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ISSN 1514-3465

 

Humanização do cuidado em saúde em município de pequeno porte

Humanization of Health Care in the Small Municipality

Humanización de la asistencia sanitaria en una pequeña ciudad

 

Joni Marcio de Farias*

jmf@unesc.net

Marieli Mezari Vitali*

marielimezari@gmail.com

Greicy Abel Gonçalves***

greicyabel@gmail.com

Jacks Soratto****

jacks@unesc.net

 

*Professor vinculado ao Mestrado Profissional e Programa de

Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva

da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC)

Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC)

**Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação

em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Especialista em Psicodrama Psicoterapêutico

pelo Centro Universitário Amparense (UNIFIA)

***Mestranda vinculada a Programa de Mestrado Profissional

da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC)

****Professor vinculado ao Mestrado Profissional e Programa

de Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva

da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC)

Doutor em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

(Brasil)

 

Recepção: 21/07/2020 - Aceitação: 15/02/2021

1ª Revisão: 29/10/2020 - 2ª Revisão: 12/02/2021

 

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Citação sugerida: Farias, J.M. de, Vitali, M.M., Gonçalves, G.A., e Soratto, J. (2021). Humanização do cuidado em saúde em município de pequeno porte. Lecturas: Educación Física y Deportes, 26(275), 137-149. https://doi.org/10.46642/efd.v26i275.2463

 

Resumo

    A Política Nacional de Humanização é um importante instrumento de atuação por considerar o sujeito como coparticipante no processo de saúde e respeitar as singularidades dos usuários, além de sua importância no trabalho em equipe e na integralidade do cuidado. O presente estudo busca compreender a práxis dos profissionais que atuam com a Política Nacional de Humanização em um município considerando a realidade local. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada com 65 profissionais da rede municipal de saúde por meio de entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram analisadas por meio de análise de conteúdo, que permitiu evidenciar dificuldades na compreensão da Política Nacional de Humanização, complexidade na realização de práticas humanizadas, agregadas ao desconhecimento dos elementos textuais gerais da política investigada. Concluímos que o desconhecimento sobre a temática não impede o profissional em ter um atendimento mais humanizado, mas as dificuldades facultadas no município interferem na realização de um trabalho pleno.

    Unitermos: Humanização. Pessoal da saúde. Trabalho humanizado.

 

Abstract

    The National Humanization Policy is an important instrument of action for considering the subject as a co-participant in the health process and respecting the singularities of the users, in addition to its importance in teamwork and comprehensive care. The present study seeks to understand the praxis of professionals who work with the National Humanization Policy in a municipality considering the local reality. This is a qualitative research carried out with 65 professionals from the municipal health network through semi-structured interviews. The interviews were analyzed through content analysis, which made it possible to show difficulties in understanding the National Humanization Policy, complexity in carrying out humanized practices, added to the ignorance of the general textual elements of the investigated policy. We conclude that the lack of knowledge about the theme does not prevent the professional from having a more humanized service, but the difficulties provided in the municipality interfere in the performance of a full job.

    Keywords: Humanization. Health personnel. Humanized work.

 

Resumen

    La Política Nacional de Humanización es un importante instrumento de acción para considerar al sujeto como copartícipe del proceso de salud y respetar las singularidades de los usuarios, además de su importancia en el trabajo en equipo y la atención integral. El presente estudio busca comprender la praxis de los profesionales que trabajan con la Política Nacional de Humanización en un municipio considerando la realidad local. Se trata de una investigación cualitativa realizada con 65 profesionales de la red municipal de salud a través de entrevistas semiestructuradas. Las entrevistas fueron analizadas mediante análisis de contenido, lo que permitió evidenciar dificultades en la comprensión de la Política Nacional de Humanización, complejidad en la realización de prácticas humanizadas, sumado al desconocimiento de los elementos textuales generales de la política investigada. Concluimos que el desconocimiento sobre el tema no impide que el profesional tenga un servicio más humanizado, pero las dificultades que brinda el municipio interfieren en la realización de un trabajo completo.

    Palabras clave: Humanización. Personal sanitario. Trabajo humanizado.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 275, Abr. (2021)


 

Introdução 

 

    No Brasil, a partir da década de 1990 se inicia o processo de implantação de Políticas Públicas definidas na Constituição Federal de 1988. Partindo dos princípios da universalidade, do atendimento integral, da descentralização e da participação da comunidade (Menicucci, 2009), reconfigurou-se o modo de pensar a saúde no país, promovendo avanços importantes. Neste contexto, o Ministério da Saúde, em 2003, constituiu a Política Nacional de Humanização (PNH), refletindo sobre à organização social e institucional das práticas de atenção, qualificação da gestão e atenção à saúde, com responsabilização de todos os atores envolvidos, o que implicou na atitude dos usuários, trabalhadores e gestores em todo processo. (Ministério da Saúde, 2003)

 

    A PNH foi o principal instrumento que propôs mudanças na forma de produzir saúde voltada ao usuário e sua singularidade, corresponsabilizando todos os envolvidos no processo. Além de fortalecer o compromisso do direito à saúde do cidadão e o trabalho em equipe, de modo a fomentar a integralidade e a grupalidade, com engajamento dos usuários, autonomia, protagonismo e acompanhamento das ações (Ministério da Saúde, 2003). Compreendida como uma Política Pública, a PNH é uma ferramenta importante para uma saúde pública com ênfase no sujeito (Benevides, e Passos, 2005), caracterizada por práticas que garantem o reconhecimento da necessidade do outro de maneira integral e transversal, construídas com base no diálogo e troca de saberes. (Ayres, 2004)

 

    Dentre as ferramentas da PNH que podem ser implementadas no cuidado em saúde, o acolhimento, a clínica ampliada e grupos de trabalho possibilitam melhorias nos aspectos individuais e coletivos do trabalho em saúde (Reis-Borges, Nascimento, e Borges, 2018). No que se refere aos usuários, em um estudo de Silva (2019), identificou-se o desconhecimento dos mesmos sobre o que é a PNH e também sobre seus direitos e deveres.

 

    Os gestores possuem papel fundamental na condução das políticas públicas de seus territórios. No entanto, devem atuar em conjunto com profissionais da saúde e usuários nas discussões e processos de decisão quanto ao aperfeiçoamento do sistema de saúde a partir da PNH. Nesse contexto, sem fragmentação e silenciamento, fugindo de um modelo de gestão centralizado. (Camacho, 2016)

 

    A efetividade da PNH, portanto, deve ser compartilhada entre trabalhadores, usuários e gestores. Há necessidade de alinhar condutas e estratégias para minimizar os impactos de uma saúde não humanizada, valorizando a empatia, solidariedade, respeito e compreensão em todo processo de produzir saúde (Backes, Koerich, e Erdmann, 2007). Nesse contexto, o objetivo deste estudo é compreender a práxis dos profissionais que atuam na saúde pública frente a PNH, verificando as possíveis ambiguidades, contextualizada a partir da realidade local.

 

Método 

 

    Trata-se de um estudo de levantamento normativo, a qual procura reunir dados de conhecimento de uma população e apresentar os resultados na forma de padrões comparativos. O trabalho foi registrado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Extremo Sul Catarinense sob o parecer nº 2.744.790.

 

    O estudo foi realizado em uma cidade do sul de Santa Catarina. A amostra foi composta por 65 profissionais que atenderam aos critérios de inclusão: ser profissional de Unidade Básica de Saúde do município, estar a no mínimo um ano no cargo e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Como critério de exclusão foi definido não ter formação em saúde. Desse modo, a amostra ficou constituída por 43% técnicos de enfermagem (28), 24,6% médicos (16), 20% enfermeiros (13) e 12,4% auxiliares de enfermagem (8).

 

    Após consentimento da Secretaria de Saúde do Município, os servidores receberam um convite de participação e com o aceite foram agendadas as visitas para a aplicação do questionário. Foram entregues aos profissionais um envelope contendo o TCLE, documento de identificação da profissão e tempo de atuação e o questionário. O instrumento de pesquisa construído pelos pesquisadores, era autoaplicável e composto por questões abertas sobre a temática da PNH. Após o preenchimento, os participantes inseriam os instrumentos no envelope, lacravam e devolviam ao pesquisador, minimizando a exposição do avaliado sobre seu conhecimento frente a temática investigada.

 

    As questões do instrumento perfizeram a compreensão do que é humanização, fatores de interlocução entre teoria e pratica, identificação de práticas de humanização, dificuldades e facilidades em inserir estas práticas nas rotinas de trabalho, princípios norteadores da política e a relação com os usuários.Estes aspectos foram escolhidos a fim de possibilitar a identificação da percepção dos profissionais de saúde sobre a PNH e a compreensão de suas práxis. Todas as entrevistas foram realizadas de forma individual, sem uso de Internet ou qualquer outro tipo de auxílio, garantindo o conteúdo internalizado e constituído nas práticas profissionais.

 

    Os dados foram analisados através da técnica de análise de conteúdo. A partir do conjunto de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens adotou-se a análise temática. A análise de conteúdo do tipo temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação e divide-se nas etapas de pré-análise; exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. (Bardin, 2011)

 

Resultados e discussão 

 

    A análise dos resultados indicou a existência de três categorias, a saber: Inter-relação: vínculo, afeto e protagonismos na ação em saúde; Excesso e falta: dificuldade de realização de um trabalho humanizado; e Possibilidades humanizantes e a complexidade de atuação.

 

Inter-relação: vínculo, afeto e protagonismos na ação em saúde 

 

    Associada à transversalidade, para Guattari (1981), diz respeito ao grau de abertura que consolida e garante que as práticas de saúde sejam realizadas a partir da tomada de decisão de todos os sujeitos envolvidos na produção de saúde. Não há como pensar em mudanças no campo de saúde se não possibilitar a transversalidade, a comunicação circulante em todos os níveis de atenção. Para identificar o conhecimento dos profissionais sobre esta temática, foi questionado: “Na Política de humanização um dos princípios é a transversalidade, o que você conhece sobre o assunto, identifique como ocorre na pratica do UBS”.

 

    Especificamente sobre esta temática, 26% dos profissionais não responderam, 13% relataram não saber do que se trata, 24% não conhece a diretriz e apenas 18% conhecem e responderam a questão. Conforme os trechos: “É a comunicação entre vários órgãos, setores, atendimento multidisciplinar, promovendo saúde de qualidade. Porta de entrada: UBS, quando necessário encaminhamos aos setores.” Enfermeira (2). “Assim como o indivíduo deve ser visto integralmente, o acompanhamento deve ser entre as diversas áreas da saúde, todo sistema em conjunto para melhor atender o usuário.” Médico (33). “É quando conseguimos um bom atendimento entre as equipes de apoio como CEO, NASF. Na pratica tentamos, muitas vezes ocorre o entrave por burocracias e má orientação dos profissionais.” Auxiliar de Enfermagem (32). E,

    É a comunicação entre as pessoas, grupos, reforçando a produção de saúde com qualidade. A transversalidade é um dos princípios da Política Nacional de Humanização. Na UBS, ocorre na prática o conceito de respeito com os pacientes, um atendimento humanizado, dando orientações e ouvindo o indivíduo e vendo ele como um todo para assim poder ajudá-lo. Técnico de enfermagem (34).

    Teixeira (2005) descreve que transversalidade está ligada ao vínculo, a criação conjunta. As construções em grupos proporcionam redes de conversa, afeto nas relações em todos os níveis de atenção. Neste sentido, a transversalidade visa ampliar a comunicação nos diferentes níveis de atenção, reafirmar a importância da indissociabilidade entre gestão e cuidado e fomentar a corresponsabilização de todos os envolvidos valorizando as suas singularidades e subjetividades (Archanjo, e Barros, 2009). Busca ainda efetivar o sentido coletivo, colocar igualitariamente a valorização dos mais diferentes saberes, e não deve ser entendida como processo vertical, mas como uma prática horizontal, favorecendo o diálogo e produção de saúde. (Pedroso, e Vieira, 2009)

 

    Apontamos a possibilidade de realização de ações no processo de trabalho, como rodas de conversa, encontros pontuais entre os profissionais com e sem domínio desta temática. Essas ações oportunizariam troca de saberes, por meio do compartilhamento de experiências profissionais e realização de estudos aprofundados, afim de ampliar as discussões sobre transversalidade no cuidado.

 

    Em uma análise mais sistêmica, é possível perceber que se faz necessário um programa de formação continuada a todos os profissionais de saúde, com o objetivo de ampliar o conhecimento e compreensão sobre o modo de fazer saúde. Humanizar não é uma técnica, deve fazer parte da rotina diária e muitas vezes é negligenciada pela excessiva carga de trabalho. Por exemplo, situações de muita tensão repetitivas e complexas, agregados a falta de empatia e a ausência de uma comunicação adequada, são indicadores que contribuem para a diminuição do vínculo entre profissionais e usuários, e entre profissionais e profissionais.

    

    Em um estudo que investiga a implementação da PNH em Unidades Básicas de Saúde de Porto Alegre, Lima, e D'Ascenzi (2017) averiguaram que a falta de treinamentos e capacitações sobre a política, juntamente com a carência de recursos, influenciou no entendimento e aplicação da política. Essa situação acarretou no desenvolvimento de diferentes ações de humanização conforme os entendimentos de diferentes atores locais.

 

    Observa-se a falta de compreensão sobre o protagonismo, corresponsabilidade e autonomia de todos os sujeitos envolvidos no processo do cuidado. Um SUS humanizado deve reconhecer cada indivíduo como cidadão que possui direitos e incentiva a sua atuação na produção de saúde. Pasche (2009) descreve sobre o método da tríplice inclusão por três modos: a inclusão de todos os atores envolvidos na produção coletiva de saúde, que provoca uma construção coletiva e discursos coletivos; os movimentos sociais que expressam os interesses dos diversos grupos e movimentos; e a inclusão do outro, que significa uma desestruturação do poder para que sejam construídas ações coletivas em comum.

 

Excesso e falta: dificuldade de realização de um trabalho humanizado 

 

    Questionados sobre quais fatores tem interlocução positiva e negativa com a prática de humanização, o conjunto das falas possibilitou refletir que a compreensão é ampla quando se trata de humanização e sua interlocução positiva com as práticas. Contextualizado a partir Benevides, e Passos (2005), que referenciam que antes da PNH já haviam propostas, atividades e projetos sobre humanização, porém a maneira vertical que era organizada apontava para dois problemas: a banalização do tema e a fragmentação das outras práticas de saúde. Observa-se então um contraponto entre os princípios da PNH com o modo coletivo de produção de saúde e de sujeitos implicados em sua produção.

 

    Parafraseando, a humanização é um processo amplo, demorado e complexo, que envolve características de cada profissional, mudanças comportamentais, e subjetivamente não está escrito em livros e nem prontos em legislações. Assim, cada equipe e cada profissional terá seu processo de humanizar, e neste sentido, a humanização vem sendo relacionada a ações como integralidade, satisfação do usuário, gestão participativa e o protagonismo dos envolvidos. (Bergan, Burszlyn, Santos, e Tura, 2009)

 

    Confortavelmente observa-se que alguns profissionais compreendem que é possível com a inserção das práticas de humanização no processo de trabalho e melhorar o atendimento e a relação com o usuário. A PNH aposta na construção de estratégias e alternativas para o enfrentamento dos mais diversos tipos de problemas relacionados à saúde. Uma maneira de as relações serem mais fraternas, onde os sujeitos tenham afeto e produzam saúde mutuamente, transformando a sociedade mais justa, igualitária e fraternal. (Pasche, Passos, e Hennington, 2011)

 

    Os profissionais identificam as consequências de não haver um processo humanizado e a necessidade de humanizar a relação e a valorização do trabalho, a redemocratização das relações do trabalho, com crescimento pessoal e profissional, e a inclusão dos trabalhadores nas atividades de gestão. É necessário possibilitar a discussão em ambientes coletivos sobre salário e as condições de trabalho que diretamente interferem na qualidade da produção de saúde. Para Goulart, e Chiari (2010) a realidade exige que o trabalhador valorize a efetividade e a sensibilidade como elementos fundamentais no processo de cuidado. Essa relação é possível principalmente por profissionais que consigam construir uma relação saudável e prazerosa com os usuários e com suas atividades profissionais.

 

    A capacitação e o desenvolvimento dos profissionais de saúde englobam conhecimentos e habilidades, porém, esse processo deve considerar as necessidades desses profissionais, seus princípios e valores acerca da humanização. Dessa forma, contribui-se na formação de profissionais comprometidos e preocupados com as necessidades da população (Goulart, e Chiari, 2010). Reis-Borges, Nascimento e Borges (2018) também apontam a necessidade e importância de capacitar os profissionais sobre a PNH, mas também indicam a educação permanente como uma importante ferramenta para gestores, trabalhadores e usuários refletirem sobre a proposta de humanização.

 

    Com relação a falta de tempo na efetivação de práticas humanizadas com os objetivos da PNH, há necessidade de reposicionamento e diálogo entre os gestores, trabalhadores e população. A fim de promover uma gestão participativa, que direcione as práticas de atenção compartilhada e resolutivas, viabilize a participação efetiva dos profissionais por meio de processos interativos, envolva planejamento e tomada de decisão para que qualifiquem suas potencialidades, e melhore a percepção sobre humanização e o todo que envolve. (Archanjo, e Barros, 2009)

 

    Conforme as falas: "Quando não há interação entre gestão, trabalhadores e usuários, quando a oferta não está de acordo com a demanda, muitas vezes frustrando a equipe em resolver o problema do usuário.” Enfermeira (22). "Pacientes precisam entender como funciona a UBS, porque chegam muitas vezes agitados e ofendendo os profissionais.” Técnico de Enfermagem (10). “Pouco tempo para atendimento.” Médico (11). “Acúmulo de funções, fica escasso o bom atendimento por falta de tempo.” Enfermeira (18). “A maior dificuldade é o tempo disponível para atender a população, também necessidade de mais profissionais.” Técnica de enfermagem (37).

 

    Há necessidade de um número adequado de profissionais para atender a demanda correspondente, na perspectiva de oportunizar condições para que cada profissional consiga realizar suas atividades em plenitude, com conhecimento, atenção e zelo para com o usuário (Navarro, e Pena, 2013; Souza et al., 2016). De acordo com as narrativas, os entrevistados justificam a falta de tempo, a alta demanda de usuários, o acúmulo de funções, o tempo restrito para cada profissional realizar o atendimento. Tais aspectos são fatores comuns quando se investiga o trabalho na atenção primária e que prejudicam a atuação em saúde. (Soratto et al., 2017; Milanez et al., 2018; Soratto et al., 2018; Biff et al., 2020)

 

    Compreende-se que a sobrecarga dos profissionais compromete o acolhimento e a escuta qualificada que deve estar presente em todo percurso do usuário, e também nas relações de trabalho entre gestão e trabalhadores. Para Souza, e Lisboa (2002), a insatisfação pessoal dos profissionais leva a desgastes físicos e emocionais, e isso é reflexo de más condições de trabalho, gerando dificuldades em realizar o trabalho diário e mais humanista.

 

    Como observado nas narrativas: "O número de usuários, que acaba afetando, pois não consegue dar a atenção adequada para cada paciente, ouvindo o usuário como deveria.” Técnica de enfermagem (34). “A maior dificuldade é o tempo disponível para atender a população. Também há necessidade de mais profissionais.” Técnico de Enfermagem (37). “Quantidade x Qualidade. Dificuldades da população em entender o que ESF, que promovemos a saúde, não temos espaço para certas urgências e emergências.” Enfermeira (31).

 

    A falta de profissionais para atender as respectivas demandas, pode ser considerado um problema crônico no SUS (Campos, Ferrer, Gama, Campos, Trapé, e Dantas, 2014). Por várias vezes profissionais interrompem algum trabalho, devido às múltiplas funções exercidas e o número de usuários a serem atendidos por profissional, que incidem na sobrecarga de trabalho.A necessidade de um espaço físico adequado para realizar um bom atendimento, principalmente em se tratando de humanização, tornar-se um obstáculo, pois muitas vezes não é possível acolher com privacidade (Souza, e Lisboa, 2002). É necessário, portanto, investir no aumento quantitativo de profissionais, salários compatíveis e adequados, além de ações educativas e integrativas que permitam melhorar as suas habilidades. (Amestoy, Schwartz, e Thofehrn, 2006)

 

Possibilidades humanizantes e a complexidade de atuação 

 

    A ambiência preconiza atender as necessidades físicas e ambientais das pessoas envolvidas, sejam usuários ou trabalhadores. Um espaço físico onde se possa trabalhar de modo seguro, funcional e resolutivo, que favoreça a acessibilidade e privacidade de cada indivíduo (Bestetti, 2014). Está relacionada a uma assistência resolutiva, humana e acolhedora, descrita sobre três eixos principais: o espaço que visa o conforto dos atores, que proporciona a produção de subjetividades e ferramenta facilitadora do processo de trabalho. (Ministério da Saúde, 2006)

 

    Os seguintes trechos exemplificam essa categoria: “Cursos, capacitações voltadas para humanização e acolhimento. A escuta e o ouvir é importante.” Enfermeira (27).“Uma boa ideia são os grupos terapêuticos onde há boas rodas de conversa e troca de ideias”. Técnico de enfermagem (36). “Mutirões para desafogar as filas de espera.” Auxiliar de enfermagem (32). “Mais espaço onde podemos conversar e orientar o paciente e escutar o que ele tem a nos dizer para poder ajudá-lo.” Técnico de Enfermagem (4). “Uma livre demanda nos exames e consultas.” Técnico de Enfermagem (32). E também:

    Primeiramente tem que dar mais autonomia de agenda aos profissionais de nível superior, pois são cobrados por produção continua diária, não considerando a circunstância que estamos, falamos de pessoas humanas, profissionais e pacientes, e não de maquinas humanas. Uma ESF tem esse papel de atender demanda a qualquer um. Prazer de terceiro, ou de um sistema teoricamente perfeito, mas que na prática não consegue oficializar seu conteúdo. Valorizar mais os profissionais e contratar mais além do básico médico e enfermeira. Médico (16).

    Com base nas falas dos participantes evidencia-se a necessidade de melhorar o atendimento e as condições de trabalho, a comunicação dentro da unidade de saúde e a resolução dos problemas. Fazem referência a necessidade de capacitações sobre a PNH, debruçada sobre a jovialidade da política e o tempo de atuação dos profissionais na Unidade de Saúde, precisando incorporar capacitação sistemática aos profissionais do serviço de saúde.

 

    Apontam o diálogo entre trabalhadores, gestores e usuários como solução dos problemas, em que a troca de conhecimento e a valorização da singularidade e subjetividades contribui para a construção coletiva de saúde. A humanização exige sensibilidade e doação, perpassam situações psicológicas, tornam o usuário participante do processo saúde-doença, como lhe é de direito. (Ministério da Saúde, 2008)

 

    Com base nos dados encontrados e reafirmando os princípios da PNH, a humanização implica nas atitudes dos gestores, usuários, trabalhadores e da comunidade em geral; na consolidação de valores como o protagonismo e autonomia dos sujeitos, de solidariedade nos vínculos estabelecidos. Desta maneira, é necessário superar o isolamento dos serviços nos níveis de atenção, que gera a verticalização do cuidado, dificulta a comunicação entre as equipes e apresenta má qualidade na assistência. (Ministério da Saúde, 2008)

 

    Em um estudo com gestores, Camacho (2016) identificou a dissonância entre os discursos e as práticas que buscam efetivar a PNH, evidenciando os obstáculos enfrentados. A PNH busca no processo de trabalho a valorização dos serviços de saúde que depende de todos os envolvidos e não simplesmente de normas, burocracias e protocolos. Muito mais do que empenho dos sujeitos, é necessário ajustar a organização do trabalho e da gestão, a maneira verticalizada dos discursos, o que torna difícil a comunicação e a efetivação das práticas de cuidado. (Nora, e Junges, 2013)

 

    Neste contexto de qualificação do SUS, a Política Nacional de Humanização não deve ser entendida como “apenas” mais um dos diversos programas existentes, mas sim como uma política transversal para toda rede (Benevides, e Passos, 2005). Estabelecendo uma dialética entre teoria e prática, “práxis”, alinhados aos fatores com interlocução positiva ou negativa à PNH, pautados nos termos que envolvem a humanização enquanto prática das políticas públicas de saúde e estratégia para qualificar as práticas.

 

Conclusões 

 

    Aspectos como a falta de tempo, ambiente inadequado, falta de equipamentos e alta demanda são fatores que implicam na falta de uma assistência humanizada e efetividade nos serviços e atendimento em um município do sul de Santa Catarina. Esses dados indicam a necessidade de um olhar dos gestores para o serviço e suas demandas. Se faz necessário reavaliar as práticas do cotidiano para a construção e efetivação das políticas públicas de saúde, com enfrentamento das dificuldades, a fim de oportunizar a resolução dos problemas e atender a demanda da população de maneira eficaz e humanizada.

 

    Os discursos dos profissionais evidenciaram uma inconsistência nos pressupostos que compõem esta prática, fundamentais para a qualificação dos serviços de saúde e concretização da Política. Para efetivar a PNH no município pesquisado, se faz necessário implantar em todas as esferas de saúde alguns pressupostos que a própria Política aponta, como grupos de trabalho, formação continuada em saúde, sensibilização de gestores sobre os investimentos em equipamentos, melhora do espaço físico e contratação de novos profissionais para atender a demanda, com impacto direto no usuário do serviço. Pressupostos que neste município, os profissionais apontam para a interface negativa entre suas práticas e aportes teóricos relacionados a PNH.

 

Referências 

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 275, Abr. (2021)