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ISSN 1514-3465

 

Garrincha e o futebol: semiótica das situações de movimento do drible

Garrincha and Soccer: Semiotics of Dribbling Movement Situations

Garrincha y el fútbol: semiótica de las situaciones de movimiento de la gambeta

 

Rodrigo Wanderley de Sousa-Cruz*

rodrigosousacruz@gmail.com

Pierre Normando Gomes-da-Silva**

pierrenormandogomesdasilva@gmail.com

 

*Doutorando em Educação Física

Programa Associado de Pós-Graduação em Educação Física (UPE/UFPB)

Mestre em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Professor do Centro Universitário (UNIESP)

Membro do Grupo de Pesquisas em Pedagogia da Corporeidade (GEPEC/UFPB)

**Pós Doutor em Educação Física (UFSM)

Doutor em Educação (UFRN)

Professor Titular da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Departamento de Educação Física – Centro de Ciências da Saúde

Professor do Programa Associado de Pós-Graduação em Educação Física (UPE/UFPB)

Líder do Grupo de Pesquisas em Pedagogia da Corporeidade (GEPEC/UFPB)

(Brasil)

 

Recepção: 17/10/2021 - Aceitação: 06/02/2022

1ª Revisão: 22/11/2021 - 2ª Revisão: 01/02/2022

 

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Citação sugerida: Sousa-Cruz, R.W. de, e Gomes-da-Silva, P.N. (2022). Garrincha e o futebol: semiótica das situações de movimento do drible. Lecturas: Educación Física y Deportes, 27(287), 28-46. https://doi.org/10.46642/efd.v27i287.3225

 

Resumo

    O artigo objetiva analisar as significações das situações de movimento de alguns dribles de Garrincha como uma prática de linguagem oriunda de uma notória contracultura da lógica técnico-tática do futebol à época. A pesquisa é descritiva, de abordagem qualitativa, do tipo documental, sob a análise da Semiótica Pragmática da Pedagogia da Corporeidade. Foram escolhidas três cenas das Copas do Mundo de 1958 e 1962, período épico do atleta que conferiu visibilidade mundial aos seus dribles. Os resultados desvelam os dribles de Garrincha como signos de um espetáculo qualitativo, peculiar e excessivo, porque existe um caráter lúdico, que provoca uma emoção sem disfarce no uso do espaço de jogo, das relações com os oponentes e do domínio da bola com a perna direita. Conclui que seus dribles oferecem uma significação nas situações de movimento do futebol, vinculada à alegria, ao improviso dos floreios e das firulas, pois Garrincha representava uma característica da cultura futebolística brasileira generalizada, a posteriori em outros jogadores: um estilo brincante, singular e exagerado dentro do jogo.

    Unitermos: Pedagogia da corporeidade. Situação de movimento. Futebol. Drible. Garrincha.

 

Abstract

    This article aims to analyze the meanings of the movement situations of some of Garrincha's dribbles, as a practice of language originated from a notorious counterculture of the technical-tactical logic of soccer at the time. The research is descriptive, with a qualitative approach, of the documentary type, under the analysis of Pragmatic Semiotics of Corporeality Pedagogy. Were chosen three scenes from the 1958 and 1962 World Cups, the athlete's epic period, which gave world visibility to his dribbling. The results unveil Garrincha's dribbling as signs of a qualitative, peculiar and excessive spectacle, because there is a playful feature, which provokes an emotion without disguise in the use of the game space, the relations with opponents and the control of the ball with the right leg. It concludes that his dribbles offer a meaning in football movement situations, linked to joy and to the improvisation of flourishes and frills, as Garrincha represented a characteristic of Brazilian soccer culture generalized later in other players: a playful, singular and exaggerated style within the game.

    Keywords: Corporeality pedagogy. Movement situation. Soccer. Dribbling. Garrincha.

 

Resumen

    El artículo tiene como objetivo analizar los significados de las situaciones de movimiento de algunas gambetas de Garrincha como práctica de lenguaje originada en una notoria contracultura de la lógica técnico-táctica del fútbol de la época. La investigación es descriptiva, con enfoque cualitativo, de tipo documental, bajo el análisis de la Semiótica Pragmática de la Pedagogía de la Corporeidad. Se eligieron tres escenas de las Copas del Mundo de 1958 y 1962, un período épico para el futbolistas que dio visibilidad mundial a sus regates. Los resultados revelan las gambetas de Garrincha como signos de un espectáculo cualitativo, peculiar y excesivo, porque hay un carácter lúdico, que provoca una emoción no disimulada en el uso del espacio de juego, las relaciones con los adversarios y el control del balón con la pierna derecha. Se concluye que sus gambetas ofrecen un sentido en situaciones de movimiento futbolístico, ligadas a la alegría, a la improvisación de fantasías y figuras, ya que Garrincha representó una característica de la cultura futbolística brasileña generalizada, a posteriori en otros jugadores: un estilo lúdico, singular y exagerado dentro del juego.

    Palabras clave: Pedagogía de la corporeidad. Situación de movimiento. Fútbol. Gambeta. Garrincha.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 287, Abr. (2022)


 

Introdução 

 

    O futebol é uma inconteste manifestação esportiva que desperta paixão e expressa uma das principais e marcantes culturas reconhecidas da nação brasileira (Mackedanz, Ferreira, Silva, Bender, Afonso, e Rigo, 2021; Gomes-da-Silva, Anterio, Schulze, e Sousa-Cruz, 2014; Soares, e Lovisolo, 2003). Do futebol foi escolhida a situação de movimento drible, já que é uma das movimentações que mais provoca reações entre os jogadores e o público – abaixo apenas do gol, momento mais esperado e desejado do jogo. O drible é um fundamento do futebol, em que o jogador se esquiva do seu adversário, através de um bom manejo de bola, com toques sucessivos, mudança de direção e deslocamento rápido (Silva, e Zamai, 2013). Driblar é “enganar o adversário, frente a frente, negaceando com a bola, de modo a passar por ele sem perder o controle da mesma”. (Penna, 1998, p. 89)

 

    Por conseguinte, no futebol brasileiro, o drible é um dos fundamentos técnicos relevantes, por revelar o jogador diante da marcação, constituindo-se em uma das expressões futebolísticas mais ovacionadas pelas torcidas. É um fundamento técnico valorizado no Brasil quando usado de forma funcional para o gol ou quando gera emoção (Bartholo, e Soares, 2009). É um gesto que não está totalmente codificado, visto que se compõe por elementos do imprevisível, para que se vença o obstáculo. O drible é um símbolo da arte futebolística brasileira. Uma jogada que requer um esforço na tomada de decisão, o que o torna mais explícito. (Cavalcanti, 2010)

 

    O drible acontece na circunstância criada na situação de movimento, oriunda do jogo vivido. É considerada uma situação criada pela própria movimentação dos praticantes, em dada circunstância sociocultural e ambiental (Gomes-da-Silva, 2015; 2016). Nesse sentido, é valorizado o movimento como produtor de significados e multiplicador de signos (Betti, e Gomes-da-Silva, 2019). Daí vem foi escolhido o drible como o lócus de investigação, por gerar diversas criações e reações no seio futebolístico.

 

    Nos anos 1950 e 1960, existiu um jogador no Brasil que encantou plateias do mundo inteiro pelo que fazia com seu corpo ao driblar, sendo temática constante da literatura esportiva do futebol, conforme estudos de Mazzeu (2011), Cavalcanti (2010), Bartholo, e Soares (2009), e Castro (2003). Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha, brilhou com a camisa sete do Botafogo, de Futebol e Regatas e da Seleção Brasileira. Segundo Eduardo Galeano, nunca houve um ponta-direita como ele. No Mundial de 1958, foi o melhor em sua posição. No Mundial de 1962, o melhor jogador do campeonato. “Mas ao longo de seus anos nos campos, Garrincha foi além, ele foi o homem que mais deu alegria em toda a história do futebol” (Galeano, 2010, p. 106). Por sua vez, Armando Nogueira o considera um artista, o maior exemplo de espontaneidade que conheceu em um campo de futebol. “A memória dirá que ele foi a sublimação do drible. É um reconhecimento, sem dúvida, mas, certamente, incompleto. Garrincha foi muito mais que um driblador irresistível”. (Nogueira, 2003, p. 78)

 

    Destarte, a relevância em compreender os dribles de Garrincha não se limita ao futebol, mas se estende especialmente às significações no modo de jogar desse jogador, que fez do drible uma linguagem admirada por todos (companheiros, adversários e torcida). Assim, foram considerados os dribles de Garrincha como signo em sua pluralidade de invenções e representações. Desse modo, a questão problema é: que efeitos os dribles de Garrincha provocaram nos jogos de futebol em Copas do Mundo? O objetivo foi analisar as significações das situações de movimento de alguns dribles de Garrincha, como uma prática de linguagem oriunda de uma notória contracultura da lógica técnico-tática do futebol à época.

 

Método 

 

    No caminho da busca pelo sentido do drible, entra-se no universo da semiótica. Por isso, trata-se de uma pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, do tipo documental, que utiliza a semiótica para análise dos dados. Semiótica é uma área do conhecimento que estuda a vida dos signos, o modo como se organizam para significar. Nesta direção do estudo, “a investigação semiótica do jogo está focada em compreender a sequência dos movimentos e ambiente comunicativo por ela gerado. O que move o jogador é a situação do jogo, daí o importante é captar o modo existencial das jogadas”. (Gomes-da-Silva, 2015, p. 85)

 

    A semiótica fornece o instrumental teórico-metodológico que permite atentar para as pistas gestuais como sistemas de signos passíveis de serem lidos, de modo a remontar uma realidade complexa do drible. Ou seja, se consideram os dribles de Garrincha como signos da comunicação no contexto do jogo, já que o jogo é um sistema de significação que estrutura o comportamento dos jogadores.

Isso porque “o jogo é uma construção sociocultural, provida de sentido e significado, portanto, uma forma de fala, organizada pela interação dos sucessivos gestos, vividos num tempo de realização do ser” (Gomes-da-Silva, 2011, p. 106). São analisadas três cenas dos dribles de Garrincha em situações que os adversários tentavam evitá-los, ou ao menos minimizar os efeitos que causavam – tais como o cansaço, a preocupação, o medo, o desgaste físico e a irritação, que se explicitavam e predominavam nas situações dos jogos.

 

    Garrincha jogou pelo Botafogo (de 1953 a 1965, com 613 jogos e 258 gols); Corinthians (em 1966, com 10 jogos e 2 gols); Flamengo (de 1968 a 1969, com 14 jogos e 4 gols) e Olaria (em 1972 com 10 jogos e 1 gol), sem falar em incontáveis amistosos por diversos times em diferentes lugares do interior do Brasil. Pela Seleção Brasileira, estreou em 1955 e fez o seu último jogo em 1966, totalizando 56 partidas e 17 gols. Em sua carreira como jogador de futebol atuou em 697 jogos e marcou 282 gols, ao longo de 19 anos. Esses dados¹ são de jogos oficiais enquanto ainda atuava como atleta, desconsiderando partidas em que apenas entrava em campo para acenos e/ou jogos de conotação festiva em cidades do país.

 

    As três cenas de dribles escolhidos a partir de registros filmográficos (disponíveis em VHS e no Youtube) são do final da década de 1950 e início dos anos 1960, período marcado pelo apogeu dos dribles de Garrincha, que contribuíram decisivamente para o sucesso do Botafogo – com as conquistas do Campeonato Carioca (1957, 1961 e 1962); Torneio Rio-São Paulo (1962 e 1964) – e da Seleção Brasileira, com os Mundiais de 1958 e 1962. Portanto, esse pode ser considerado o período mais rico desse fundamento executado por ele, além de que os respectivos dribles receberam destaque na mídia na época e ainda hoje são reverenciados. Foram escolhidos os dribles da Copa do Mundo considerando estes imprescindíveis para análise do “anjo das pernas tortas”. Nesse período temporal, o Botafogo de Futebol e Regatas excursionou pela América do Sul e Europa com seu grande elenco, cujo astro principal era Garrincha. Porém, para a nossa análise dos dribles, nos limitamos aos do Bicampeonato Mundial (1958-1962) pela Seleção Brasileira.

 

    Não se busca construir um léxico de dribles, mas visualizar sua significação nas situações de movimento. Se estabelece um roteiro de “leitura”, a partir de um dos desenhos de pesquisa semiótica da Pedagogia da Corporeidade, teoria consistente e que já vem produzindo vários estudos relevantes em diferentes contextos e para diversos públicos no campo da Educação e da Educação Física (Gomes-da-Silva, 2011; 2015; 2016; Sousa-Cruz, Gomes-da-Silva, P., e Gomes-da-Silva, E., 2015). Os procedimentos que roteirizam a realização da “leitura” semiótica ocorrem em três níveis: da significação, da objetivação e da interpretação. Seguindo o arranjo semiótico de análise das situações de movimento no jogo pela Pedagogia da Corporeidade (Gomes-da-Silva, 2011; 2014; 2015; 2016), se reconhecem as referências para cada uma das categorias fenomênicas.

 

    Para a análise dos dribles, são examinados no nível da significação. A significação – que se refere à relação do signo consigo mesmo – trata da natureza do fundamento, de sua capacidade para funcionar como signo. Na primeiridade, compreendendo a significação do jogo, identificam-se as qualidades dos dribles (quali-signo); as singularidades dos dribles (sin-signo) e as generalidades dos dribles (legi-signo). Pela semiótica, pode-se perceber que, qualquer que seja a situação de movimento do futebol (drible) estará processando e produzindo signos, portanto, desenvolvendo uma prática de linguagem. Ou seja, o foco é descrever as linguagens dos dribles de Garrincha em termos das Qualidades, Singularidades e Generalidades dos dribles dentro de uma ambiência de jogo, na produção de sentidos emocionais, energéticos e lógicos, conforme o quadro abaixo.

 

Quadro 1. Categorias e indicadores analíticos do drible pela Semiótica Pragmática da Pedagogia da Corporeidade

Categorias

Indicadores

Produção de sentido

Propriedades sígnicas das situações de movimento (Dribles).

Categorias da significação do drible (primeiridade).

Significação dos dribles como informação e mensagem em si mesmos, nos seus aspectos qualitativos, singulares e gerais.

Aspectos qualitativos

quali-signos

Qualidades do drible

 

Signos emocionais, energéticos e lógicos nos dribles

- Vitalidade e fluidez;

- Equilíbrio e força;

- Exploração de pequenos espaços no jogo.

 

- Velocidade de curta distância;

- Tronco flexível (gingado) e pernas firmes, estáveis;

- Resolução dos problemas com dribles em linhas laterais e/ou de fundo.

- Potência no arranque com a bola;

- Suporte nas quedas e colisões com os adversários;

- Criatividade nas jogadas.

Aspectos existenciais

sin-signos

Singularidades dos dribles

Signos emocionais, energéticos e lógicos nos dribles

- Pequena distância entre a bola e o adversário para ludibriar o oponente para o drible;

- Imprevisibilidade dos dribles;

- Causava cansaço, irritação, desgaste físico dentro de campo e risadas da plateia no espetáculo futebolístico.

- Aproveitava o descuido do pé de apoio para driblar;

- Interagia por olhares, caminhadas e corridas com a bola;

- Optava em voltar à jogada para driblar várias vezes o mesmo jogador.

- “Oferecia” a bola ao adversário;

- Seduzia a atenção dos adversários;

- Provocava humilhações aos adversários ao driblar.

 

 

Aspectos gerais

legi-signos

Generalidades dos dribles

Dribles de outros jogadores

-Excessos de dribles;

-Uso dominante da perna direita;

- Interesse na jogada do drible.

-Jogada obrigatória antes dos cruzamentos e chutes;

-Enfrentamento com um ou vários adversários;

- A graça de jogar futebol.

- Maradona (1980-1994);

- Ronaldinho Gaúcho (anos 1999-2013);

- Robinho (2002-2020);

- Neymar (2010-em atividade).

Fonte: Adaptação de Gomes-da-Silva (2011), e Sousa-Cruz, Gomes-da-Silva, E., e Gomes-da-Silva, P. (2015)

 

    Esse quadro inspirado na Semiótica Pragmática da Pedagogia da Corporeidade nos possibilita analisar os dribles de Garrincha. Estes, por sua vez, estabelecem o encontro dele mesmo com os outros e com o entorno. Ou seja, a “análise centraliza-se no ambiente gerado pela conversação das jogadas, pelo diálogo fático estabelecido entre os jogadores. A finalidade é captar os estados estéticos do jogo, particularmente, aqueles momentos em que os jogadores se realizam”. (Gomes-da-Silva, 2015, p. 86)

 

    Se compreende essa ambiência como uma zona de corporeidade, em função de não caber uma investigação do movimento do indivíduo fragmentado de sua atividade. Interessa a situação do movimento, porque ela é composta de subjetividade e envolve relações uns com os outros na repetição e/ou inovação. Isso pode ser evidenciado “na zona de corporeidade produzida no campo de futebol, antes mesmo da partida começar, desde as significações produzidas pela bola, gramado, listras brancas, travessão, uniforme, chuteiras, umidade do terreno, clima”. (Gomes-da-Silva, 2016, p.75)

 

    Pensando nos dribles de Garrincha, nessa zona de corporeidade todos os partícipes estão em comunicação ao mesmo tempo, não só humanos, mas também inumanos, como por exemplo, os gestos (olhares, mãos na cintura), posições (ofensiva, defensiva), posturas (ereta, encurvada), espaços (laterais, linha de fundo), atitudes (provocativas, humilhantes), implementos (bola). Isso culmina na absorção dos participantes e provoca subjetivações, formando, assim, situações de movimento com identidades.

 

Resultados 

 

    A seguir, apresentamos a descrição detalhada das três cenas escolhidas nas duas principais Copas em que Garrincha se destacou para uma análise da Semiótica Pragmática da Pedagogia da Corporeidade para o futebol.

 

Video dribles de Garrincha

 

Fonte: Youtube - https://www.youtube.com/watch?v=E_kiJjMS2K4

 

1.     Cena 1. 0’20”– 0’32”– 15/06/1958 – Brasil 2 x 0 URSS: Garrincha está com a posse da bola, de costas para o campo de ataque pelo lado direito. Rapidamente gira o corpo para frente, concomitantemente, aproximam-se dois adversários. Ele volta com a bola sob o domínio de sua perna direita. Os soviéticos se aproximam cada vez mais. Garrincha põe o pé em cima da bola, protege-a, enquanto é cercado pelos dois marcadores. De repente, gira o corpo, ficando de costas para os oponentes. Ligeiramente, Garrincha volta com a bola pela lateral do campo, sendo seguido pelos soviéticos em um curto espaço de jogo. Nesse instante, um adversário para, enquanto o outro persegue Garrincha, que corre pela lateral direita em grande velocidade, atingindo a linha de fundo. Garrincha para bruscamente. Os soviéticos passam direto. Garrincha escorrega. Apoia as mãos no chão, perto da bola. Todos os adversários na jogada estão olhando para ele. Garrincha levanta rapidamente, já com o domínio da bola, em uma direção frontal. Ele arranca e passa por dois jogadores soviéticos, dando um toque forte na bola e mantendo sua trajetória em direção ao gol.

 

Fotograma 1. Brasil 2 x 0 URSS. 15/06/1958

Fotograma 1. Brasil 2 x 0 URSS. 15/06/1958

Fonte: Youtube.com

 

2.     Cena 2. 2’49”– 3’10”– 06/06/1962 – Brasil 2 x 1 Espanha: Garrincha recebe a bola de Didi no meio de campo, sendo marcado por um jogador espanhol. Ele a protege. Inclina o corpo para frente, sob os olhares do adversário. Rapidamente, mantém a bola sob o domínio de sua perna direita, frente a frente com seu oponente, em direção ao gol. Caminha com ela, enquanto o espanhol a olha. Garrincha avança mais. O defensor espanhol continua recuando. Garrincha realiza um drible curto para a esquerda e volta. Inesperadamente, dribla para a direita em velocidade, sendo acompanhado pelo marcador. Pisa na bola e volta, afastando-se dos espanhóis na jogada. Ajeita a desejada redonda e continua a avançar. Pisa na pelota novamente. Um defensor se aproxima. Garrincha o dribla velozmente, passando pelo lado direito, em direção à linha de fundo. Diminui o ritmo. Novamente, dois marcadores espanhóis na jogada. Garrincha avança, caminhando e saltitando, os defensores recuam para dentro de sua área. Ele (Garrincha) arranca pela linha de fundo, pelo lado direito, longe do alcance dos espanhóis. Garrincha cruza na cabeça de Amarildo, “o possesso”, que faz o gol.

 

Fotograma 2. Brasil 2 x 1 Espanha. 06/06/1962

Fotograma 2. Brasil 2 x 1 Espanha. 06/06/1962

Fonte: Youtube.com

 

3.     Cena 3. 5’17”– 5’42”– 17/06/1962 – Brasil 3 x 1 Tchecoslováquia: Garrincha corre pelo lado direito do campo, tendo à sua frente um jogador tcheco. Rapidamente, corre para o lado esquerdo, enquanto seu marcador continua no mesmo lado. Garrincha avança frontalmente, mantendo a bola sob os seus pés. Um defensor tcheco se aproxima, Garrincha dribla curtamente para a direita. O tcheco segue direto para a esquerda. Garrincha continua sua corrida pelo lado direito. Nesse momento, mais um jogador tcheco tenta interceptar a bola de Garrincha. O “anjo das pernas tortas” dribla novamente pelo lado esquerdo, enquanto o adversário corre para o lado contrário. Em seguida, Garrincha executa um novo drible pelo lado direito e, novamente, o defensor tcheco corre para o lado contrário. Garrincha volta com a bola alguns metros. Os tchecos passam direto da trajetória de Garrincha. O jogador da camisa sete ajeita a bola, protege-a e gira o corpo para o campo de ataque. Toca a bola. Caminha. Um tcheco se aproxima caminhando também. Os dois caminham em direção à pelota. O tcheco ligeiramente põe as mãos na cintura e tira. Recua. Garrincha continua caminhando com a bola. Volta caminhando com ela, seguido pelo andar do oponente, enquanto outro tcheco observa de longe a cena. Garrincha retoma a posição de enfretamento no jogo, com as pernas ligeiramente afastadas. Para. Esboça um movimento de partida. Mais um tcheco se aproxima. Quando um deles tenta dar o combate, Garrincha arranca pela direita, mantém a bola sob seus cuidados, com três tchecos atentos, e cruza a bola na área.

 

Fotograma 3. Brasil 3 x 1 Tchecoslováquia. 17/06/1962

Fotograma 3. Brasil 3 x 1 Tchecoslováquia. 17/06/1962

Fonte: Youtube.com

 

    O ponto de partida é que se assume que a ambiência produzida em cada drible particular de Garrincha vai sendo gerada nas diferentes situações de movimento vividas no tempo. Essas situações são compreendidas como um ambiente comunicativo em que ocorrem percepção, interpretação e respostas coerentes com as possibilidades circunstanciais (Gomes-da-Silva, 2016). O “foco está na situação, no ambiente gerado pela movimentação com o entorno, ou seja, os que se movem estão dispostos ao mundo, ao tempo, que o mundo está disposto, receptivo e convidativo ao mover-se”. (Gomes-da-Silva, 2016, p. 66)

 

    Desse modo, compreende-se que o movimento é comunicação, o que significa bem mais do que dizer que ele é portador de uma mensagem dirigida a outros. Partilha-se a tese de que o modo de ser do homem é sendo na existência junto com outros. Significa interagir com o ambiente no qual se está imerso. O movimento, além de ser na interação, é também possibilidade de um se mostrar do ser (Gomes-da-Silva, 2011). “Essa forma de interação (drible), caracterizada por um duelo driblador-marcador, concentra o problema (dar seguimento a jogada) em um dado jogador”. (Cavalcanti, 2010, p. 2)

    

    Contudo, a comunicação estabelecida nos dribles de Garrincha estava para além da execução de um fundamento para avançar na jogada: se desvelava em uma ação-espetáculo, sem perder a finalidade de triunfar sobre o adversário. Um drible impróprio em que o público aderia como efeito emocional da jogada. O efeito do riso. O dramaturgo Nelson Rodrigues afirmava que Garrincha ensinou a torcida a rir, pois, diante do gol vazio, preferia continuar driblando. Pode-se evocar também as lembranças de criança do pesquisador da área da antropologia José Sérgio Leite Lopes, quando via Garrincha driblando para trás, em direção ao próprio gol. Ele caía na risada. As demais pessoas riam de verdade. Ou a ideia do poeta Paulo Mendes Campos, que o comparava a um gênio artístico – um compositor, um bailarino. (Bellos, 2014)

 

    Mais do que a demonstração de uma excelência de habilidade, visando o progresso do jogo, cada momento é inteligível, prescindindo do desenvolvimento. O drible de Garrincha exige uma leitura imediata de seus significados justapostos, sem que seja necessário ligá-los. Eles não estão dependentes nem do tempo de jogo, nem do placar. Os vários dribles são uma soma de várias cenas dentro de circunstâncias espaço-tempo e cada uma delas impõe o conhecimento de contextos das situações de movimento. Entre esses elementos a serem analisados estão desde os oponentes mais comuns que o Botafogo enfrentava – Jordan (Flamengo); Altair (Fluminense) e Coronel (Vasco), até os adversários em Copas do Mundo – Ex-URSS (hoje Rússia), Espanha e a extinta Tchecoslováquia (hoje separada em República Tcheca e Eslováquia).

 

    O jogo de futebol sem drible, independentemente de ser uma tradicional “pelada” ou uma partida de campeonato, perde a graça, fica sem atratividade, torna-se “truncado”, como dizem os boleiros. Essa exigência é visível entre os torcedores brasileiros. Eles não se satisfazem com o sóbrio desempenho competente de seus jogadores. A torcida requer que eles encantem, brilhem, façam “mágicas” no jogo. Tamanho era o prestígio de Garrincha que Carlos Drummond de Andrade chegou a declarar que “se há um deus que regula o futebol, esse deus é, sobretudo, irônico e farsante, e Garrincha foi um dos seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios”. (Moraes, 2007, p. 99)

 

Discussão 

 

Da significação do drible 

 

    A significação diz respeito à análise das propriedades internas do fenômeno. De modo que essa primeira seção tem o objetivo de analisar os dribles descritos, adentrando especificamente na arquitetura da primeira tricotomia, cuja finalidade é situar a compreensão básica do drible, ou seja, como essa atividade de Garrincha aparece como signo à consciência. É o significado das mensagens em si mesmas, nos seus aspectos qualitativos, singulares e gerais.

 

    A função dele não era só ganhar, mas executar exatamente os gestos que se esperavam: gestos contidos de ficar parado olhando o adversário, também imóvel; gestos excessivos de andar tocando a bola na frente do adversário, de colocá-la sob as pernas, dar um arranco; Garrincha chamava atenção com seu tronco ligeiramente flexionado e pendendo para a direita, braços em abdução quase completa, pernas em posição semiflexionada, em preparo para o arranque; olhar fixo na bola. Os adversários compõem uma situação de interceptar o objeto ou mesmo impedir a concretude da jogada, o que é inviabilizado pelo o êxito do driblador triunfante e astucioso. Sua habilidade notável confundia seus oponentes que, muitas vezes, só entendiam o que tinha ocorrido após a passagem de Garrincha pela jogada (Sousa-Cruz, e Anterio, 2012). Cavalcanti (2010) em seu estudo sobre a semiótica do drible futebolístico enfatiza a malandragem de Garrincha: enquanto o marcador é envolvido pela “sedução” do driblador, o espaço do campo já se encontra vazio.

 

    Cada drible deve ser compreendido no próprio instante, a partir dos papéis que os jogadores assumem – o corpo do driblador: da mesma altura que os adversários, pernas grossas, camisa sempre ensacada, meião levantado, sem barriga, andar de perna esquerda trôpega. Imagem comum, igual a todos os outros. Sem escândalos na roupa ou chuteira para chamar atenção, mas com escândalo na jogada. Ao ficar frente a frente, a bola aos pés de Garrincha e seu oponente almejando-a, mantém-se uma comunicação desafiadora, em que cada um possui suas intenções e interesses distintos.

 

Aspectos qualitativos do drible 

 

    Ancorados pela Semiótica Pragmática da Pedagogia da Corporeidade (Gomes-da-Silva, 2015; 2016), o percurso da análise semiótica que empreendido segue a própria lógica interna, das relações do signo consigo mesmo. Por isso, começa-se pela qualidade do drible, ou seja, pelas propriedades sígnicas que existem nas situações dos dribles de Garrincha.

 

    A primeira impressão que as imagens dos vídeos nos oferecem é uma força das ações. A qualidade dos movimentos de Garrincha chama atenção por sua leveza, facilidade, domínio da bola, estabilização do corpo, explosão muscular, arrancadas fulminantes. Em todas as três cenas de jogos de Copa do Mundo (1958-1962), isso se evidencia na explosão muscular das pernas de Garrincha, nas trocas de olhares entre os jogadores no momento do drible, nos atos desnorteados, assustados e desesperados dos adversários. O desenvolvimento dos dribles se dá de maneira cíclica, linear e curta. A relação entre a bola e o corpo é de consonância (Cavalcanti, 2010). Nessas propriedades, há uma fluência. Tudo corre fácil, sem impedimento. Tudo é muito ligeiro. Desse modo, o que está impregnado nessas qualidades é a fluidez.

 

    Durante as observações e análises, percebemos que Garrincha se desloca pela linha de fundo à direita, com a bola sob o domínio de sua perna direita, com arrancadas velozes, paradas bruscas, um percurso horizontal pela diagonal. Este fundamento (domínio) tem como principal função mostrar a habilidade que o atleta tem em amortecer a bola na sua recepção, sobretudo, conservando-a próxima de si, mantendo-a sob o controle com as diferentes partes do corpo, evitando que o adversário fique com a posse da bola. Garrincha usava o drible, esquivando-se do seu adversário, com toques sucessivos na bola, mudança de direção e deslocamento rápido.

 

    Há uma técnica na realização dos dribles de Garrincha. Qualquer drible para efetuar-se exigia que o craque tivesse habilidade e força muscular, caso contrário, não haveria drible. O objetivo do uso dessa técnica é permitir o sucesso no lance, uma chance clara de gol, uma finalização eficaz, um prazer. Como a técnica no drible é circunstancial, influenciável pelas condições do momento, ela emerge no ambiente do próprio jogo. Cada gesto pertence àquele dado momento. Os gestos não são provenientes de sequências individuais anteriores. Por isso mesmo, não são totalmente previsíveis. Por isso Garrincha era um inventor de espaços; criava subterfúgios espaciais; desestruturava uma localidade do campo a partir de invenções de percursos (Cavalcanti, 2010). Garrincha ora recebe uma bola e avança, outra aguarda a chegada de um zagueiro, de vários beques, envolve todos, deixa-os no chão, para a bola, pisa nela, retorna, arranca, chuta e cruza.

 

    Essa comunicação não se dá de forma isolada no espaço do drible ocupado por Garrincha, seus adversários, a bola e o gramado, com suas linhas delimitadoras. Gomes-da-Silva (2016) reflete que, nessas situações de movimento do drible, uma ambiência é envolvida por todos os componentes, tangenciando as qualidades engendradas por essa “atmosfera” vivida durante o drible no jogo de futebol. Isso porque essas situações de movimento do drible vão nascendo no contexto das interações vividas, visto que é na relação com o entorno que afetamos o meio, ao mesmo tempo, que somos afetados por ele.

 

Aspectos singulares do drible 

 

    Atentar para o aspecto singular das situações de jogo, denominado de sin-signo, implica em dirigir um segundo olhar para os vídeos dos dribles de Garrincha. Desta vez, realçando suas especificidades, ou seja, fazendo um delineamento contextual. O sin-signo do drible consiste numa corporificação do quali-signo. As descrições das ações de Garrincha se baseiam em situações vividas, ou seja, no contexto em que ele desenvolvia seus dribles. O sin-signo nos apresenta duas existencialidades de dribles. Em uma, Garrincha avança em direção aos beques, com o intuito de driblá-los. Noutra, Garrincha espera os zagueiros, que vão ao seu encontro, na busca de interceptar a bola, cercá-lo, derrubá-lo e evitar o drible. Em uma, Garrincha deixa todos para trás e cruza, finaliza, volta, para. Noutra, os zagueiros puxam sua camisa, fazem falta e desistem.

 

    As 48 imagens (fotogramas 1, 2 e 3) formam um retrato detalhado do drible, que tem sua existência real e temporalmente definida. “Retirar o movimento do seu contexto é deixar escapar sua força vivaz, sua energia vital” (Gomes-da-Silva, 2001, p. 53). Eis a significância de levar em consideração o contexto em que o drible acontece. O campeonato, o jogo, os times que se enfrentaram, a torcida, a vantagem no jogo e na tabela da competição e o momento do jogador. Todo esse contexto constitui o sin-signo dos dribles, já que tudo influencia na realização do fundamento.

 

    Foi nesse contexto que Garrincha realizou seus dribles desconcertantes. “Garrincha parecia jogar pelo divertimento. Gostava de enganar os adversários com seus movimentos habilidosos, provocando-os como um toureiro campeão provoca um touro” (Bellos, 2014, p. 92). Era singular Garrincha derrubar os rivais. Recuava, começava tudo de novo. “Os torcedores se divertem com suas diabruras, os dirigentes arrancavam os cabelos: Garrincha joga para rir, não para ganhar, alegre pássaro de pernas tortas, e esquece o resultado. Ele ainda acredita que o futebol é uma festa, e não um emprego ou negócio.” (Galeano, 2018, p. 95)

 

    A peculiaridade dos movimentos de Garrincha não se restringia aos seus dribles velozes ou estáticos, com a posse da bola ou ausência dela. “A graça estava em driblar, apenas driblar. Estava no futebol em estado selvagem e lúdico” (Castro, 2003, p. 64), resolvendo os problemas que lhe surgiam no decorrer da partida. Ele se deslocava com inteligência nos gramados de vários estádios, com precisão e perfeição, no momento em que era preciso. Sem estar aprisionado às regras do futebol. Ele se servia das regras para realizar suas necessárias jogadas ou suas estratégias de jogo.

 

    O interesse é analisar esse fazer múltiplo e conflituoso de Garrincha. Múltiplo, em função de sua imprevisibilidade ao confronto com seus adversários no instante do drible, o que desvelava sua face criativa e provocativa. Conflituoso, em virtude de não se ater à burocracia da lógica de funcionamento das regras do futebol: ele dava outro sentido ao drible, pois fazia o não previsto, nem proibido nem permitido, mas o possibilitado, dando nova significação ao jogo de futebol. “A imagem de Garrincha é do atleta que não valoriza esquemas táticos e treinamentos físicos. Seu sucesso dentro dos campos de futebol é narrado como expressão de um dom ante as adversidades enfrentadas”. (Bartholo, e Soares, 2009, p. 171)

 

    Garrincha nasceu dos campos de pelada e não em escolinhas de futebol, como descreveu Castro (2003). Assim, cresceu em uma configuração formada pela tríade dom-criatividade-liberdade em detrimento do treinamento-esforço-disciplina, segundo o estudo de Bartholo, e Soares (2009). Ele era intencional e despretensioso. Pisava em cima da pelota costumeiramente, à espera do marcador se aproximar e ter o prazer de driblá-lo. Ao mesmo tempo faltava-lhe (em certas situações de movimento) objetividade, exceto quando ocupava a linha de fundo, na perspectiva de um cruzamento de uma bola ou de um chute em direção ao gol.

 

    Com base nos estudos semióticos de Gomes-da-Silva (2015), se compreende que as singularidades dos dribles de Garrincha estão sempre carregadas de sentido vivencial, com uma estratégia menos formal, mais transgressora. Mais brincante, contudo não menos tático. “E são essas jogadas que nos despertam outras ressonâncias, contra-ataques, movimento, entusiasmo, inteligência, porque elas estão concernentes à vida do jogo” (Gomes-da-Silva, 2015, p. 73). Por fim, observa-se o drible de Garrincha vinculado com o seu contexto, nas situações de movimento nas respostas dadas, nas ações com menos normas e mais inventividade nas tomadas de decisão.

 

    As cenas descritas e analisadas dos dribles possuem contextos singulares de jogos. Por exemplo: o jogo contra os soviéticos marcou a estreia de Garrincha (e Pelé) na Copa de 1958, na Suécia. Havia um temor, pois os soviéticos eram os atuais campeões olímpicos (Helsinque, 1956) e se espalhara que possuíam um futebol científico e difícil de ser vencido. Contudo, esse jogo é muito lembrado, face que “todos os russos foram driblados por Garrincha em algum momento do jogo: um de cada vez, dois, três, ou em fila, todos ao mesmo tempo” (Castro, 2003, p.165). A mágica vencera a lógica.

 

    Por sua vez, na Copa de 1962, no Chile (com Pelé machucado), Garrincha era a estrela esperada, mas, é no jogo contra os espanhóis, que ele assume o protagonismo. O seleto brasileiro saíra perdendo, um pênalti não marcado para a “fúria” (apelido da equipe espanhola): um jogo com características de dificuldade. Amarildo – substituto de Pelé – marca dois gols, sendo o último com a assinatura de Garrincha: três defensores driblados, deslocamento para a linha de fundo e cruzamento para área. A terceira cena é a da final da Copa do Chile. Garrincha fora expulso na semifinal contra os donos da casa, após um confronto contra o viril zagueiro Eladio Rojas. Acontece que Garrincha é absolvido pela organização do evento. Consequentemente, liberado para jogar a final contra os tchecos. Contudo, ainda existia uma peculiaridade: jogou sob uma forte febre. Isso tudo não o impediu de mostrar seu talento. Como bem relatou Castro (2003), Garrincha não se preocupava com adversários, quaisquer que fossem. Não era desrespeito ou menosprezo: simplesmente era uma aversão por táticas, esquemas ou camisas.

 

Aspectos da generalidade do drible 

 

    Preocupados com a generalização dos dribles, ou com a regularidade com que se realiza a ação, lança-se mão de Gomes-da-Silva (2011), quando diz que esse é o momento de descrevermos as réplicas dos signos, a repetição dos gestos, as semelhanças das jogadas. Há o registro de três cenas em momentos diferentes, em épocas distintas, com um protagonista (Garrincha) e vários coadjuvantes (adversários). Esses dribles não possuem uma única aparição, mas têm regularidade. Como essa regularidade ultrapassam as três repetições, antes destacadas, podemos abordá-las como legi-signos.

 

    Castro (2003) reforça esse raciocínio, quando questiona porque, depois de driblar seu marcador e passar por ele, Garrincha esperava de propósito que voltasse, para ter de driblá-lo de novo. A graça estava em driblar, apenas driblar. Estava no futebol em seu expressivo vigor. Em algumas ocasiões, ele fazia questão de retornar, parar, ficar frente a frente com seu marcador. Ele o esperava, encarava, desafiava a todo o momento, com suas pernas tortas, até a exaustão do adversário. Não tinha pressa de driblá-los, salvo quando partia com suas arrancadas inalcançáveis para os adversários, que só o paravam com faltas, como escreveu Nogueira (1986, p. 46): “[...] chegava à linha de fundo, os beques cercando a área, o espaço minguando [...] um metro, meio metro, ele não tem mais campo, vou dar o carrinho agora. Amarga ilusão: para um drible dele, a superfície de um lenço era um latifúndio”. Outro exemplo mais minucioso dado por Galeano (2010, p. 103):

    Foi em 1958, na Itália. A seleção do Brasil jogava contra o Fiorentina, a caminho do Mundial da Suécia. Garrincha invadiu a área, deixou um beque sentado e se livrou de outro, e de outro. Quando já tinha enganado até o goleiro, descobriu que havia um jogador na linha do gol: Garrincha fez que sim, fez que não, fez de conta que chutava no ângulo e o pobre coitado bateu com o nariz na trave. Então, o arqueiro tornou a incomodar. Garrincha meteu-lhe a bola entre as pernas e entrou no arco. Depois, com a bola debaixo do braço, voltou lentamente ao campo. Caminhava olhando para o chão, Chaplin em câmera lenta, como pedindo desculpas por aquele gol, que levantou a cidade de Florença inteira.

    Quando Garrincha joga o corpo para um lado e retorna, ficando frente a frente com o beque, na troca de olhares, entre si e com a bola, essas relações simbolizam um sistema de comunicação provocativa. Ao dizer que o drible é a provocação ao outro, estamos afirmando que esta é a generalidade habitual de driblar de Garrincha, provocar seus adversários, humilhar os que aceitam o desafio. Garrincha absorvia os marcadores; em seguida instalava a dúvida - desestabilizando-os e, por fim, os iludia, tornando-os indefesos diante o drible concretizado. Ou seja, o “anjo das pernas tortas”, a “alegria do povo” tinha uma compreensão muito clara dos movimentos e gestos dos seus oponentes. (Cavalcanti, 2010)

 

    Os dribles de Garrincha foram, por vezes, assemelhados por outros jogadores, em outras épocas. Destacamos neste estudo o argentino Diego Maradona, jogador profissional nas últimas décadas do século XX (1980-1990), com um singular domínio com a perna esquerda. Era uma atração nos treinos, com seus malabarismos, e um espetáculo em jogos competitivos. Arrancadas, chutes precisos, lançamentos cirúrgicos. Idolatrado como poucos. Venceu a Copa de 1986 pela Argentina e ainda jogou outras edições de Mundiais. (1982-1990-1994)

 

    Outro nome não menos reverenciado: o brasileiro Ronaldo de Assis, mais conhecido como Ronaldinho Gaúcho, jogador profissional nas primeiras décadas do século XXI (1999-2013). Seus dribles foram aplaudidos até mesmo pelas torcidas rivais. A marca peculiar e exagerada era sua imprevisibilidade: toques com as costas, de calcanhar, chapéus, passes de um lado, olhando para o outro. É chamado até hoje de “bruxo”, por suas magias e feitiços nos gramados em companhia da bola. Sua alegria em campo tornava os dribles mais divertidos, arrancava sorrisos da plateia ou do telespectador na TV. Foi campeão mundial pelo Brasil, em 2002, e disputou a Copa de 2006. Ele é considerado o que mais se aproximou de Garrincha. Além de fazer os outros rirem, Ronaldinho vivia sorrindo em campo.

 

    Robinho foi outro driblador reconhecido no Brasil e no exterior, com suas “pedaladas” e seu drible que denominou “você vai pra lá, que eu vou pra cá”, conforme análise feita por Gomes-da-Silva et al. (2014). Revelado para o futebol profissional pelo o Santos Futebol Clube com passagens nos anos (2002-2010-2014) e pela Seleção Brasileira (Copas 2006-2010), Robinho tinha um foco concentrado na bola e no adversário. E um modo lúdico de enfrentar seu oponente, com decisões rápidas e deslocamentos velozes.

 

    Atualmente, o jogador que mais representa a inventividade nos dribles é Neymar Júnior, ou simplesmente Neymar. Também oriundo da escola santista da Vila Belmiro, esse jogador se popularizou com múltiplos dribles em uma mesma jogada e sobre um mesmo adversário. Uma destreza dentro do campo e uma movimentação leve e ligeira que, na maioria das vezes, é impedido pelo antijogo, mais conhecido como “falta”, segundo o estudo de Sousa-Cruz, e Anterio (2012). Também participou de duas Copas (2014-2018) e vai para sua terceira em 2022 (Catar), em busca do hexacampeonato e do prêmio de melhor jogador do mundo pela FIFA.

 

Conclusões 

 

    Ao tentar responder a questão-problema foi feita uma aproximação dos efeitos causados pelos os dribles de Garrincha, precisamente alguns, de duas Copas do Mundo. O objetivo foi alcançado no tocante aos significados dos respectivos dribles analisados a partir da Semiótica Pragmática da Pedagogia da Corporeidade. Esta baseou-se em três categorias com seus indicadores e consequente produção de sentido. As categorias qualidade, existencialidade e generalidade desvelam os signos dos dribles como um estilo brincante, singular e excessivo, gerando efeitos emocionais, energéticos e lógicos.

 

    A qualidade dos dribles se soma sua força muscular e vitalidade nas ações de forma lúdica, seja com um ou mais adversários. A existencialidade dos dribles com sua peculiar imprevisibilidade ante os oponentes, mesmo com sua predominância de percorrer pelo lado direito do campo, mudava de direção rapidamente. E seus dribles gerais que se repetiam e que podemos ver registrados seus excessos em outros jogadores. Garrincha se notabilizou por um modelo de jogadas inesperadas, criativas, uma combinação de habilidade, astúcia, sagacidade, capacidade de simulação. A qualidade, as singularidades e as generalizações dos dribles de Garrincha significam um arranjo de várias situações de movimento-contexto criado pelos jogadores, ao jogarem. Com esse estudo foi possível descrever alguns dos dribles de Garrincha, explicitando as situações de movimento que ocorreram para uma significação para a linguagem do futebol.

 

Nota 

  1. Segundo Rui Castro (2003), autor da biografia “Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrincha”, o levantamento mais completo feito até agora das partidas disputadas pelo jogador foi o do repórter e pesquisador Antônio Roberto Arruda, nos arquivos de O Globo, Jornal dos Sports, Federação de Futebol do Rio de Janeiro, Confederação Brasileira de Futebol e Biblioteca Nacional.

Referências 

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 287, Abr. (2022)