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ISSN 1514-3465

 

O espetáculo das artes marciais. O que estamos comprando?

The Martial Arts Show. What Are We Buying?

El espectáculo de las artes marciales. ¿Qué estamos comprando?

 

Luiz Felipe Machado Pinto*

l.felipemachado@gmail.com

Marcelo Moreira Antunes**

antunesmm@gmail.com

 

*Licenciado pleno em Educação Física

pela Universidade Estácio de Sá

Mestrado em Ciências da Atividade Física

pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO)

Especializado em Treinamento Desportivo

pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Membro do Centro de Estudos e Pesquisas em Lutas, Artes Marciais

e Esportes de Combate, da Universidade Federal Fluminense (CEPLAMEC - UFF)

**Pós-Doutor e Doutor na área de Educação Física

pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Mestre em Educação Física pela Universidade Gama Filho (UGF)

Pós-graduado em docência superior pela UGF

Graduado em Educação Física pelo Centro Universitário da Cidade

Atualmente é Professor Adjunto no Instituto de Educação Física

da Universidade Federal Fluminense e Professor colaborador

do Programa de Pós-Graduação em Ciência do Exercício e do Esporte

da Universidade do estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Líder do Centro de Estudos e Pesquisas em Lutas, Artes Marciais

e Esportes de Combate da UFF (CEPLAMEC-UFF)

Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Lutas e Esportes de Combate

da Universidade Federal do Pará

(Brasil)

 

Recepção: 22/03/2021 - Aceitação: 02/10/2021

1ª Revisão: 07/09/2021 - 2ª Revisão: 29/09/2021

 

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https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt

Citação sugerida: Pinto, L.F.M. e Antunes, M.M. (2021). O espetáculo das artes marciais. O que estamos comprando? Lecturas: Educación Física y Deportes, 26(283), 18-30. https://doi.org/10.46642/efd.v26i283.2933

 

Resumo

    O Canal Combate apresentando-se como o maior veiculador de conteúdo voltado às artes marciais no Brasil, se consolida como o grande representante midiático do público interessado pela temática. Assim, os conceitos gerados e a visão proferida sobre as artes marciais, influencia diretamente a visão de seus espectadores e consumidores. O objetivo do presente estudo é analisar a grade de programação semanal do Canal Combate e traçar inferências em relação ao real escopo do mesmo. O estudo analisou sua grade de programação compreendida entre o dia 20/07/2020 e 26/07/2020. Os resultados demonstraram que 34% do conteúdo veiculado pelo canal destina-se a lutas do Ultimate Fighting Championship (UFC), seguido de 19% de anúncios publicitários. O canal combate caracterizou-se como um promotor de lutas de Mixed Martial Arts (MMA), em grande parte relacionadas à empresa UFC, que possui em seu cerne o espetáculo para fins de consumo.

    Unitermos: Mídia. Espetáculo. Artes marciais.

 

Abstract

    The Combate Channel, presenting itself as the largest content provider focused on martial arts in Brazil, consolidates itself as the great media representative of the public interested in the theme. Thus, the generated concepts and the vision given about the martial arts, directly influences the view of its spectators and consumers. The objective of the present study is to analyze the weekly schedule grid of the Combate Channel and draw inferences in relation to its real scope. The study analyzed its programming schedule between 07/20/2020 and 07/26/2020. The results showed that 34% of the content broadcast by the channel is intended for Ultimate Fighting Championship (UFC) fights, followed by 19% of advertisements. The combat channel was characterized as a promoter of Mixed Martial Arts (MMA) fights, largely related to the UFC company, which has at its core the spectacle for consumption purposes.

    Keywords: Media. Spectacle. Martial arts.

 

Resumen

    El Canal Combate, presentándose como la mayor emisora ​​de contenidos dirigidos a las artes marciales en Brasil, se consolida como el gran medio representativo del público interesado en el tema. Por lo tanto, los conceptos generados y la visión dada sobre las artes marciales influyen directamente en la visión de sus espectadores y consumidores. El objetivo de este estudio es analizar la programación semanal de Canal Combate y hacer inferencias en relación a su alcance real. El estudio analizó su calendario entre el 20/07/2020 y el 26/07/2020. Los resultados mostraron que el 34% del contenido transmitido por el canal está destinado a peleas del Ultimate Fighting Championship (UFC), seguido del 19% de anuncios de publicidad. El canal de combate se caracterizó por ser un promotor de las peleas de Artes Marciales Mixtas (MMA), en gran parte relacionadas con la empresa UFC, que tiene como eje el espectáculo con fines de consumo.

    Palabras clave: Medios de comunicación. Espectáculo. Artes marciales.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 283, Dic. (2021)


 

Introdução 

 

    As diferentes formas de mídia estão presentes na sociedade contemporânea de forma intensa, configurando-se como um fenômeno social de escala global. Veiculam informação de diferentes tipos, formatos e características, como, opiniões, julgamentos e crenças. Ao falar de mídias abrimos um leque de possibilidades que engloba desde o potencial gerado pela televisão até os aplicativos de mensagens instantâneas como o Whatsapp, Instagram, Twitter, Wechat, entre outros.

 

    Os conceitos de mídia tendem a se adequar a temporalidade a qual os autores se referem. Debord (2003) em sua obra original, lançada em 1967 sobre o título original de La Société du spectable ao falar de mídia, refere-se ao poder do jornal impresso e logo após ao poder das imagens e ideias promovidas pela televisão. Em “A cultura da mídia”, escrito por Douglas Kellner e publicado em 1995, traz conceitos de mídia os quais transitam entre as telas da televisão e dos computadores (Kellner, 2001). Este, já contemporâneo a Internet, insere em sua fala uma mídia de alcance global, com maior poder de veiculação, no entanto apresentando seu caráter comunicativo e educativo, não apenas o caráter maniqueísta da visão marxista sustentada por Guy Debord. Autores como Dias (2020) apresentam uma mídia de apropriação, a qual cria produtos e transforma seus sentidos, apoiando-se na ideia de indústria cultural construída pelos pensadores da escola de Frankfurt. Assim, podemos entender o termo mídia, como os meios de comunicação escritos, falados ou ouvidos, os quais tem por objetivo final a transmissão de um conteúdo.

 

    O poder midiático de gerar conceitos cria por muitas vezes deturpações da realidade em prol da audiência (Miranda Filho, e Santos, 2014; Kurtz, 2015; Montero, e Ferré-Pavia, 2017). O conteúdo promovido alimenta um grande mercado voltado ao consumo, o qual, de acordo com Pires (2000), a indústria midiática nos “despeja” diariamente entretenimento, notícias, fatos, curiosidades e claro, propagandas. Somos a todo tempo instigados a comprar algo, onde o apelo das cores cintilantes, movimentos e as músicas que embalam nossos sonhos se misturam a componentes complexos de programação neurolinguística. Neste grande mercado vêem os esportes de combate como um produto a ser midiatizado e consequentemente espetacularizado.

 

    No estudo de Miranda Filho e Santos (2014) buscou-se estabelecer uma discussão entre a prática de espetacularização da mídia e as artes marciais, especificamente o MMA. Em sua análise os autores ratificaram o objetivo principal de veiculação e criação de fenômenos esportivos por parte da indústria midiática, o consumo. Para os autores o esporte apresenta-se como uma das manifestações socioculturais mais relevantes da sociedade contemporânea. Sendo esta sociedade a da informação e do espetáculo, visando unicamente o lucro (Miranda Filho, e Santos, 2014). No entanto, para além de sua vertente espetacularizada, não se pode excluir o poder transformador e de inserção social que ainda detém o esporte. (Reyna, 2019)

 

    Corroborando com o que foi exposto anteriormente, Demétrio, e Oliveira (2013) afirmam que o aumento de modalidades esportivas pelo mundo e o aumento do tempo disponibilizado pela mídia para tratar de assuntos relacionados à temática são indicadores de que o esporte é um dos mais importantes fenômenos deste século. Os autores apresentam o caso do lutador Anderson Silva, como forma de demonstrar o processo de espetacularização do MMA, ao citar a utilização de uma técnica comum de identificação público-conteúdo, a exaltação do herói, na qual a construção do personagem de origem humilde que através das artes marciais, conquistou a ascensão social, refletindo o logro do desejo de muitos. Para Demétrio, e Oliveira (2013), o esportista (consumidor) é um apaixonado que se satisfaz muitas vezes, apenas em ser representado pelo seu herói dentro do octógono. Para os autores

    O magnetismo das lutas que favorece a fama dos lutadores impõe uma condição mítica a uma parcela dos atletas contemporâneos. O discurso e a prática das lutas que já foram divinos assumiram caráter mercantil e ideológico. A projeção de grande parcela da população reside na possibilidade de realizações semelhantes às dos lutadores apresentadas pela mídia. (Demétrio, e Oliveira, 2013, p. 52)

    Como apontam Vasques, e Beltrão (2013), a popularização do MMA transita nos mais diferentes círculos sociais e faixas etárias, chegando as escolas com um caráter de equivalência frente aos demais esportes. O MMA que nasceu e se desenvolveu no limite da violência, que o esporte midiático propôs como socialmente aceita, não pode ser ignorado como fenômeno cultural. Ainda de acordo com Vasques, e Beltrão (2013), a falta de instrução não apenas sobre o MMA, mas das lutas como conteúdo por parte dos professores, priva aqueles que ainda estão em formação sociocultural, não sendo apresentados por aqueles que deveriam ensiná-los, a um posicionamento científico sobre o tema, deixando-os a mercê de uma educação midiática.

 

    Espetáculos envolvendo as artes marciais cresceram em número e qualidade nos últimos anos, demonstrando um aumento do interesse midiático nas artes marciais (Vasques, e Beltrão, 2013). No entanto, não há como negar a superioridade de estrutura e poder promovida pelo Ultimate Fight Championship (UFC), o maior evento de artes marciais mistas, ou Mix Martial Arts (MMA), do mundo (Redaçao NSC, 2016). Criado na década de 1990 por Rorion Gracie, membro da família Gracie, possuía o intuito de provar a superioridade da arte marcial Jiu-Jitsu e suas adaptações, realizadas pelos promotores, em comparação a outras modalidades de combate (Awi, 2012). Os confrontos aconteciam, e ainda acontecem, em um ringe octogonal, com grades laterais que impedem a saída dos oponentes por dentre as cordas tradicionais usadas em ringues de boxe. Nesse formato original o vencedor se sagrava por desistência ou nocaute (Linck et al., 2013). Se configurava como um combate de poucas regras que visava à simulação de um combate real, sem equipamentos de proteção e sem tempo limite (Martins, 2014). O próprio formato do torneio já atendia a espetacularização, visto sua veiculação pela mídia, a construção do ‘melhor lutador’ e com objetivo de venda de um produto ou ideia, o Jiu-Jitsu brasileiro. O evento que foi vendido pouco tempo depois pelo valor de 2 milhões de dólares, hoje é avaliado em aproximadamente 27 bilhões de dólares. (Awi, 2012, AgFight, 2018)

 

Imagem 1. Canal Combate é o primeiro canal do mundo com 

programação 24 horas voltadas ao mundo das artes marciais

Image 1. Canal Combate é o primeiro canal do mundo com programação 24 horas voltadas ao mundo das artes marciais

Fonte: Facebook.com/CanalCombate

 

    Acompanhando a onda gerada pela busca de informação das lutas midiatizadas, tendo como seu grande promotor o UFC, no Brasil, na década de 1990 um canal de televisão fechado foi criado e denominado de acordo com o gênero principal que veicularia, o canal ‘Combate’. O Canal Combate é um canal de televisão por assinatura, fundado em 9 de agosto de 2002, pertencente a Globosat, tendo como proprietário as organizações Globo. Nasceu do Premiere Esportes, criado em 2000, que já exibia lutas de eventos como UFC, Pride, WEF e Meca. Primeiro canal do mundo com programação 24 horas voltadas ao mundo das artes marciais, se tornando a maior referência na televisão brasileira quando se pensa na temática (Ozório, 2020). O canal, como é de se esperar de um veículo de mídia, transmite mais que informações sobre artes marciais e esportes de combate, tendo o entretenimento e a oferta de produtos em seus serviços. Comum às transmissões do canal, bordões como “brutal”, “apagou” e “arrasador”, são proferidos por várias vezes ao longo da transmissão. A temática da violência esportiva é tema constante de pesquisa, seja na análise das causas desta, seja na busca de caminhos para atenuá-la (Schaefer, e Cabrera, 2021). Nas artes marciais o tema ainda é mais incidente, principalmente no que tange a formação de lutadores e espectadores. (Channon, 2020; Hewitt, Kim, Park, e Park, 2020)

 

    Kellner (2001) a respeito da mídia contemporânea, a compreende como uma forma de “pedagogia cultural”, a qual contribui para como devemos nos portar, agir e até mesmo sentir a respeito de determinado conteúdo. Assim, conhecer os mecanismos e estratégias pelas quais os meios de mídia transmitem suas informações e ideias dá ao consumidor-espectador a independência necessária do discernimento. Para Kellner (2001):

    [...] a obtenção de informações críticas sobre a mídia constitui uma fonte importante de aprendizado sobre o modo de conviver com esse ambiente cultural sedutor. Aprendendo como ler e criticar a mídia, resistindo a sua manipulação, os indivíduos poderão fortalecer-se em relação à mídia e a cultura dominantes. (2001, p. 10)

    O Canal Combate apresentando-se como o maior veiculador de conteúdo voltado às artes marciais no Brasil, se consolida como o grande representante midiático do público interessado pela temática. Assim, os conceitos gerados e a visão proferida sobre as artes marciais, influencia diretamente a visão de seus espectadores e consumidores, interferindo no próprio processo de busca, escolha e seleção dos locais de treino por parte dos praticantes. Assim, analisar o escopo do Canal Combate se faz fundamental para compreender o que se está de fato consumindo. Portanto, o objetivo do presente estudo é analisar a grade de programação semanal do Canal Combate e traçar inferências em relação ao real escopo do mesmo.

 

Métodos 

 

    Esse estudo, que se caracteriza como descritivo, analisou de forma transversal as características do Canal Combate tomando por base sua grade de programação referente à semana compreendida entre o dia 20/07/2020 e 26/07/2020. Os programas foram alocados de acordo com a incidência na programação e os resultados apresentados em forma de porcentagem. Os programas, assim como as sinopses oferecidas, estavam disponíveis no sítio http://programacao.globosatplay.globo.com/combate/programacao/ e a partir destas e da incidência dos conteúdos presentes na grade, foi possível traçar inferências sobre o canal, verificando a existência de hierarquização em seu conteúdo. Utilizou-se ainda a Análise de Conteúdo de Bardin (2011) no sentido de se identificar categorias e unidades de análise que auxiliassem na compreensão das mensagens, ideias e conceitos apresentados para o público pelo canal.

 

Resultados 

 

    O conteúdo da grade de programação foi alocado de forma hierarquizada a partir de sua incidência durante a semana de 20/07/2020 a 26/07/2020, conforme apresentado na Tabela 1. Foi apresentado o número de aparições de cada programa na grade da semana analisada, assim como no formado de porcentagem, objetivando demonstrar a superioridade da incidência de uns em relação ao todo.

 

Tabela 1. Descrição da grade do Canal Combate

Programa

Nº de aparições

Porcentagem de aparições

UFC

Fillers

Sessão Combate

Especial combate

Arena combate

Giro combate

Combate Brasil

MMA raiz

Hora do MMA

Escolha seu combate

40

22

13

10

8

8

7

6

1

1

34%

19%

11%

9%

7%

7%

6%

5%

1%

1%

Total

116

100%

Fonte: Elaboração pelos próprios autores

 

    O Canal Combate detém 34% de seu conteúdo voltado à veiculação de lutas do UFC, seguido de programas publicitários e de autopromoção, na maioria das vezes relacionados ainda ao UFC, denominados Fillers. Dentre os programas relacionados diretamente a veiculação de lutas do UFC, estes apresentam desde reprises de lutas classificadas pelo canal como “clássicas”, remetendo ao início do torneio, até lutas ao vivo nos sábados à noite. Fillers apresenta-se como um programa publicitário, onde a partir de reportagens e entrevistas, se promove conteúdo do próprio canal, em sua maioria ainda relacionado ao UFC.

 

    Tomando por base a própria descrição da grade de programação, o programa denominado ‘Sessão combate’ (com 11% do total de aparições na grade de programação) é composto por “documentários, séries e filmes com grandes nomes do MMA nacional e internacional produzidos em parceria com as melhores produtoras do cenário nacional”.

 

    O ‘Especial combate’ (com 9% do total de aparições da grade de programação) por vezes também veiculado pelo canal Sportv 3 (também pertencente ao sistema Globo de televisão), traz participações anteriores dos lutadores que compõem os confrontos da semana, em especial quando há uma disputa de cinturão.

 

    O ‘Arena combate’ veicula torneios de outras modalidades como o Abu Dhabi Grand Slam Jiu-Jitsu World Tour 2017/2018. O ‘Giro combate’, com a apresentadora Ana Hissa e veiculado ainda pelo Youtube e Sportv 3, possui um caráter jornalístico informativo, resumindo informações e realizando entrevistas com lutadores acerca do MMA contemporâneo. Tanto o ‘Arena combate’, quanto o ‘Giro combate’ se apresentam com 7% de aparições na grade de programação.

 

    Seguindo a descrição dos programas listados, o ‘Combate Brasil’ (com 6% do total de aparições na grade de programação) veicula torneios nacionais como o recém-criado Taura e o já consagrado Jungle fight, além de participações de lutadores brasileiros em combates do UFC. O programa ‘MMA raiz’(com 5% do total de aparições na grade de programação) veicula combates que “marcaram época”, com lutadores hoje renomados, ou aposentados, provenientes dos primeiros torneios de MMA. O programa ‘Hora do MMA’ dedica-se a veiculação de lutas em diferentes torneios, como o Invicta (torneio exclusivamente feminino e pertencente ao UFC) e Cage Rage, apresentando 1% da incidência na grade. Por fim, o programa ‘Escolha seu combate’ tem o objetivo claro de reforçar o entretenimento viabilizando o poder de escolha sobre a programação por parte do espectador. Em um sistema de votações on-line, o espectador tem a oportunidade de escolha, entre as opções dadas, de qual evento, ou luta quer assistir. Este programa também apresenta 1% do total de aparições na grade de programação.

 

Discussão 

 

    Ao analisar as características narrativas de forma-conteúdo dos gêneros televisivos Betti (1997) em sua tese de doutorado as classificou dentro de 8 categorias: falação, cotidiano, ao vivo, nostalgia, adrenalina!,esporte global, o anúncio publicitário, veja de novo e espetacular! A proposta, de acordo com o autor, leva em consideração não apenas a relação forma-conteúdo, mas, o gênero e a funcionalidade, todas pertinentes a análise realizada no presente estudo e mesmo após 23 anos de sua publicação, demonstrando-se atual.

 

    Segundo Betti (1997) a categoria “falação”, dentre suas principais características, cria expectativas e faz previsões, enquanto informa e atualiza. Esta pode ser observada durante a narração dos combates, onde comentaristas e narradores se alternam na falação, trazendo informações sobre os lutadores e opinando sobre as estratégias do combate. Na categoria “cotidiano” é onde o esporte se funde a vida dos espectadores. Temos lutadores atuando como apresentadores, lutas (combates) entre personagens de desenho animado, assim, a todo momento o esporte está em tudo. O “ao vivo” é onde há a cumplicidade narrador-espectador. O poder do imprevisível, do agora, se manifesta nesta categoria espetacularizada de narração. Na categoria “nostalgia” cria-se o vínculo temporal, muito utilizado pelo Canal Combate ao falar não apenas das “lutas ancestrais” em seus reality shows, mas, da história de confrontos e desavenças que apimentam a venda dos pay per views. “Adrenalina!” é o que faz dos espectadores do Canal Combate serem “combatentes” (nomenclatura dada pelos narradores aos assinantes do Canal Combate). A fim de criar a excitação no espectador, a chamada antes das lutas os convoca com o bordão: “calce suas luvas...” esta é a experiência mais próxima de ser um lutador, observar cada soco, cada ferimento, porém, no conforto de seu sofá. “Esporte global” é saber que o espectador faz parte de algo maior. Lutadores de diferentes países, diferentes sotaques, por um mesmo esporte, vendo o UFC como a Copa do Dundo do MMA. Como visto nos resultados do estudo e confirmando a fala de Betti (1997), a categoria “anúncio publicitário”, aqui representada pela incidência de 19% (2º lugar) de aparições dos anúncios publicitário Fillers é

    A síntese de tudo: encontramos no anúncio publicitário, condensado em poucos segundos, o espetáculo, a falação, a nostalgia, o cotidiano, a globalização, a velocidade, a ação, a emoção do esporte. Pneu, remédio, cartão de crédito, cerveja, refrigerante, automóvel, pasta dental, correios, leite, assinatura de jornal, flocos de milho, postos de combustível, sorvete, banco, companhia telefônica, perfume, desodorante, papel para xerox, pomada analgésica, televisor, aparelho de som, batata frita, cimento, freios para carro, cigarro, açúcar, canos de PVC. Não são apenas tênis e bolas, o esporte pode vender tudo. (Betti, 1997, p. 160)

    Há ainda a categoria “veja de novo”, com o poder hipnótico dos replays e reprises e a categoria “espetacular!”, a qual traz o show das micro câmeras, levando a emoção do combate, de dentro do octógono, mais próximo do espectador.

 

    As artes marciais em suas origens possuíam meramente o caráter combativo, voltado à defesa pessoal em seu aspecto militarista, predominantemente, relacionada a contextos de guerra (Antunes, 2013). Com a modernização dos armamentos de combate, o surgimento das armas de fogo e novas estratégias de guerra, um novo contexto, mais educacional e filosófico foram agregados às artes marciais, utilizando as técnicas combativas para fins de melhoramento pessoal e social (Antunes, 2013). Nesta nova fase, a esportivização das artes marciais ganhou força e junto a veiculação de seus torneios, que em sua maioria manifestam um caráter espetacularizado do novo esporte (MMA). Denominado inicialmente como ‘vale tudo’ surgiu em forma de espetáculo, onde através da idealização de um combate que se aproximasse de uma luta real, lutadores de diferentes modalidades combatiam em defesa de suas modalidades objetivando saber qual era a melhor luta, tudo realizado em um contexto televisionado. (Paula, 2016)

 

    Para Debord (2003) o espetáculo é a principal produção da sociedade. Dando voz e imagem ao espetáculo, o Canal Combate deveria ser o principal veiculador de informações sobre artes marciais no Brasil (Ozório, 2020; Dias, 2020), no entanto, veicula basicamente lutas de MMA, em sua maioria, do UFC. Seria então o MMA e sua característica espetacularizada, a representante moderna, tanto em seu conteúdo técnico quanto cultural, das artes marciais como: caratê, kung-fu, jiu-jitsu, aikidô e tantas outras? Na análise da grade de programação e das sinopses disponíveis no canal, pouco se observa conteúdo voltado a questões didático-pedagógicas e filosóficas ligadas às artes marciais. Portanto, é através do conteúdo disponível pelo canal, que o público em geral, incluindo não praticantes, futuros adeptos e iniciantes dos esportes de combate, tem seu primeiro contato com conceito de “arte marcial”. E suas concepções são construídas a partir dessas informações parciais sobre as diferentes modalidades. Essa perspectiva se aproxima de uma monocultura esportiva das artes marciais, colocando-as em uma única abordagem.

 

    Como apresentado na Tabela 1, seguido da veiculação de lutas do UFC, vê-se os denominados Fillers, em segundo lugar na quantidade de aparições na grade de programação, com 22 aparições (19% do conteúdo). No inglês coloquial os fillers ou pause fillers são palavras ou expressões que dão ritmo a uma conversa, para que não haja momentos de total silêncio no diálogo (Lima, 2020). Assim como o cerne da palavra, os fillers na grade de programação servem como ‘programas de intervalo’, para preencher a grade na ausência da veiculação das lutas. Isso demonstra, mais uma vez, o papel principal do canal como veiculador de competições de MMA, em especial do UFC.

 

    Em pesquisa encomendada pelo Canal Combate, verificou-se que 53% do público espectador do canal possui idade entre 18 e 34 anos (Dias, 2020). No entanto, há ainda uma grande parcela de crianças e adolescentes que consomem de forma direta e indireta este conteúdo, público este ainda mais suscetível a ideias e opiniões dos pretensos especialistas, como vemos no estudo de Araújo (2016). Nesse estudo, adolescentes foram expostos a lutas de MMA (UFC) a fim de buscar suas impressões a respeito dos combates. Apesar dos desfechos das lutas transitarem entre nocaute, nocaute técnico, finalização ou vitória por pontos, o comentário que resume o posicionamento dos jovens foi de que “É violento, mas é legal” (Araújo, 2016, p. 72). Esse fato é uma demonstração clara de que jovens e adultos tendem a utilizar o contexto violento proporcionado pela mídia como válvula de escape e entretenimento, levando a banalização da violência e o vínculo dela à prática das modalidades de combate de forma ampla (Rêgo, e Rodrigues, 2016). O MMA como esporte midiatizado, tende a afetar todos que são expostos aos produtos e serviços atrelados a ele, sendo foco de estudo de diferentes abordagens na área da psicologia desportiva. (Andrade, Silva, e Dominski, 2020)

 

    A associação das artes marciais e violência apresentam um forte apelo publicitário pela busca de academias, associações e clubes por pessoas que, impulsionadas por estes conceitos, buscam nas artes marciais um caminho e ferramentas para tal. Canais de mídia, como o Canal Combate, apesar de se apresentarem como representantes midiáticos dessas modalidades, na verdade representam um modelo de espetacularização esportiva com fins de consumo, associados fortemente, não a várias, mas, a uma modalidade esportiva específica, o MMA. Ela é veiculada como uma generalização das centenas de artes marciais existentes, com suas técnicas e contextos culturais diferentes e extremamente ricos, os quais são simplesmente relevados em prol do espetáculo.

 

Conclusões 

 

    O Canal Combate é um canal promotor de lutas de MMA, em grande parte relacionadas à empresa UFC, que possui em seu cerne o espetáculo para fins de consumo. As artes marciais possuem um conteúdo complexo de ser abordado pela mídia, o qual com o objetivo de se aproximar de seus conceitos culturais e ferramentas didáticas, poderia recorrer aos especialistas e estudiosos desses campos, como da didática, história, antropologia, sociologia, filosofia e educação. No entanto, o que vemos representado pelo MMA é a reafirmação das escolas de ofício, onde os especialistas são parte do contexto midiático, emitindo opiniões e conceitos baseados meramente em sua experiência prática. Assim, o que a mídia apresenta, representada aqui pelo Canal Combate, é um raso recorte das artes marciais, destacando o seu aspecto combativo, tomando o MMA como seu representante generalista capaz de dar conta de toda a complexidade que as artes marciais apresentam no contexto histórico e cultural da civilização humana.

 

    Cabe ressaltar que a investigação de um período mais longo da programação do Canal Combate pode suscitar outras possibilidades de análise. Assim como a busca de termos frequentes que dizem respeito à cultura das artes marciais nos diferentes programas, pode revelar outras facetas de uma narrativa midiática que influencia sobremaneira as concepções do seu público sobre essas práticas multiculturais. Estas que circunscrevem a própria história do desenvolvimento humano e suas diferentes possibilidades de apropriação social, no sentido de Bourdieu (2004).

 

Referências 

 

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Betti, Mauro (1997). A janela de vidro: esporte, televisão e educação física [Tese, Doutorado em Educação. Universidade Estadual de Campinas]. https://www.researchgate.net/publication/301540616

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 283, Dic. (2021)