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ISSN 1514-3465

 

Ensino remoto durante a pandemia da COVID-19: 

uma narrativa sobre a formação em fisioterapia

Remote Education During a COVID-19 Pandemic: a Narrative about Training in Physiotherapy

Enseñanza a distancia durante la pandemia de COVID-19: una narrativa sobre la formación en fisioterapia

 

Fabiane Perondi*

perondi.fabiane@gmail.com

Carlos Alberto Severo Garcia Júnior**

carlosgarciajunior@hotmail.com

Roger Flores Ceccon***

roger.ceccon@hotmail.com

 

*Estudante de fisioterapia da Universidade Federal de Santa Catarina

Bolsista da Escola de Saúde Coletiva (UFSC)

**Doutor em Ciências Humanas (UFSC)

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina

***Doutor em Enfermagem (UFRGS)

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

(Brasil)

 

Recepção: 01/10/2021 - Aceitação: 23/12/2021

1ª Revisão: 03/12/2021 - 2ª Revisão: 07/12/2021

 

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Citação sugerida: Perondi, F., Garcia Júnior, C.A.S., e Ceccon, R.F. (2022). Ensino remoto durante a pandemia da COVID-19: uma narrativa sobre a formação em fisioterapia. Lecturas: Educación Física y Deportes, 26(286), 169-179. https://doi.org/10.46642/efd.v26i286.3210

 

Resumo

    Este artigo objetiva narrar experiências pedagógicas de uma discente do curso de Fisioterapia de uma Instituição de Ensino Superior Federal, com campus descentralizado, durante a pandemia da COVID-19. Os autores promovem uma reflexão sobre a trajetória formativa após a inserção do ensino remoto por meio da escrita de uma narrativa, usando como ponto de partida o portfólio, que se constituiu como método de registro dos acontecimentos, subjetividades e relações de poder-saber que emergiram durante o percurso. Foi possível perceber que o ensino e a produção do conhecimento carecem de relação e de encontros, e que o formato de ensino remoto é precário e insuficiente para a formação de profissionais da saúde, apesar de ser uma alternativa para a educação no cenário atual. A narrativa aponta para a necessidade de análise e discussão permanente deste contexto no âmbito das universidades do país, especialmente dos cursos da área da saúde.

    Unitermos: Narrativa. Ensino Superior. COVID-19.

 

Abstract

    This article aims to narrate the pedagogical experiences of a student of the Physiotherapy course of a Federal Higher Education Institution, with a decentralized campus, during the COVID-19 pandemic. The authors promote a reflection on the formative trajectory after the insertion of remote teaching through the writing of a narrative, using the portfolio as a starting point, which was constituted as a method of recording the events, subjectivities and power-knowledge relations that emerged, during the way. It was possible to perceive that teaching and knowledge production lack relationship and meetings, and that the remote teaching format is precarious and insufficient for the training of health professionals, despite being an alternative to education in the current scenario. The narrative points to the need for permanent analysis and discussion of this context within the country's universities, especially in health courses.

    Keywords: Narrative. University Education. COVID-19.

 

Resumen

    Este artículo tiene como objetivo narrar las experiencias pedagógicas de un estudiante del curso de Fisioterapia de una Institución de Educación Superior Federal, con campus descentralizado, durante la pandemia del COVID-19. Los autores promueven una reflexión sobre la trayectoria formativa posterior a la inserción de la enseñanza a distancia a través de la escritura de una narración, utilizando como punto de partida el portfolio, que se constituyó como método de registro de los hechos, subjetividades y relaciones de poder-saber que surgieron. durante la cursada. Fue posible percibir que la enseñanza y la producción de conocimiento carecen de relación y encuentros, y que el formato de enseñanza a distancia es precario e insuficiente para la formación de profesionales de la salud, a pesar de ser una alternativa a la educación en el escenario actual. La narrativa apunta a la necesidad de un análisis y discusión permanente de este contexto dentro de las universidades del país, especialmente en las carreras de vinculadas a la salud.

    Palabras clave: Narrativa. Educación Superior. COVID-19.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 286, Mar. (2022)


 

Introdução 

 

    Em dezembro de 2019, um novo coronavírus, denominado Sars-CoV-2, foi identificado na cidade de Wuhan, na China, e espalhou-se rapidamente pelos demais países. Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia da coronavirus disease 2019 (COVID-19), doença com alta capacidade de transmissão e elevada taxa de letalidade (Fauci et al., 2020), tornando necessário estabelecer medidas de distanciamento social. Assim, o Ministério da Educação brasileiro autorizou a utilização exclusiva de recursos educacionais digitais e tecnologias de informação e comunicação para atividades pedagógicas nas universidades do país. (Brasil, 2019; 2020)

 

    O “ensino remoto” se diferencia da Educação à Distância (EaD) pelo seu caráter emergencial e provisório, o que suscitou preocupação acerca da viabilidade de ser utilizada como única estratégia pedagógica em todas as universidades públicas do país, em um contexto de precarização da educação e das Instituições Federais de Ensino Superior. Assim, o ensino remoto, no contexto da pandemia, configurou-se como um dos elementos da contrarreforma da educação em curso no Brasil e na América Latina, porque impulsionou um outro modelo de educação, resultado de uma modalidade de precarização do mundo do trabalho que esvazia o sentido da prática universitária. (Arruda, 2020; Farage, 2021)

 

    Mesmo diante da resistência ao ensino remoto por parte da sociedade e da comunidade acadêmica, essa modalidade tornou-se realidade na maioria das universidades brasileiras desde o início da pandemia. Entretanto, essa estratégia apresenta lacunas de saberes e práticas, necessitando pesquisas científicas sobre seu impacto na formação profissional (Trijueque et al., 2020). Assim, é necessária a produção de análises críticas acerca das estratégias pedagógicas, no sentido de construir subsídios que qualifiquem o ensino superior no país. Nesse sentido, este texto tem como objetivo narrar experiências pedagógicas de uma acadêmica do curso de fisioterapia em conjunto com dois docentes vinculados à uma Instituição de Ensino Superior Federal, com campus descentralizado, durante a pandemia da COVID-19.

 

Metodologia 

 

    Esse é um estudo qualitativo em forma de relato produzido a partir da escrita de um Portfólio, caracterizado como um dispositivo formativo-avaliativo da disciplina de Psicologia do curso de Fisioterapia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - campus Araranguá. O portfólio foi utilizado como uma aposta no exercício reflexivo dos estudantes acerca das experiências vivenciadas durante o segundo semestre de 2020, interseccionando teoria com as subjetividades de viver em isolamento social durante a pandemia. Foi utilizado também como estratégia para a construção de narrativas e para a reflexão sobre o percurso de aprendizagem, evidenciando avanços e dificuldades. Alves (2006) considera que os portfólios são instrumentos de avaliação dos processos de ensino que possibilitam a integração do contexto da educação aos elementos de aprendizagem relacional e significativo.

 

    O texto foi escrito a partir da experiência de uma estudante com a disciplina de psicologia e a confecção de um portfólio no decorrer da 3ª fase do curso de Fisioterapia. No mesmo semestre a autora esteve cursando outras seis disciplinas, todas na modalidade remota, porém, com outros métodos avaliativos, sendo a primeira vez o exercício de escrita de um portfólio. O portfólio foi escrito em 16 páginas, relatando as percepções diante dos tópicos abordados na disciplina, com temáticas relacionadas à “humanização do cuidado”, “comunicação em saúde”, “clínica ampliada” e “medicalização da vida”.

 

    Para isso, tomamos por base as reflexões de Foucault (1992) em relação ao que ele chama de “escrita de si”, no qual escrever é uma experiência de transformação do que se pensa e do que se é e, no qual é possível transformar aquilo que estava sendo lido, experienciado e vivido. A escrita como uma experiência de autotransformação daquilo que nos passa, nos toca ou nos acontece. (Bondía, 2002)

 

    A análise deste percurso foi produzida a partir da problematização crítica inerente aos envolvidos nessa experiência, resultando na construção de um corpus textual que retratou os sentidos comuns e divergentes sobre as experiências, intrinsecamente relacionadas à produção de subjetividades (Foucault, 1992). Pequenos recortes da narrativa da estudante aparecem no texto de modo idêntico à escrita original, preservando o tempo verbal.

 

O contexto brasileiro para o ensino remoto 

 

    Durante o período em que foi construída essa narrativa, toda a comunidade acadêmica da UFSC foi afetada pelos acontecimentos “extra muros” do isolamento social. Não há como separar educação e realidade, pois milhares de pessoas morreram, perderam empregos, adoeceram e lutaram contra outras problemáticas tão cruéis quanto o Sars-Cov-2: a pobreza, a fome e a violência, que simbolizam as desigualdades sociais do país. O Brasil encerrou o mês de setembro de 2020 com um contingente de 13,5 milhões de desempregados, representando alta de 33,1% em comparação aos números registrados em maio (Globo, 2020), além de estar imerso em uma das piores crises econômicas, políticas, éticas, sanitárias e humanitárias da sua história.

 

    As populações que se encontram em situação de vulnerabilidade em relação à segurança alimentar e nutricional são as mesmas que não possuem condições financeiras para cumprir as medidas de isolamento e distanciamento social (Ribeiro-Silva et al., 2020), além de não possuírem Equipamentos de Proteção Individual (EPI) adequados, como a máscara PFF2. Em nível mundial, em 2020, cerca de 130 milhões de pessoas foram atingidas pela fome (UNICEF, 2020), e o objetivo de erradicar esse problema no mundo até o ano de 2030 (ONU, 2018) tornou-se mais distante. Como “assistir” aulas gravadas, no silêncio do quarto, enquanto pessoas “lá fora” passam fome? Como a universidade pode contribuir para a superação dessa crise se está “dentro de casa”?

 

    Trata-se de considerar a universidade como espaço e modo de operacionalizar a luta pela saúde como um direito de todos. Do mesmo modo, a função dos docentes e discentes em uma instituição de ensino, sobretudo pública, é lutar em defesa de um ensino conectado com as necessidades da sociedade. Contudo, neste mesmo contexto, identifica-se uma necropolítica como regime de governo, caracterizada como política de morte (Mbembe, 2016) em larga escala.

 

    Enquanto o ensino remoto avança, em entrevista o presidente Jair Bolsonaro se refere à COVID-19 como uma “gripezinha” (Brasil 247, 2020), minimizando a doença, e ainda relativiza a situação dizendo que “alguns vão morrer, mas é a vida” (Catraca Livre, 2020). O mesmo chefe de Estado prescreve à população brasileira remédios sem comprovação científica. A cloroquina, neste caso, teria efeitos “milagrosos”, portanto, seria desnecessário acatar as recomendações da OMS: distanciamento social, isolamento e uso de máscara.

 

    Esses discursos e posicionamentos mostram como opera o controle social através da morte. Segundo Foucault (2005), fazer viver e deixar morrer são mecanismos de controle do biopoder, cujo aqueles que são considerados dispensáveis, especialmente as populações vulnerabilizadas, podem morrer. Assim se concretiza um projeto de genocídio de povos indígenas, negros, pobres, mulheres, pessoas em situação de rua, privados de liberdade e demais populações afetadas diretamente pela desigualdade social, racial e de gênero, orquestrado pela negligência do Estado. Vidas que não são reconhecidas como vidas e quando morrem tornam-se estatísticas, banalizando e naturalizando a morte.

 

    É nesse contexto social que as atividades de ensino superior no país foram retomadas, e na UFSC, de acordo com a Portaria 379/2020/GR, as mesmas devem ser realizadas integralmente no formato de ensino remoto, independentemente da situação epidemiológica e sanitária. Entretanto, um grande contingente de estudantes e de professores apresentou dificuldade de acesso à tecnologia, à Internet e às condições psicológicas e sociais para garantir acesso integral às estratégias pedagógicas (Gomes et al., 2021). A escrita de si, diante disso tudo, parece um caminho viável para descrever experiências que podem ser úteis na análise do ensino remoto e, de maneira geral, o percurso formativo dentro deste contexto.

 

O ensino remoto e as experiências 

 

    Segundo Brooks et al. (2020), a quarentena tem causado impactos psicológicos complexos, devido a fatores como frustração, duração do isolamento social, medo de infecção e informações inadequadas. Essas dificuldades psicológicas têm afetado a maioria dos discentes (Dias et al., 2021) e docentes (Gomes et al., 2021) inseridos no Ensino Remoto Emergencial, tanto pelos aspectos já mencionados, como pela pressão advinda das instituições de ensino para se adaptar às novas tecnologias e pela necessidade de conciliar a vida doméstica com a profissional.

    Enquanto sento na frente do computador, todos os dias, pelas mesmas 14 horas diárias, penso em tudo que acontece lá fora. Quantas pessoas morreram nesse tempo? Pessoas que agora são números, viraram estatística. As notícias alarmam, assustam. Os trends topics do Twitter espantam. Ficamos alheios, onde o fora e dentro da casa delimitam e, ao mesmo tempo, seguem as explicações do professor sobre a função endócrina em sua aula. Inclusive, às vezes sequer consigo prestar atenção naquilo que o professor está falando. Vem o sentimento de culpa. Como se a responsabilidade de conseguir dar conta de tudo isso, de aprender e ser aprovada fosse exclusivamente minha. Culpa também por não ser tão participativa durante a aula. Afinal, tudo também é tão difícil para o professor e é ainda mais sem a participação do aluno (Narrativa da estudante).

    No ensino virtual tudo fica instantâneo e efêmero. Às vezes, o “tempo” se torna tóxico e danoso, capaz, inclusive, de produzir excessos e patologizar a comunidade acadêmica. A patologização do excesso captura e forja a produção de subjetividades dentro do ensino em pandemia. A educação online vai além das aulas, na tentativa de fazer com que o rendimento, a produtividade e a qualidade de ensino sejam os mesmos em comparação ao ensino presencial. “Não dá tempo” é a sensação no online, pois embora o acúmulo de atividades seja maior, o dia continua tendo 24 horas, aliado às preocupações, medos, culpas, incertezas e inseguranças em relação ao futuro. A pandemia surge como outra forma de aprender a aprender. Assim como Freire (1997) nos indicava que ensinar a aprender é aprender a ensinar.

 

    Quando as aulas foram suspensas, em março de 2020, havia uma expectativa de que as atividades fossem retomadas com brevidade. Em outubro do mesmo ano, depois de longos meses, iniciou-se o primeiro semestre na modalidade remota. Até setembro de 2021, a instituição manteve o ensino remoto como estratégia pedagógica diante da grave situação pandêmica, ainda com pouca dimensão dos efeitos positivos e negativos na formação acadêmica em curso.

 

    O segundo semestre de 2020, na UFSC, estranhamente ocorreu no primeiro semestre de 2021, com docentes e discentes mais adaptados à situação remota e às metodologias virtuais, devido à experiência no semestre anterior. Já não havia tanta dificuldade com as plataformas digitais e com a gravação de aulas assíncronas. No modo virtual, o ensino “estica” o tempo e cria um outro sentido cronológico. A experiência passada possibilita analisar os desafios do ensino em tempo de pandemia revelando a exigência que a dimensão virtual impõe, colocando em perspectiva os fatores psicológicos. Trata-se do advento da patologização do excesso. O ensino presencial tratava o tempo de outra maneira. O que antes se resumia à três horas/aula presenciais, com o professor tirando dúvidas em sala de aula, com acesso a livros da biblioteca, espaço de discussão com os colegas, transformou-se em três horas/aula online, mais vídeo aulas do YouTube, artigos, leituras e atividades no Moodle (Sistema tecnológico adotado pela UFSC para ensino remoto).

 

    Dessa forma, na prática, foi possível perceber que a carga horária mínima do semestre no curso - que presencialmente era tranquila e ainda podia ser somada a projetos, pesquisas, monitorias e demais atividades desenvolvidas na universidade - acabou sendo exaustiva no ensino remoto. Além disso, discentes e docentes, muitas vezes, encontram-se tristes e desanimados. (Gomes et al., 2021)

 

    O semestre iniciou e muitos já estavam esgotados, sem energia. A falta de perspectivas futuras, a preocupação com a família, a conjuntura política e a situação caótica do sistema de saúde parecem agravar uma crise existencial, ética e política. O ambiente e o tempo virtual são saídas com limitações diante da necessidade da produção relacional do ensino, pois ocasionam desânimo para o estudo, até mesmo de sonhar o que virá.

    Depois de um semestre na modalidade à distância, posso concluir que aprender pela tela do computador é algo cansativo e solitário. O sentimento de ansiedade, esgotamento e desânimo se fizeram presentes na maioria do tempo. As crises de ansiedade se tornaram frequentes. A criação de vínculos e afetos entre professor e aluno, e entre os próprios alunos, tornou-se difícil. Por mais que eu não seja tímida em sala de aula, a câmera do notebook se torna um grande obstáculo para criar coragem de falar minhas opiniões, anseios, dúvidas e angústias. Não tem olho no olho. As discussões, debates e trocas perderam potência. Além disso, as horas diárias de estudo aumentaram consideravelmente, trazendo a sensação de sobrecarga e de impotência (Narrativa da estudante).

    As consequências psicológicas também se expressam fisicamente: tonturas, aperto no peito, dores no estômago, compulsão alimentar, dores musculares, problemas de pele psicossomáticos, entre outros (Chacón-Fuertes, 2020). Segundo Lipp, e Malagris (2001), o estresse pode ser definido como uma resposta dada pelo organismo diante de situações desafiantes, e envolve reações físicas, psicológicas, hormonais e mentais.

 

    Estudo recente (Gundim, 2021) mostra que o sofrimento psíquico por parte da maioria dos estudantes nesse momento pandêmico apresenta-se na forma de estresse, sentimento de incapacidade, preocupação com os cuidados preventivos e medo de perder parentes e amigos. Ainda, há preocupação com a situação econômica do país, ansiedade e depressão, além de dores de cabeça, irritação, angústia e distúrbios alimentares.

 

    A formação está em um processo de transformação das relações e vínculos. Apesar de todas as dificuldades e desafios, é um compromisso ético compartilhar as incertezas, preocupações e anseios com colegas, amigos e professores. A pandemia ensina. Aprende-se junto e distante simultaneamente. Valoriza-se trocas relacionais,como aquelas tecidas em sala de aula, com a presença do professor. As conversas nos corredores, no hall, na sala dos centros acadêmicos, na biblioteca, no restaurante universitário. Até mesmo a singela troca de olhares com os colegas quando não se está entendendo a explicação do professor. O ensino remoto reduz a vivência dessas experiências na Universidade e limita a potência crítica e coletiva do ensino. (Herrera, e Angelleti, 2021)

 

    O currículo do curso de Fisioterapia tem ênfase em disciplinas biomédicas e tecnicistas, ainda com pouca interdisciplinaridade, com uma carga horária que se mostra quase inviável no ensino remoto. Entre as áreas intercessoras, existem as disciplinas de bioética e psicologia. É comum ouvir nas conversas entre os estudantes: “pelo menos nessas matérias mais teóricas a gente não precisa se dedicar muito” ou “para que temos essas matérias na Fisioterapia?”.

 

    O ensino remoto continua operando como modo de construção de conhecimento, ainda em processo de planejamento e estruturação e que subsidia análises e reflexões curriculares e institucionais, que podem implicar em mudanças na formação de profissionais de saúde.

 

    O processo de aprendizagem se aproximou daquilo que Freire (1992) chama de “educação bancária”, onde o professor deposita a educação aos alunos, como se fossem bancos, ou seja, o conhecimento é “doado” por alguém que sabe tudo para alguém que não sabe nada. Enquanto um manda, o outro obedece. Na maioria das disciplinas, os alunos não são estimulados a questionar, criticar e problematizar. Contudo, esse conjunto de análises sobre a experiência formativa deveria induzir a um senso crítico, político e social que, muitas vezes, torna-se pouco sobressalente na realidade virtual. Em certa medida, ao problematizar a consistência e implicação da formação em pandemia pode-se, ao mesmo tempo, ocasionar uma perspectiva de movimento para outras formas de resistências.

 

    Cabe aqui enfatizar o que Freire (1992) chama de “esperançar”, que é diferente de esperança. Segundo o educador, esperançar é não se conformar com aquilo que nos acontece, mas construir novas possibilidades e saídas, como a estudante, cujo bordado à mão durante o ensino remoto contribuiu para resistir às dificuldades impostas pela pandemia da COVID-19 (Figura 1).

 

Figura 1. Bordado à mão livre feito pela autora durante o semestre remoto

Figura 1. Bordado à mão livre feito pela autora durante o semestre remoto

Fonte: Arquivo das autoras (2020)

 

Conclusões 

 

    Uma conclusão possível é: qualquer que seja a profissão, não faz sentido se não for na relação que acontece entre pessoas no cotidiano da formação. Sem o pensamento no outro, nada faz sentido sem luta, sem militância. Nada faz sentido sem política. Dessa forma, considerar o futuro dos futuros profissionais da saúde é considerar possíveis mudanças relacionadas às suas cidades e ao país.

 

    Por fim, consideramos que a experiência articula a narrativa e a narrativa dá sentido à experiência. Dessa forma, esse relato pode ser limitado, visto que o ensino remoto continua acontecendo, porém, é pertinente para instigar diálogos e reflexões diante do ensino remoto na graduação e da necessidade de inovações para garantir o aprendizado e saúde mental de estudantes e professores.

 

Referências 

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 286, Mar. (2022)