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ISSN 1514-3465

 

Morte súbita no esporte de alto rendimento: mídia nacional sob suspeita

Sudden Death in High Performance Sport: National Mass Media under Suspect

Muerte súbita en el deporte de alto rendimiento: medios de comunicación nacionales bajo sospecha

 

Alan Camargo Silva

alan10@zipmail.com.br

 

Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Estudos em Saúde Coletiva

da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Professor do curso de pós-graduação lato sensu

em Desporto de Campo e de Quadra (EEFD/UFRJ)

(Brasil)

 

Recepção: 02/02/2021 - Aceitação: 13/05/2021

1ª Revisão: 05/04/2021 - 2ª Revisão: 22/04/2021

 

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Citação sugerida: Silva, A.C. (2022). Morte súbita no esporte de alto rendimento: mídia nacional sob suspeita. Lecturas: Educación Física y Deportes, 26(285), 186-197. https://doi.org/10.46642/efd.v26i285.2841

 

Resumo

    A morte súbita no esporte é definida como uma parada cardiorrespiratória que ocorre de forma abrupta ou imprevisível durante ou após o esforço físico. A partir de referenciais socioantropológicos sobre corpo e/ou risco, objetiva-se problematizar como o fenômeno da morte súbita no campo do esporte de alto rendimento vem sendo tratado pela mídia nacional brasileira. Em síntese, argumenta-se que a mídia nacional aborda a morte súbita no esporte de alto rendimento pelas seguintes perspectivas: a) evidência do tema a partir do aumento no número e impacto social dos casos, sobretudo no futebol; b) relações entre atletas e praticantes comuns de atividade física; c) valorização dos saberes e práticas técnico-científicas do campo médico e questões jurídicas ou mercadológicas; d) Os riscos (não) assumidos entre processos de culpabilização e questionamentos se os casos estão relacionados à fatalidade ou à negligência.

    Unitermos: Morte súbita. Risco à saúde. Esporte. Desempenho atlético. Meios de comunicação de massa. Antropologia.

 

Abstract

    Sudden death in sport is defined as a cardiorespiratory arrest that occurs abruptly or unpredictably during or after the physical exercise. Based on sociological and anthropological theories about body and/or risk, the aim of this paper is to problematize how the phenomenon of sudden death in the field of high performance sport has been approached by Brazilian national mass media. In summary, it is argued that the national mass media approaches sudden death in high-performance sports from the following perspectives: a) evidence of the theme because of the increase in the number and social impact of cases, especially in soccer; b) relations between athletes and common practitioners of physical activity; c) valuation of technical-scientific knowledge and practices in the medical field and legal or mercantile issues; d) The (non) risks assumed between fault and questioning processes if the cases are related to fatality or negligence.

    Keywords: Sudden death. Health risk. Sport. Athletic performance. Mass media. Anthropology.

 

Resumen

    La muerte súbita en el deporte se define como un paro cardiorrespiratorio que se produce de forma abrupta o impredecible durante o después de un esfuerzo físico. A partir de referencias socio-antropológicas sobre el cuerpo y/o riesgo, el objetivo es problematizar cómo el fenómeno de la muerte súbita en el ámbito de los deportes de alto rendimiento ha sido tratado por los medios de comunicación nacionales brasileños. En resumen, se argumenta que los medios nacionales abordan la muerte súbita en el deporte de alto rendimiento desde las siguientes perspectivas: a) evidencia de la temática basada en el aumento del número e impacto social de los casos, especialmente en el fútbol; b) relaciones entre deportistas y practicantes habituales de actividad física; c) valoración de los conocimientos y prácticas científico-técnicos en el campo médico y las cuestiones legales o de marketing; d) Los riesgos (no) asumidos entre los procesos de culpabilidad y el cuestionamiento de si los casos están relacionados con fatalidad o negligencia.

    Palabras clave: Muerte súbita. Riesgo de salud. Deporte. Rendimiento atlético. Medios de comunicación de masas. Antropología.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 285, Feb. (2022)


 

Introdução 

 

    “Esporte” se caracteriza por uma noção polissêmica e se configura por algumas condições que o definem: “refere-se a tipos específicos de atividades; Esporte depende das condições sob as quais as atividades acontecem; Esporte depende da orientação subjetiva dos participantes envolvidos nas atividades” (Barbanti, 2006, p. 54). Desse modo, trata-se aqui especificamente do clássico esporte-espetáculo, esporte-performance ou denominado de alto rendimento em que se insere o aspecto profissional-mercadológico e, sobretudo, transmitido pela mídia. (Murad, 2015; Tubino, 2017)

 

    Neste texto, reconhecendo a mídia nacional como aquela constituída pela coexistência da televisão, revista, jornal, rádio, dentre outros mecanismos de comunicação (Briggs, e Burke, 2016), entende-se que esse veículo se torna fundamental no sentido de legitimar o que é uma morte súbita no esporte de alto rendimento no país. Por exemplo, em uma breve revisão acerca da produção de conhecimento, pode-se observar a diversidade de trabalhos sobre mídia e esporte que investigaram questões de gênero (Ferreti, Zuzzi, Viana, e Vilha Junior, 2011; Garcia, Silva, e Pereira, 2019; Pedrosa, Nascimento, Garcia, e Pereira, 2020; Wood, 2021) ou raça/etnia (Santos, 2020), a construção da imagem de (para)atletas, ídolos ou de treinadores pela imprensa/ publicidade (Capraro, Scheliga, Cavicchioli, e Mezzadri, 2011; Cavalcanti, e Capraro, 2013; Silva et al., 2014; Poffo et al., 2017; Ferreira et al., 2018), debates sobre doping (Silva, Ribeiro, e DaCosta, 2013) e a importância do tema na Educação Física (escolar) em diálogo com o campo da Comunicação (Mendes, e Pires, 2009; Mendes, e Mezzaroba, 2012; Dorenski, Lara, e Athayde, 2020). Assim, com base em uma lacuna de conhecimento, questiona-se como a mídia nacional brasileira pode retratar especificamente a morte súbita de atletas profissionais.

 

    Usualmente, a morte súbita no esporte é definida como uma parada cardiorrespiratória que ocorre de forma abrupta ou imprevisível durante ou após o esforço físico (Wasfy, Hutter, e Weiner, 2016), ainda que, por vezes, os fatores que levam ao óbito sejam de complexa definição (Aune, Schlesinger, Hamer, Norat, e Riboli, 2020). Geralmente, a morte súbita de atletas ocorre por causas genéticas ou condições adquiridas ao longo da vida e a sua prevalência pode variar profundamente a depender, por exemplo, da idade, sexo e raça/etnia (Almeida et al., 2021). Entretanto, ainda que o falecimento do atleta profissional durante ou após as competições nos estádios e nas arenas seja um dado objetivo e de teor eminentemente biológico (“morte física”), sabe-se que tal fato social pode conter elementos simbólicos e interpretativos em função de determinados grupos sociais em dado tempo histórico. (Mauss, 2015)

 

    Destarte, as enunciações midiáticas sobre a esse tema devem ser cada vez mais aprofundadas na área de Educação Física/ Esportes, principalmente pela perspectiva das Humanidades objetivando tecer relações com a sociedade (Vaz, 2020). Além disso, quanto à intervenção dos profissionais de Educação Física, Silva, e Silva (2018) sugerem justamente uma abordagem ético-moral e crítico-reflexiva acerca das potencialidades e limites do esporte com base na vida social. Assim, para além de uma formação, regulamentação e habilitação técnico-científica pautada eminentemente em parâmetros objetivos do campo da Saúde ou da racionalidade biomédica, os profissionais da área de Educação Física podem ser educadores sensíveis também a uma compreensão subjetiva, social e cultural do “corpo esportivo” perante a mídia. Para Lüdorf (2019, p. 314), “esse corpo divorciado do ‘eu’, objetivo, mensurável, quantificável e fragmentado está nas raízes da medicina e, ao que acrescentaria, nas da própria Educação Física”, independente do âmbito de atuação. Os trabalhos de Pires (2001), Mendes, e Pires (2009), Pires, Lazzarotti Filho, e Lisbôa (2012) defendem o avanço pedagógico da área de Educação Física ao realizar interface com o potencial da Mídia-Educação.

 

    Nesse contexto, argumenta-se aqui que essa lente teórico-metodológica pela ótica socioantropológica pode fornecer indícios e substrato argumentativo para compreender a importância e a responsabilidade social dos veículos de comunicação em geral acerca da morte súbita no esporte. Tal perspectiva de análise refere-se à possibilidade de revelar os sentidos e os significados que as reportagens atribuem ao fenômeno da morte súbita no esporte e de que formas as lógicas discursivas das matérias se consolidam na mídia nacional brasileira.

 

    Destarte, o presente trabalho baseia-se fundamentalmente na abordagem sociocultural (Manoel, e Carvalho, 2011). Embora aqui se reconheça a compreensão do “falecimento” pela via biomédica, argumenta-se a necessidade de explorar esse fenômeno também por referenciais socioantropológicos sobre corpo e/ou risco (Le Breton, 2009, 2013, e 2016). Assim, ao mesmo tempo em que se reconhece a morte (súbita) como uma construção biomédica, defende-se aqui a relevância da ótica sociocultural uma vez que “O homem é o único ser vivo consciente da sua própria morte” (Malysse, n.d., p. 1). Por outro lado, nenhum ser humano sabe efetivamente o que é a morte já que carece da experiência físico-carnal. (Pereira, 2017)

 

    Assim, em termos gerais, nesse artigo de opinião, objetiva-se problematizar como o fenômeno da morte súbita no campo do esporte de alto rendimento vem sendo tratado pela mídia nacional brasileira.

 

Notas metodológicas 

 

    Baseado em uma breve revisão narrativa (Vosgerau, e Romanowski, 2014), pode-se documentar uma série de reportagens ligadas ao assunto nas ferramentas de busca ou denominados de buscadores online.

 

    Para o presente texto, foi selecionado o motor de busca Google. Na aba “ferramentas”, foram selecionados os descritores “morte súbita” and “esporte”. Os filtros para a busca de reportagens nos jornais ou revistas online foram: a) qualquer conteúdo; b) no país Brasil; c) intervalo de 2007 a 2017; d) organizados por data; e) ocultando publicações duplicadas. A proposta central foi compreender as notícias brasileiras sobre o tema em um intervalo de uma década, em especial, no período aproximado em que o país sediou a Copa das Confederações em 2013, Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos/ Paralímpicos em 2016. Tal período foi pautado na perspectiva de Bezerra, e Souza (2014) quando afirmam que os megaeventos esportivos no Brasil fatalmente influenciariam nas informações midiáticas.

 

    Foram encontradas 1850 notícias. No entanto, após a leitura das manchetes, optou-se por analisar e delimitar as matérias que tratavam especificamente do esporte de alto rendimento, totalizando, ao final, 20 reportagens para o corpus de análise. Todas as reportagens estavam presentes em jornais e revistas especializadas sobre esporte ou atreladas às seções de veículos de comunicação de grande circulação brasileira que tinham colunas dedicadas ao tema.

 

    A categorização do material empírico foi desenvolvida pela análise de conteúdo temática de Turato (2011) a partir dos critérios documentais de Bardin (2006): acesso, exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência. O processo de categorização permitiu construir quatro grandes temáticas, que poderão ser vistas a seguir.

 

Imagem 1. O falecimento do jogador Serginho do time São Caetano em 2004 foi fundamental para pensar a morte súbita

Imagem 1. O falecimento do jogador Serginho do time São Caetano em 2004 foi fundamental para pensar a morte súbita

Fonte: https://www.hojeemdia.com.br

 

Possíveis aproximações 

 

    Em termos gerais, ao transitar pelos jornais e revistas brasileiras que possuem matérias relacionadas ao esporte, foi possível identificar que há relativa dificuldade da mídia em tratar sobre a morte súbita no esporte.

 

    Em primeiro lugar, pode-se apontar a evidência do tema a partir do aumento no número e impacto social dos casos, sobretudo no futebol. Tal impressão foi apresentada nas próprias reportagens. Esse cenário se coaduna com a percepção de Betti (2001) sobre a monocultura esportiva da mídia brasileira relacionada ao futebol. Alguns exemplos de matérias: “Cientistas estudam causas de morte súbita no futebol” (publicado em 09.03.2009 no site www.esportes.estadao.com.br) e “FIFA mostra que 84 atletas morreram em campo nos últimos cinco anos” (publicado em 24.05.2012 no site www.globoesporte.globo.com).

 

    O caso do jogador Marc-Vivien Foé da seleção dos Camarões em 2003 aumentou a visibilidade internacional sobre a morte súbita e frequentemente se torna matéria das reportagens. Já no Brasil, o falecimento do jogador Serginho do time São Caetano em 2004 foi fundamental para pensar a morte súbita no país.

 

    Ao longo das leituras das reportagens e principalmente por meio das imagens dos jogadores, pode-se apreender uma espécie de heroicização no que diz respeito ao legado pessoal e profissional dos atletas. Antes ou depois de comentar a morte súbita, parece que há uma necessidade velada de positivar a história de vida das vítimas com o intuito de amenizar o tema, o que poderia ser diferente em outros grupos sociais haja vista as infinitas possibilidades dos sujeitos conceberem o falecimento (Elias, 2001; Mauss, 2015). As imagens das matérias priorizavam momentos de ação, vibração, conquistas e esforço do atleta falecido, como foi identificado de forma similar na pesquisa de Garcia, Silva, e Pereira (2019).

    Como pano de fundo, nas reportagens, é comum tornar o atleta como um “homem guerreiro” que, no campo de batalha, morreu lutando em prol da vitória. A derrota de um jogo ou até mesmo referindo-se à própria vida parece adotar uma série de dispositivos de um tipo de masculinidade que tradicionalmente está arraigada no esporte, em especial, no futebol (Elias, e Dunning, 2019). Por isso, no campo da mídia esportiva, urge a necessidade de cada vez mais a representatividade feminina nas redações jornalísticas brasileiras. (Brum, e Capraro, 2015)

 

    De certo modo, pode-se questionar em que medida há modos de silenciamento, negação, seletividade ou até mesmo proibição da mídia nacional em aprofundar criticamente os diversos fatores que podem levar o atleta à morte súbita. Será que o tabu da morte delineado por Rodrigues (2017) pode explicar o fato da mídia nacional tratar o tema apenas quando ocorre algum evento desse tipo? Argumenta-se aqui que a mídia nacional possui a obrigação ou o dever social e moral de abordar periodicamente o tema em suas reportagens ao invés de apenas noticiar, de modo descontínuo, no momento em que, por vezes, denominam de “fatalidade” ou “acidente”.

 

    Em segundo lugar, observam-se as relações que as reportagens traçam entre atletas e praticantes comuns de atividade física quando se trata da morte súbita no esporte. Exemplarmente, isso foi problematizado em notícias como “O que está havendo no esporte? Médico explica casos de morte súbita” (publicado em 11.05.2016 no site www.globoesporte.globo.com) e “Fique longe do exagero! Morte súbita de atletas e em academias; como acontece e de que forma pode ser evitada” (publicado em 10.11.2016 no site www.bonde.com.br).

 

    Facilmente, é possível encontrar uma associação entre o esporte de alto rendimento exercido pelo atleta-profissional e aquele praticado no lazer por “pessoas comuns”. Tal realidade se coaduna com a perspectiva de Mendes (2020) quando afirma que, por vezes, os praticantes esportivos não profissionais da contemporaneidade acabam se envolvendo com o que vem sendo compartilhado no esporte de alto rendimento. Geralmente, as notícias analisadas citam um componente genético e doenças pré-existentes que poderiam acometer qualquer pessoa com imagens que aludem aos exames clínicos, à medicina ou ao médico.

 

    As reportagens reforçam uma relativa (auto)vigilância ou gestão do interior do corpo daquele praticante de esporte de “fim de semana” ao alertar sobre os possíveis riscos que os atletas diariamente se expõem. Assim, ao noticiarem uma morte súbita do esporte de alto rendimento fazendo relações com seus espectadores, a reportagem sugere um estado de “pré-enfermidade” dos leitores com o intuito de começarem um autocuidado. Assim, a ideia mais presente e familiar de morte de tempos antigos, problematizada por Elias (2001), parece ficar mais evidente com esse teor de notícia acerca do cenário esportivo.

 

    Imperativos como “Cuide você da sua saúde!”, “10 passos para você se exercitar com segurança” ou “Conheça os sinais do seu corpo!” e recomendações de boas práticas ou condutas para um não-risco são frequentemente delineadas por algumas notícias da mídia nacional. Se as práticas esportivas ditam uma moda para/com/no corpo (Le Breton, 2013), pode-se afirmar que esses tipos de reportagem também ajudam na construção social da morte. Entretanto, ressalta-se que isso não significa que o sujeito-receptor seja passivo quanto ao teor desse tipo notícia, pois há atribuições particulares à mensagem midiática. (Pires, 2001)

 

    Em terceiro lugar, grande parte das reportagens investigadas se estabelece entre uma valorização dos saberes e práticas técnico-científicas do campo médico e questões jurídicas ou mercadológicas colocadas em discussão da morte súbita. É possível observar isso em algumas matérias, tais como: “Atestado médico pode detectar doenças e evitar morte súbita” (publicado em 12.03.2015 no site www.diariodepernambuco.com.br) e “O atleta está trabalhando perto do limite, diz médico” (publicado em 04.10.2015 no site www.tribunadonorte.com.br).

    As reportagens supracitadas parecem valorizar o predomínio do conhecimento (bio)médico em detrimento de outras instâncias da vida do atleta. A experiência, subjetividade e o vivido do atleta com os seus vínculos ou inserções sociais ficam secundarizados nas reportagens quando enunciam o seu falecimento. No ponto de vista de Betti (2001), as vozes dos atletas enquanto seres integrais costumam ficar obscurecidas na mídia em função da tradicional ideia de máquina de rendimento esportivo.

 

    Nesse sentido, algumas notícias acabam privilegiando uma textualização acerca da tradicional supervisão com check-up, exigência de atestados e exames médicos periódicos como se fossem a “salvação da segurança no esporte”. As matérias não problematizam, de maneira aprofundada, a noção do atleta como “trabalhador” que detém determinados direitos e se sobrecarga em dadas condições laborais, por vezes, insalubres. Há tempos Betti (2001) já denunciava, por exemplo, a superficialidade e a prevalência dos interesses econômicos da mídia sobre o esporte. Mais recentemente, Betti, e Mendes (2016) defendem a necessidade de ampliar a interlocução entre as tecnologias de informação e comunicação e os aspectos comunicativos referentes ao esporte.

 

    Assim, a mesma mídia nacional que deveria denunciar os aspectos econômicos que, na maioria das vezes, interferem na saúde da atleta, pode ser a mesma que lucra com a invisibilidade dada à morte súbita no esporte de alto rendimento. Responsabilização ou criminalização são aspectos que deixam de ser tratados em termos jurídicos nas reportagens, mas que seria de extrema relevância ao colocar em xeque as instituições ou organizações esportivas.

 

    Em quarto lugar, mas não menos importante, as reportagens tratam sobre os riscos (não) assumidos entre processos de culpabilização e questionamentos se os casos estão relacionados à fatalidade ou à negligência. Destacam-se algumas matérias nesse sentido: “Jogador do São Caetano, morto no dia 27 de outubro de 2004, sabia que não podia jogar futebol? Com esquivas de médicos do clube e do Incor, dúvida permanece” (publicado em 23.10.2014 no site www.esporte.ig.com.br) e “‘Peneira genética’ pode ajudar a escolher e melhorar atletas de elite” (publicado em 01.09.2016 no site www.folha.uol.com.br).

 

    Algumas notícias costumam problematizar se os possíveis riscos à morte súbita descobertos pelo atleta deveriam ser determinantes para continuar ou não na carreira. As reportagens não são consistentes ao tratar o assunto, pois ora consideram a morte súbita como um evento inesperado e isolado, ora já esperado e potencialmente constante. Independente da forma como divulgado, tal evento súbito impacta emocionalmente toda a sociedade, sobretudo quando se trata de atletas jovens. (Bergamaschi, Matsudo, e Matsudo, 2007)

 

    Em termos gerais, os aparatos tecnológicos, biomédicos e institucionais parecem estar “em jogo” e são minuciosamente examinados ao elaborar uma reportagem. Na leitura das reportagens em tela, pode-se identificar claramente a ausência de outras explicações que levariam à morte súbita do atleta de uma determinada modalidade esportiva de alto rendimento como, por exemplo, supostos usos “inadequados” ou “anti-éticos” do corpo, como foi encontrado por Silva, Ribeiro, e DaCosta (2013). 

Algumas reportagens parecem preservar a “imagem do atleta” ao não sugerir ou questionar em que medida houve a utilização de recursos ditos ilícitos ou, até mesmo, se calar sobre as condições de treinamento desfavoráveis em termos físico-orgânicos.

 

Conclusão 

 

    Em suma, tendo em vista o exposto com base nessas possíveis aproximações, compreende-se que aparentemente o tratamento acerca da morte súbita no esporte ainda é incipiente na mídia nacional brasileira e, quiçá também pelo cenário acadêmico, em especial, no campo “não-biomédico” da subárea sociocultural da área de Educação Física/ Esportes.

 

    Dentre outros possíveis aspectos, torna-se imperioso aprofundar os quatro pontos problematizados nesse texto: em quais circunstâncias a mídia visibiliza a morte súbita no esporte de alto rendimento? Até que ponto são pertinentes as aproximações entre atletas e não-atletas nas notícias sobre esse assunto? A partir de quais saberes e práticas a mídia se apoia para tratar do tema? Em que medida a mídia possui espaço para questionar cada caso? No momento, para além de uma opinião, torna-se, ao menos, interessante colocar a mídia sob suspeita acerca da morte súbita no esporte, principalmente de alto rendimento.

 

    Enfim, a morte súbita durante a prática de um esporte pode ser um dado fundamental para (re)pensar o que a própria sociedade entende como vida. Portanto, surpreende-se a secundarização desse tema nesses campos de saber pelas humanidades na medida em que o corpo, as práticas corporais e esportivas, paradoxalmente, relacionam-se ao bem-estar, à saúde ou à vitalidade da performance dos elementos anatomofisiológicos do humano.

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 285, Feb. (2022)