dados, el azar, y la de las tablas, que representa una combinación de ambos. Al final del manuscrito también se incorporan nuevos juegos como el alquerque y las tablas y el ajedrez por astronomía. Cada uno de los juegos se vincula con diferentes estamentos y actitudes, por lo que también tiene un carácter ejemplarizante”. (España, 2023, n.p.)

    Também vale salientar que se fez necessário um recorte do corpus, o que, em uma perspectiva qualitativa, depende mais do julgamento de quem o faz do que propriamente obedece a critérios técnicos que possam ser universalmente válidos. Assumindo-se essa parcialidade, apresentam-se a seguir algumas considerações acerca dos jogos, apresentadas em duas seções: Sobre os jogos e Potenciais e limites.

 

Sobre os jogos 

 

    Os jogos têm acompanhado o ser humano desde as mais remotas eras, sendo considerados elementos constituintes da cultura e importantes para o desenvolvimento da civilização, como apontado por Johan Huizinga em seu livro “Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura”, de 1938. (Huizinga, 2019)

 

    Preocupado em reconhecer essas atividades humanas em suas dimensões lúdica e cultural, Huizinga (2019) apresenta uma importante definição para jogo:

    “uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’”. (pp. 35-36)

    Para Huizinga (2019), qualquer atividade social que possua tanto as características formais (como voluntariedade, regras, relação espaço-temporal e evasão da vida real) quanto as informais (como tensão e incerteza, presença do acaso, espírito lúdico, espírito agonístico e o senso de “faz-de-conta”) pode ser considerada uma forma de jogo.

 

    Cabe reafirmar, porém, que definir “jogo” é sempre uma tarefa difícil; em primeiro lugar porque são poucos os pesquisadores que se debruçaram sobre tal assunto; e, em segundo, porque mesmo entre esses estudiosos, há muito pouco consenso. Um dos autores mais aceitos tem sido o francês Roger Caillois, que apresenta uma definição de jogo em seu livro Les Jeux et Les Hommes: le masque et le vertigo, de 1967. Para o autor, o jogo é definido essencialmente como uma atividade: livre, porque qualquer imposição ou obrigação de aceitá-la implicaria a perda de suas características lúdicas; separada,porque está inscrita em tempo e espaço precisos e determinados por antecipação para o próprio jogo; incerta, pois não há, de antemão, como prever seu resultado; improdutiva, pois não gera bens nem riquezas de qualquer espécie - isso é verdade mesmo em condições de aposta, pois não há aumento de riqueza e, sim, sua distribuição; regulamentada, pois a condição de existência do jogo é a de que suas regras sejam conhecidas e aceitas, inclusive pelo trapaceiro que finge aceitá-las para não ser excluído da condição de jogador; fictícia, pois ainda que acompanhada de uma consciência da realidade ela ocorre em um campo secundário e restrito dessa realidade e que independe dessa realidade para seu desenrolar. (Caillois, 2017)

 

    Se mal interpretadas ou observadas de modo pouco atento, as características citadas podem levar a conclusões equivocadas, como efetivamente ocorre em muitos casos, de que os jogos são atividades inúteis para pessoas desocupadas e, no máximo, servem apenas como passatempos.Tal pensamento parece ter sido compartilhado por Aristóteles em Ética a Nicômaco, que, ao definir como atividades exclusivamente humanas o pensamento, o trabalho e o jogo, colocou este último como sendo o menos nobre e, portanto, preterido em relação aos anteriores (Aristóteles, 2019). No entanto, essa conclusão aparenta ser um tanto preconceituosa e bastante recorrente.

 

    A percepção mencionada pode ser observada no ambiente escolar de maneira muito evidente, especialmente quando se trata de jogos de azar, como cartas, baralho e dados, os quais não são permitidos nas escolas. Essa proibição está amparada pelo Decreto-Lei 3688/41, que trata “Das contravenções relativas à polícia de costumes”: “Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele” (Brasil, 2016, p. 230). Vale ressaltar que a definição de jogo de azar é dada nos termos do parágrafo 3º do mesmo artigo, onde se lê: “Art. 50. Consideram-se, jogos de azar: o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte”. (Brasil, 2016, p. 230)

 

    A lei em questão, vigente até os dias atuais, prioriza o combate à exploração desses jogos de azar, mas também evidencia o caráter negativo atribuído a tais jogos, o que fica mais claro no Decreto-Lei 9215/1946 (Brasil, 2022), o qual ratifica a proibição da prática ou exploração de jogos de azar em todo o território nacional:

    “Considerando que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal; [...] Considerando que a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro e contrária à prática e à exploração e jogos de azar; Considerando que, das exceções abertas à lei geral, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes; [...] DECRETA: Art. 1º Fica restaurada em todo o território nacional a vigência do artigo 50 e seus parágrafos da Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688, de 2 de outubro de 1941)”. (Brasil, 2022, n.p.)

Potenciais e limites 

 

    Do ponto de vista do conhecimento, o jogo e o universo lúdico sempre gozaram de pouco crédito, haja vista o exemplo de Aristóteles apresentado anteriormente. Contudo, é possível encontrar autores que consideram os jogos como ferramentas, sobretudo para fins educacionais, como no livro do psicólogo soviético Daniil Borisovich Elkonin, A psicologia do jogo, de 1978.

 

    Adotando o pensamento histórico-cultural de Vygotski, Elkonin (2009) propõe que a significação do jogo reside na possiblidade que a criança tem de modelar as relações entre as pessoas. Assim, o jogo (ato de brincar) não é visto como algo instintivo, mas sim, influenciado pela atividade humana e suas relações interpessoais. Por isso, o jogo é útil na medida em que exerce certa influência sobre o desenvolvimento psíquico, sobretudo da criança, e sobre a formação da personalidade. Nas palavras do autor: “[...] a evolução do jogo prepara para a transição para uma fase nova, superior, do desenvolvimento psíquico, a transição para um novo período evolutivo” (Elkonin, 2009, p. 268). Assim, se por um lado, pensar o jogo como ferramenta inclui o humano no universo dos jogos, também é verdade que o jogo concebe o ser humano, de certa forma, como produto desses jogos.

 

    É significativo pensar a razão de um jogo como o Xadrez ser tão valorizado a ponto de ser considerado um jogo de intelectuais e ser tão bem aceito nas escolas, enquanto jogos como o Dominó e o Jogo de Damas, em senso comum, serem considerados passatempos vulgares de idosos realizados em praças e bares, ou pior, que outros como as cartas e dados sejam rotulados como contravenção penal.

 

    Notadamente podemos constatar que neste aspecto os jogos são valorizados ou não pelo que representam para as sociedades onde estão inseridos e não pela sua utilidade.

 

    Оксана Новикова [Oksana Novikova] (2016), ao analisar a construção da identidade cultural do povo russo pela prática de seus jogos, considera-os como uma das formas mais antigas de cognição, sendo intrinsecamente capazes de determinar o próprio processo de conhecimento, ou seja, o jogo pode formar o ser.

 

    É significativo notar que o Xadrez foi apoiado pelo regime comunista como forma de manutenção da supremacia soviética, ou seja, o jogo foi tratado como uma ferramenta do comunismo contra o capitalismo no contexto da Guerra Fria. E o mesmo pode ser dito sobre o capitalismo que massificou seus ideais por meio de jogos como Banco Imobiliário e War. (Новикова, 2016)

 

    Por outro lado, também há uma visão negativa a alguns tipos de jogos, como o de cartas, que pode ser observada em obras como “Os Trapaceiros”, de Caravaggio (1594) e “O Trapaceiro com o Ás de Ouros”, de Georges de La Tour (1635), apresentados respectivamente, nas Figuras 1 e 2. Nesses casos, a trapaça é associada a um jogo de cartas.

 

Figura 1.“Os Trapaceiros” (Caravaggio, 1594)

Figura 1.“Os Trapaceiros” (Caravaggio, 1594)

Fonte: https://historia-arte.com/obras/jugadores-de-cartas

 

Figura 2.“O Trapaceiro com o Ás de Ouros” (Georges de La Tour, 1635)

Figura 2.“O Trapaceiro com o Ás de Ouros” (Georges de La Tour, 1635)

Fonte: https://onlinelicor.es/el-tramposo-del-as-de-diamantes-hacia-1630-de-georges-de-la-tour/

 

    De certo modo, parece mais evidente que a trapaça ocorra em jogos de azar, nos quais há um certo ocultar de elementos (como as cartas) para que ele se desenvolva. Já em jogos como o Xadrez ou o Jogo de Damas todos os elementos estão sempre à vista dos jogadores, dando a impressão de serem mais íntegros. Contudo, tanto a trapaça quanto o valor do jogar são fatores atribuídos aos jogos e, portanto, passíveis de serem mudados ou educados. Rotular uma prática por algo que internamente não a constitui é, no mínimo, um ato preconceituoso.

 

    Existe ainda outro aspecto que merece atenção: quando alguém joga um dado e tenta acertar o número da face que ficará voltada para cima, há uma chance em seis de acertar e, por vezes, acerta-se. No entanto, em alguns casos, acerta-se repetidas vezes, e as possibilidades permanecem as mesmas a cada novo lançamento. Então, como explicar que, entre tantos lançamentos, um indivíduo acerte várias vezes e outro não consiga um único resultado correto? Isso é atribuído, respectivamente, aos conceitos de sorte e azar. De fato, tanto a escolha do número quanto o resultado obtido no dado são obras do acaso e, talvez seja aí que reside o problema de caracterizar uma certa identidade para os jogos de adivinhação.

 

    Para Pennick (1992), “Todo tipo de adivinhação tem como base a crença implícita de que poderes transcendentais controlam tudo o que é importante, e que nada acontece por acaso” (p. 23). Assim, o acaso seria uma vontade superior, natural ou divina, que é desconhecida e que determina quem tem sorte ou azar, ocupando espaços de crendices populares, superstições e misticismos. Para o autor, “Nas sociedades onde existe uma visão fragmentada e pluralista do mundo, como a nossa, a adivinhação é tolerada”. (Pennick, 1992, p. 255)

 

    Talvez o interesse por esses jogos esteja em conhecer aquilo que é desconhecido, em planejar e prever aquilo que é incerto, em tornar estável aquilo que não se controla.

 

    A identidade mística do jogo que se volta a predizer o futuro, como nos jogos de Búzios, Tarot e Runas, também se refere aos jogos necromantes, supostamente destinados à comunicação com os mortos, tais como o Jogo do Copo4 e o Tabuleiro de Ouija5, na medida em que dizem respeito a uma vida para além desta. É o desconhecido no momento em que o jogo é jogado que constitui sua característica mais marcante.

 

    Na situação vivida no mundo em decorrência da pandemia de COVID-196, em que a angústia diante de incertezas se fez presente, o interesse e o desejo foram de obter respostas e soluções. Embora seja um exemplo extremo devido ao risco à vida, pode haver algum paralelo com a questão abordada sobre como o jogo trata dessa angústia. Pode-se afirmar que as pessoas jogam jogos de adivinhação e necromancia porque, de certo modo, eles consistem em uma forma divertida (ou talvez menos assustadora) de lidar com as incertezas do acaso, de melhor compreender ou se preparar para um futuro que no momento é sempre incerto.

 

Conclusões 

 

    À medida que o jogo é livremente assumido e entendido como algo lúdico e prazeroso, o jogador também deve entender e aceitar o conjunto de regras e o possível desfecho que, no momento inicial, lhe é incerto. Independentemente de possíveis cálculos, análises e previsibilidades que os jogos possam envolver, está presente neles a noção concreta de responsabilidade pelo ato de jogar, e a vitória ou a derrota são as consequências desses atos.

 

    Nesse sentido, o jogo pode ser uma maneira divertida de ensinar a responsabilidade pelos próprios atos em um ambiente ficcional, sem as consequências e castigos (muitas vezes traumáticos) que o ato infracional impõe na realidade concreta do cotidiano. Também pode auxiliar na construção da imagem de um adversário não como um inimigo, mas como uma necessidade, pois sem ele não há jogo. Essa relação entre os jogadores depende de um certo equilíbrio e de um profundo desejo de conhecer mais. Se um dos jogadores é muito forte ou muito fraco, as partidas se tornam sem graça, a premissa da incerteza é quebrada e o jogo deixa de existir. Por isso, a troca de conhecimentos é fundamental para que o caráter lúdico da atividade se mantenha. Notadamente, nessas relações também são criados campos de interação entre pessoas com os mais diversos objetivos.

 

    Pode-se compreender que jogos lógicos, como o Xadrez e o Jogo de Damas, possuem componentes intrínsecos que contribuem para a formação da tomada de decisão. Por outro lado, jogos de azar, como cartas de baralho ou jogos de dados, contribuem para a formação de atitudes diante de possibilidades e situações imprevistas, e jogos divinatórios são uma forma de pensar e evidenciar os sentimentos e angústias envolvidos em nossas incertezas. Ao desconsiderar uma forma de jogo, perde-se uma importante possibilidade de aprendizagem humana, que, como mencionado anteriormente, faz parte de um único e mesmo processo de educação significativa. (Lemos, e Gonçalves Junior, 2021; Lemos, Gonçalves Junior, e Rodríguez Fernández, 2020)

 

    Por todo o exposto, é possível considerar que o jogo tem atuação na formação do caráter, da sociabilidade, da arte e da criatividade do indivíduo, e contribui, de certa forma, para a construção de sua identidade social, que pode se dar livremente nas suas interações com o mundo-vida, mas também pode ser planejada. Daí a importância de se refletir sobre os jogos, intenção primeira deste artigo, a fim de subsidiar, de alguma forma, ações educativas que tenham a pretensão de abordar o conteúdo relacionado aos jogos.

 

Notas 

  1. “O jogo estabelece 50 desafios por dia que culminam com o suicídio do participante”. (Bedinelli, e Martín, 2017, n.p.)

  2. “Os participantes usam cordas, cintos, lenços ou qualquer outro objeto para cortar o suprimento de oxigênio, desmaiar e, em seguida, acordar em estado de euforia, semelhante ao efeito do uso de drogas”. (Vidale, 2016, n.p.).

  3. “As pessoas enchem uma colher de sopa com canela em pó e tentam engolir sem beber nenhum líquido”. (Sahd, 2018, n.p.)

  4. “É um jogo em que os componentes recebem um espírito no copo e este se movimenta em direção às letras colocadas sobre uma mesa, respondendo as perguntas dos participantes”. (Percília, 2022, n.p.)

  5. “Uma superfície plana contendo letras, números e alguns símbolos. [...] sua embalagem vinha sem nenhuma explicação de como funcionava, apenas que poderia responder a perguntas sobre o passado e que seria o elo entre o conhecido e o desconhecido”. (Sousa, 2019, n.p.)

  6. Pandemia de COVID-19 declarada em 11 de março de 2020, em Genebra-Suíça, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). (Opas, 2020)

Referências 

 

Aristóteles (2019). Ética a Nicômaco. Martin Claret Editora.

 

Bedinelli, T., e Martín, M. (2017, maio 02). Baleia Azul: o misterioso jogo que escancarou o tabu do suicídio juvenile. El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/27/politica/1493305523_711865.html

 

Brasil (2022, out. 09). Decreto-Lei nº 9.215, de 30 de abril de 1946: proíbe a prática ou exploração de jogos de azar em todo o território nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del9215.htm

 

Brasil (2016). Decreto-Lei no 3.688/1941: Lei das Contravenções Penais. In: Senado Federal. Coletânea básica penal (pp. 225-233). Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm

 

Caillois, R. (2017). Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Editora Vozes.

 

Elkonin, D.B. (2009). Psicologia do jogo (2ª ed.). WMF Martins Fontes.

 

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Freire, P. (2021). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (Edição comemorativa do centenário de nascimento). Editorial Paz e Terra.

 

Новикова, О.Н. (2016). Игровые практики и конструирование идентичностей [Práticas de jogo e construção de identidades] [Monografia, Universidade de Engenharia de Floresta do Estado Ural, Ministério da Educação e Ciência da Federação Russa,Yekaterinburg]. https://elar.usfeu.ru/handle/123456789/5500

 

Huizinga, J. (2019). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura (9ª ed.). Editora Perspectiva.

 

Lemos, F.R.M., e Gonçalves Junior, L. (2021). Ocio en motricidad escolar. En S. Toro Arévalo, y J. Vega Ramírez (ed.). Manifestaciones de la Motricidad Humana. Brotes desde el Sur (pp. 231-249). Ediciones UACh.

 

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Sousa, A. (2019, jul. 27). Tabuleiro Ouija: brincando com os mortos. Aventuras na História. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/historia-tabuleiro-ouija-brincando-com-os-mortos.phtml

 

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Vidale, G. (2016, out. 18). Os riscos do ‘Jogo da Asfixia’, moda entre adolescentes.Veja. https://veja.abril.com.br/saude/os-riscos-do-jogo-da-asfixia-moda-entre-adolescentes/


Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 28, Núm. 303, Ago. (2023)