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ISSN 1514-3465

 

Gravidez, exercícios físicos e esporte de alto rendimento: a experiência do voleibol

Pregnancy, Physical Exercises and High Performance Sports: the Volleyball Experience

Embarazo, ejercicios físicos y deporte de alto rendimiento: la experiencia del voleibol

 

Marcelo Ribeiro Tavares*

marcelostavares@globo.com

Gabriel Frazão Silva Pedrosa**

gabrielpsf@yahoo.com.br

Erik Giuseppe Barbosa Pereira***

egiuseppe@eefd.ufrj.br

 

*Jornalista e Educador Físico

Doutor em Urbanismo (PROURB/UFRJ)

com estágio na Universidade de Lisboa, Portugal

Membro do Grupo de Pesquisa GECOS/CNPq (UFRJ)

**Pedagogo, Especialista em Educação e em Psicomotricidade

Mestrando em Educação Física pela EEFD/UFRJ

Membro do Grupo de Pesquisa GECOS/CNPq (UFRJ)

***Graduação em Educação Física (UFRJ)

Mestrado em Ciência da Motricidade Humana (UCB)

Doutor em Ciências do Exercício e do Esporte (UERJ)

Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Líder do Grupo de Pesquisa GECOS/CNPq (UFRJ)

(Brasil)

 

Recepção: 15/05/2020 - Aceitação: 25/03/2021

1ª Revisão: 01/12/2020 - 2ª Revisão: 20/03/2021

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Citação sugerida: Tavares, M.R., Pedrosa, G.F.S., e Pereira, E.G.B. (2021). Gravidez, exercícios físicos e esporte de alto rendimento: a experiência do voleibol. Lecturas: Educación Física y Deportes, 26(280), 23-35. https://doi.org/10.46642/efd.v26i280.2253

 

Resumo

    Esporte de alto rendimento pressupõe um intenso e contínuo preparo físico dos atletas. No caso das mulheres atletas de alto rendimento, a gravidez é um dado a ser levado em conta nas suas carreiras. O objetivo deste artigo é analisar a prática de esportes e exercícios físicos por atletas grávidas, destacando-se que esse tema surgiu nos anos 1980, com atletas de vôlei, além de algumas jogadoras da modalidade que mais recentemente ficaram grávidas e continuaram praticando o esporte. A metodologia utilizada inclui a revisão sistemática de literatura e a entrevista com duas atletas dos anos 1980. O roteiro da entrevista foi orientado por um questionário semiestruturado aplicado às jogadoras e seus relatos foram comparados a artigos científicos que destacam as indicações e contraindicações para a prática esportiva e exercício físico por mulheres grávidas. Verificou-se que a prática de exercícios durante a gestação é saudável, desde que com a orientação profissional. No caso da prática de esportes deve-se levar em conta, além do acompanhamento médico, o bom senso da gestante. Conclui-se que esse tema ainda é envolto por muitos tabus e que não é uma questão de fácil consenso, embora seja um assunto debatido há mais de trinta anos no esporte.

    Unitermos: Gênero. Gravidez. Voleibol.

 

Abstract

    High performance sports presupposes an intense and continuous physical preparation of athletes. In the case of high-performance female athletes, pregnancy is a fact to be taken into account in their careers. The objective of this article is to analyze the practice of sports and physical activities by pregnant athletes, highlighting that this theme arose in the 1980s, with volleyball athletes, in addition to some players of the modality who more recently became pregnant and continued practicing the sport. The methodology used includes a systematic literature review and an interview with two athletes from the 1980s. The interview script was guided by a semi-structured questionnaire applied to the players and their reports were compared to scientific articles that highlight the indications and contraindications of practice of sports and physical activities by pregnant women. It was found that the practice of exercises during pregnancy is healthy, as long as with professional guidance. In the case of the practice of sports, in addition to medical monitoring, the good sense of the pregnant woman should be taken into account. In conclusion, this topic is still surrounded by many taboos and it is not an easy consensus issue, although it has been a topic debated for more than thirty years in the sport.

    Keywords: Gender. Pregnancy. Volleyball.

 

Resumen

    Los deportes de alto rendimiento presuponen una preparación física intensa y continua de las y los atletas. En el caso de las atletas femeninas de alto rendimiento, el embarazo es un hecho a tener en cuenta en sus carreras. El objetivo de este artículo es analizar la práctica de deportes y ejercicios físicos por deportistas embarazadas, destacando que este tema surgió en la década de 1980, con jugadoras de voleibol, además de algunas participantes de la modalidad que más recientemente quedaron embarazadas y continuaron practicando el deporte. La metodología utilizada incluye una revisión sistemática de la literatura y una entrevista con dos jugadoras de la década de 1980. El guión de la entrevista fue configurado por medio de cuestionario semiestructurado aplicado a las jugadoras y sus informes se compararon con artículos científicos que destacan las indicaciones y contraindicaciones para el deporte y el ejercicio físico de las mujeres embarazadas. Se descubrió que la práctica de ejercicios durante el embarazo es saludable, siempre que cuente con orientación profesional. En el caso de la práctica deportiva, además del seguimiento médico, se debe tener en cuenta el sentido común de la embarazada. Se concluye que este tema todavía está rodeado de muchos tabúes y que no es un tema de consenso fácil, aunque ha sido un tema debatido durante más de treinta años en el deporte.

    Palabras clave: Género. Embarazo. Voleibol.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 280, Sep. (2021)


 

Introdução 

 

    Quase sempre ao se pensar na mulher grávida o senso comum aponta para um período de restrições de atividades, sobretudo, esportivas. Certamente cada caso é um caso, mas cuidados essenciais devem ser priorizados, como evitar fumar e ingerir álcool para evitar problemas. Como a gravidez constitui um período do ciclo de vida em que ocorrem “grandes mudanças que ultrapassam largamente a componente física e abrangem a dimensão psicológica, social e cultural da mulher” (Tendais, Figueiredo, e Mota, 2007, p. 489), os profissionais que atuam em torno da gestante devem se preocupar plenamente com o seu bem-estar.

 

    No caso de a grávida ser uma mulher com histórico esportivo ou mesmo atleta profissional esse tema ganha contornos específicos. Na literatura antropológica verifica-se que os indicativos são sempre mais restritivos para o comportamento da mulher nesse período. Luz, Berni, e Selli (2007, p. 43) esclarecem que “a elaboração mítica tem por objetivo justificar, racionalizar e legitimar realidades socioculturais” e no caso da maternidade, “se prende às diferenças do papel social entre os dois sexos” para definir o que é apropriado para homens ou para mulheres. Essa é uma questão bastante discutida e que justifica o debate sobre a condição da mulher grávida e da atleta grávida em deliberar sobre a continuidade de suas práticas esportivas durante esse período.

 

    Em coletânea de artigos de autores que pesquisam os temas do corpo, do gênero e da sexualidade, Louro, Neckel, e Goellner (2003) apresentam um panorama denso que cabe nota. O artigo de Meyer (2003) destaca que as relações de gênero precisam ser desnaturalizadas para que seja ampliada a compreensão de feminilidades e masculinidades de forma mais complexa. Essa discussão se coaduna com a ideia de gênero de Souza, e Altman (1999, p. 56), que acreditam que o termo “é uma categoria relacional porque leva em conta o outro sexo, em presença ou ausência” considerando fundamental as necessidades de cada um.

 

    Guacira Louro (2003), por sua vez, no terceiro capítulo do referido livro aponta para a naturalização do “ser homem”, que acaba sendo uma norma social assimétrica, na medida em que existe “o dia da mulher”. Essa falta de sincronicidade acentua as diferenças biológicas existentes entre os sexos e nas quais o gênero está envolto, o que contribui para denotar “o caráter implicitamente relacional do feminino e do masculino”. (Souza, e Altmann, 1999, p. 56)

 

    No que concerne à historicidade das práticas sociais de cuidado com o corpo, Goellner (1999) aponta, por exemplo, as visões diferentes para os danos causados à pele por conta dos banhos nos séculos XVI e XVII e a sucessiva importância do asseio para a conservação do corpo, a partir do século XVIII. Neste século, a ginástica contribuía para dar forma ao caráter, ao físico e aos sentimentos (Louro, Neckel, e Goellner, 2003), preconizando um avanço gradativo no cuidado com a saúde a partir do corpo.

 

    Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de transformações que culminou com o incremento da vida urbana. No início do século XX, as mulheres compunham um contingente elevado do proletariado brasileiro, o que era visto também como uma mão de obra abundante e barata. Se no âmbito social a situação das mulheres era crítica, no cenário esportivo era ainda mais delicada: nos Jogos Olímpicos da Antiguidade grega, as mulheres sequer podiam assistir as competições; nos primeiros Jogos Olímpicos da era moderna elas tiveram, apenas, a permissão de coroar os vencedores. A participação feminina nos Jogos Olímpicos aconteceu somente nos Jogos de Paris, em 1900. (Tavares, e Mourão, 2016a)

 

    Em 1965, durante a ditadura militar brasileira, houve a proibição para que as mulheres praticassem algumas modalidades desportivas: elas só poderiam praticar os esportes consentidos, aqueles que o Estado julgava conveniente, que como descreve Goellner (1999, p. 3) era “uma intervenção política de controle e cerceamento, pois sobre ele (o corpo) depositam-se saberes e poderes disciplinares orientados pela lógica do trabalho e da produção”. Segundo a autora, essa intervenção visava preparar os corpos das mulheres para a maternidade com a intenção de garantir as futuras gerações do Brasil.

 

    Logo, a partir da evidência de que historicamente a mulher luta há muito tempo pelo reconhecimento de sua inserção em diferentes campos da sociedade, o objetivo principal deste artigo é destacar a experiência de atletas de voleibol que jogaram grávidas competindo em alto nível, com destaque para duas atletas atuantes nos anos 1980 – Isabel Salgado e Vera Mossa, contribuindo para acentuar o papel pioneiro dessas atletas no enfrentamento dessa questão. São objetivos secundários destacar a superação da ideia de que a gravidez e a prática de esportes de alto rendimento e de exercícios físicos não são compatíveis e também destacar que ainda há entraves sobre a relação entre gravidez de atletas de alto rendimento e questões trabalhistas.

 

    Balizados pela literatura e pelas práticas pioneiras e bem-sucedidas de jogadoras de vôlei ressalta-se nesse artigo, por fim, a importância do acompanhamento médico e de profissionais da área de saúde para garantirem à mulher toda a segurança durante esse rico período de suas vidas.

 

Métodos 

 

    A abordagem qualitativa foi a adotada nesse estudo, ou seja, “a tentativa de uma compreensão detalhada dos significados e características situacionais apresentadas pelos entrevistados” (Richardson, 2008, p. 90), tendo se apoiado ainda nos recursos da história oral para enriquecer os fatos levantados e articular com a pesquisa bibliográfica. Melo et al. (2013, p. 161) atentam que as fontes orais são importantes, pois “apresentam memórias que devem ser trabalhadas pelos estudiosos a fim de produzirem história”, que é algo que se pretende também. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), sob o parecer nº 875.811. A pesquisa original é produto da dissertação de mestrado intitulada “Mulheres em manchete: a potência da geração de voleibol dos anos 1980” (Tavares, 2015); e baseiam-se também em publicações derivadas dessa dissertação (Tavares, e Mourão, 2016a; 2016b). Assim, foi produzido à época um roteiro semi-estruturado com vinte e seis perguntas organizadas em três seções: (1) inserção, (2) permanência e (3) aposentadoria. Essas perguntas trouxeram “a presença do passado no presente imediato” das onze ex-atletas que entrevistamos que jogaram pela seleção nos anos 1980, como forma de garantir aos leitores uma aproximação maior com o contexto estudado e apresentado (Meihy, 2005). Dessa pesquisa, duas atletas são destacadas: Isabel Salgado e Vera Mossa, por terem jogado grávidas.

 

    Como forma de atualizar essa discussão foi feita uma pesquisa, sobretudo, através de reportagens veiculadas na imprensa sobre outras atletas de voleibol que jogaram grávidas, nas quais questões relacionadas ao corpo e também trabalhistas merecem destaque, como no caso das atletas Tandara Caixeta, Camila Brait e Karine Guerra.

 

Resultados 

 

Quebrando tabus 

 

    O período gestacional demanda novas formas de equilíbrio diante das mudanças inerentes a esta fase. Nessa seção é dada ênfase às ideias que permeiam mais diretamente a indicação de exercícios e esportes para mulheres grávidas, com destaque para experiências de atletas de voleibol que passaram por esse grande teste. Como ressalta Araújo et al. (2012, p. 553) sobre as transformações durante a gravidez, “essas mudanças estão relacionadas aos ritmos metabólicos e hormonais e ao processo de integração de uma nova imagem corporal. Essas alterações têm repercussões tanto na dimensão física, quanto na emocional”. Imaginar o impacto de uma atleta jogar grávida nos anos 1980 é pensar no impacto que ela causou para subverter a lógica histórica de proibições para as mulheres em geral. Além disso, “historicamente, a indicação para a prática de exercícios físicos para gestantes”, segundo estudo realizado pelos autores “variava de acordo com os contextos socioculturais vigentes, existindo períodos em que era contraindicada”. (Azevedo et al., 2011, p. 55)

 

    Nos Jogos Olímpicos de Moscou, 1980, a seleção brasileira de voleibol feminino participou pela primeira vez de uma Olimpíada. Nesta ocasião, a atleta Vera Mossa, então com 15 anos de idade, descobriu a gravidez quando chegou em território soviético e jogou grávida, sem intercorrências naquela competição, felizmente: “Era para eu ter ficado menstruada lá e não fiquei, mas eu achava que devia ser por causa da viagem (...), mas, eu estava grávida mesmo e quando eu voltei foi confirmado (Tavares, 2015, p. 233).

 

    Dois anos antes, em 1978, a ex-atleta Isabel Salgado teve a sua primeira filha, Pilar. Naquela ocasião, porém, Isabel optou por não jogar: “Eu fiquei grávida muito menina, com 17 anos (...). Eu fazia tudo, eu corria, eu jogava frescobol, mas eu não tinha vontade de jogar vôlei e parei e voltei só quando fui convocada” (Tavares, 2015, p. 274). Esta convocação, a qual a ex-atleta se refere foi a preparação para os Jogos Panamericanos de Porto Rico, em 1979.

 

    Neste relato podemos identificar que a atleta, na sua primeira gravidez, optou por não jogar voleibol, mas, ainda assim, praticou outras atividades esportivas. De acordo com Santos et al. (2007), em geral, a mulher pode retomar a prática de exercícios após 30 dias do parto normal e 45 dias após a cesariana. No caso de Isabel Salgado, seis meses após o nascimento da primeira filha, a atleta foi titular absoluta da seleção brasileira que ganhou a medalha de bronze dos Jogos Panamericanos de San Juan (Valporto, 2007). No final de 1982, Isabel disputava o campeonato brasileiro pelo Flamengo quando descobriu a segunda gravidez, no auge de sua forma, aos 22 anos.

 

    Em 1983, então, Isabel Salgado, ao contrário do que decidiu fazer na sua primeira gravidez, jogou até o sexto mês de gestação e sua filha nasceu de parto normal. A ex-atleta, 5 anos após o nascimento da primeira filha, optou por não interromper a prática esportiva e continuou jogando, segundo ela porque se sentia bem e estava muito bem orientada pelo seu ginecologista, conforme explicou:

    “Eu tive sorte de ter quatro partos normais e isso me ajudou muito. Nunca ter engordado muito durante as gestações, né? Mas, na segunda não. Na segunda, eu fiquei grávida e eu vinha jogando e aí eu resolvi continuar jogando. Eu joguei bastante. Outro dia eu até vi uma imagem minha jogando. Eu falei: ‘Nossa, eu não via há um tempão’. A minha barriga estava grande (risos). Mas, eu me sentia muito bem na quadra. Eu não me sentia nem um pouco desconfortável. Eu também dei a sorte que eu tinha um médico muito bom, eu tinha um ginecologista que era um cara muito fera. Então, ele me deixava muito segura com relação a várias questões. E aí eu fui jogando, eu me sentia bem” (Tavares, 2015, p. 275).

    A atleta Isabel foi de encontro ao que estava compreendido e estabelecido para a maternidade até aquele momento, fosse por imposição social ou mesmo pelo instinto natural de preservação, conforme explicam as autoras:

    “Desde a infância, homens e mulheres são condicionados, por diversas experiências sociais, a assumirem padrões de comportamento de maneira tão sutil que facilmente integram o cotidiano como algo “da natureza” do sexo feminino ou masculino. Portanto, tem-se uma categoria biológica determinante, e outra importante que é a do gênero, relativa a um conceito sociológico que se refere à construção social do sexo - o que é próprio para o feminino e o que é próprio para o masculino”. (Luz, Berni, e Selli, 2007, p. 45)

    Essa atitude pioneira da jogadora Isabel chamou a atenção do Brasil para o que estava estabelecido até então: que uma mulher grávida não deveria se expor a riscos e precisaria manter uma conduta de proteção ao feto e a si mesma. Trata-se do mito, que faz parte da interpretação que cada sociedade tem sobre a sua realidade. Segundo Luz, Berni e Selli (2007, p. 43), “a elaboração mítica tem por objetivo justificar, racionalizar e legitimar realidades socioculturais” e no caso da maternidade, “se prende às diferenças do papel social entre os dois sexos – o que é apropriado para homens ou para mulheres”.

 

    Tendo em vista que, segundo Azevedo et al. (2011, p. 57) “durante a gestação, o exercício físico tem o objetivo da manutenção da aptidão física e saúde, diminuição dos sintomas gravídicos e tensão do parto, bem como uma recuperação pós-parto mais rápida”, a decisão da ex-atleta Isabel Salgado, portanto, que optou por continuar jogando na segunda gravidez corrobora com a indicação dos autores, sobretudo, porque além de ter se sentido segura por conta do acompanhamento médico que vinha recebendo, sua decisão também se baseou no seu instinto materno aguçado, conforme relatou:

    “Eu me sentia segura, sabe? Eu acho que a gravidez tem um lado muito curioso, que você fica com a sua sensibilidade muito apurada. Então, tinham coisas assim que se preconiza que não tem problema, sabe? O protocolo diz ‘pode fazer’, grávida pode fazer, mas eu não me sentia bem fazendo. Então, eu não fazia. Então, eu acho que a gravidez tem um lado assim que você também tem uma sabedoria instintiva, que você se defende, sabe? E nesse departamento, eu acho que a vida foi generosa comigo (risos)” (Tavares, 2015, p. 275)

    Este polêmico episódio envolvendo as decisões da ex-atleta Isabel Salgado ganhou relevância por terem acontecido mais de 30 anos atrás, fato que elevou a ex-jogadora ao patamar de precursora deste tema. Recentemente, porém, as jogadoras Karine Guerra e Tandara Caixeta, também atletas de voleibol, fizeram o assunto da gravidez associada à prática esportiva retornar à mídia: no início do ano de 2015 as duas jogadoras do Dentil/Praia Clube anunciaram simultaneamente que estavam grávidas, em pleno decorrer do maior campeonato nacional, a Superliga. (Melhor do vôlei, 2015)

 

    O profissionalismo das atletas, que pretendiam jogar até quando fosse possível, porém, não correspondeu às ações tomadas pelo clube, que rescindiu seus contratos e as impediu de jogar até o final da competição: Tandara e Karine foram demitidas quando estavam com quatro meses de gestação (Ottoni, 2016). Apesar da primeira experiência não ter sido tão bem sucedida, a levantadora Karine Guerra voltou a engravidar, após 3 anos, em 2018: dessa vez, porém, jogou até o sexto mês de gestação, pela equipe do Minas Tênis Clube. (Martini, 2018)

 

    Já a levantadora titular da seleção brasileira e também campeã olímpica, em Londres 2012, Dani Lins, teve seu contrato interrompido com o clube que jogava, simplesmente por ter anunciado publicamente que pretendia engravidar (Mourão, e Trindade, 2017). Caso semelhante, mas com desfecho diferente, Camila Brait, líbero e também jogadora da seleção brasileira, mesmo tendo terminado a temporada grávida pelo mesmo clube de Dani Lins, não teve seu contrato renovado no primeiro momento. Contudo, após repercussão na imprensa e por Camila Brait já estar com 3 meses de gravidez, o clube voltou atrás e concedeu os direitos legais à jogadora. (Mourão, e Trindade, 2017)

 

    Algumas atletas, porém, optaram por desvincular a prática esportiva da gravidez: Jaqueline Carvalho, após sofrer um aborto espontâneo em 2011 deu à luz seu primeiro filho no final de 2013 (Torcedores, 2016). Sheylla Castro parou de jogar para ser mãe de gêmeas, através de fertilização “in vitro”, também no final de 2017 (Oliveira, 2018) e a líbero Fabi Alvim, anunciou em janeiro de 2019, a gravidez de sua companheira visando à realização do sonho de formar uma família (Carneiro, 2019), direito garantido por lei, conforme esclarece Dias (2008, p. 51): “Popularizaram-se os métodos reprodutivos de fecundação assistida, cessão do útero, comercialização de óvulos ou espermatozóides, locação de útero, e, com isso, todos viram a possibilidade de realizar o sonho de ter filhos”, ampliando a discussão sobre a gravidez no esporte e no voleibol.

 

    Verifica-se, portanto, que o tema da gravidez relacionado ao voleibol remonta à década de 1980 e vem ganhando contornos cada vez mais específicos com o passar dos anos, fato que chama a atenção positivamente, na medida em que as modalidades esportivas vêm se desenvolvendo na mesma proporção que as demandas sociais, os hábitos e as evidências científicas.

 

Discussão 

 

Consensos sobre a prática de exercícios na gravidez 

 

    Após a apresentação de resultados da nossa pesquisa sobre a experiência de atletas de vôlei que jogaram grávidas, cabe discutir mais tecnicamente sobre as implicações da prática de atividades físicas e desportivas, de um modo geral, para mulheres, pois a ideia de interdições para esse período ainda parece ser bastante comum. No cotidiano humano há uma série de atividades triviais que nos colocam em movimento. Entretanto, o exercício é um tipo de atividade física mais estruturada, que envolve intensidade, frequência, duração estipuladas com o objetivo de melhorar a aptidão física e a saúde. Se a gestante caminhar, com um determinado número de passadas por minuto, para percorrer uma referida distância em um determinado intervalo de tempo, ela estará fazendo exercício e se a gestante quiser percorrer aquela distância ao mercado, por exemplo, mais rapidamente do que o marido, ela estará competindo e, assim, praticando esporte (Matsudo, e Matsudo, 2000). Para as gestantes, os exercícios fortalecem e tonificam os músculos que serão usados durante o parto, além de elevar a circulação sanguínea existente entre a grávida e o feto, como já discutido em outro trabalho. (Tavares, 2016)

 

    Chistófalo, Martins, e Tumelero (2003) apontam que a prática de exercícios na gestação também melhora a circulação sanguínea, amplia o equilíbrio muscular, reduz o inchaço, a incidência de desconfortos intestinais e câimbras nas pernas, além de fortalecer a musculatura abdominal e facilitar a recuperação pós-parto. Gomes, e Costa (2013) afirmam que a prática de exercícios resistidos com pesos de intensidade leve a moderada pode promover melhora na resistência e flexibilidade muscular. Em suma, os autores reiteram que esses exercícios fazem com que a mulher suporte melhor o aumento de peso fazendo com que as alterações posturais decorrentes desse período sejam atenuadas.

 

    Por outro lado, conforme destaca Castro et al. (2009), os exercícios durante a gravidez podem ter riscos associados quando feitos acima do limite materno, em condições desfavoráveis e sem acompanhamento de um profissional capacitado. De acordo com Nascimento et al. (2014) e com a American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) podemos sintetizar algumas observações sobre a prática de exercícios para gestantes. A primeira diferença é que existem contraindicações absolutas e relativas que precisam ser consideradas antes de iniciar uma rotina de exercícios.

 

    As contraindicações absolutas são as doenças cardíacas, as doenças pulmonares restritivas, a incompetência ístimo-cervical, a gestação múltipla, sangramentos, placenta prévia, trabalho de parto prematuro, ruptura prematura de membrana, além da pré-eclâmpsia ou alterações quaisquer na pressão arterial. As relativas são a anemia, a arritmia cardíaca, a bronquite, o diabetes não controlado, a hipertensão arterial crônica, a epilepsia ou doença da tireóide, a obesidade extrema, a desnutrição ou a desordem alimentar, a restrição de crescimento fetal. Além também daquelas mulheres que fumam em excesso ou que tenham estilo de vida sedentário.

 

    Portanto, guardadas as observações de ordem médica específicas, conclui-se que o exercício ideal é aquele em que a gestante se sinta bem e confortável em uma atividade física estruturada, planejada e repetitiva. Por isso, a escolha da modalidade do exercício ou da prática esportiva deve partir da gestante, das suas especificidades nesse período, e não deve ser esquecido de informar a quem a acompanha clinicamente qualquer mudança ou sintoma extraordinário. (Azevedo et al., 2011)

 

    Na ausência de contraindicações clínicas ou obstétricas para a prática de exercício, porém, todas as gestantes devem ser estimuladas a manter ou adotar um estilo de vida ativo durante o período gestacional. Dessa forma, a atividade física praticada com intensidade leve ou moderada, feita com acompanhamento médico e de outros profissionais da área de saúde, é considerada prática segura tanto para a mãe quanto para o feto.

 

Conclusões 

 

    Certamente que o tema da gravidez avançou muito ao longo das últimas décadas. Entretanto, toda e qualquer gestante deve ter garantido seu direito ao acompanhamento da gravidez. No caso da prática de atividade física, a avaliação médica é essencial para dimensionar o tipo e a intensidade dos exercícios, de preferência associada à presença de um profissional de educação física para orientar e garantir a segurança da gestante.

 

    A geração de voleibol feminino do Brasil dos anos 1980 foi pioneira em vários fatos importantes que permearam a relação do esporte com a sociedade e a questão da maternidade das atletas foi um dado relevante àquela altura. Recentemente, em 2014, atletas de vôlei grávidas tiveram problemas no cumprimento de seus contratos trabalhistas, e trouxeram a questão de novo à discussão por outro viés. Foram demitidas pelo clube que jogavam em decisão controversa, uma vez que se trata de um direito adquirido, garantido pela constituição federal.

 

    Mais de trinta anos atrás, porém, quando a ex-jogadora de vôlei Isabel Salgado jogou até o sexto mês de gestação, em 1982, pelo Flamengo, esses direitos ainda não estavam garantidos e os clubes-empresa estavam iniciando sua inserção no cenário esportivo brasileiro. Naquela época, o cenário ainda era amador e a decisão da atleta por jogar grávida coube mais a si mesma do que por qualquer outro motivo. Apesar de segura e assistida por um médico de sua confiança, a decisão de Isabel causou forte impacto à época e a ex-jogadora se tornou um símbolo da mulher grávida que pratica esporte.

 

    Mesmo sendo um tema recorrente e atual, quando a gravidez está associada à prática esportiva ainda é pouco discutido e, portanto, provoca algumas dúvidas, como a dos direitos das atletas profissionais que ficam grávidas concomitantemente ao exercício de suas funções até ao esclarecimento sobre a prática de esportes e exercícios físicos durante a gravidez.

 

    No caso das jogadoras de voleibol percebeu-se que a atitude pioneira de algumas atletas deu visibilidade à questão. Verificou-se que este tema é recorrente desde os anos 1980, com destaque para Vera Mossa, que atuou grávida nos Jogos de Moscou, aos 15 anos e Isabel Salgado, que atuou grávida até o sexto mês de gestação, em 1982. Recentemente, outras atletas de voleibol também engravidaram: algumas decidiram parar de jogar durante o período gestacional, outras jogaram até o limite que julgaram ser seguro.

 

    Em suma, podemos concluir que a atividade física assistida pode ser incorporada à rotina da gestante e contribuir para este rico período de florescimento da mulher, e que essa discussão já remonta há pelo menos, mais de trinta anos, quando não havia na literatura indicações mais precisas como se dispõe agora.

 

Referências 

 

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Araújo, N.M., Salim, N.R., Ualda, D.M.R., e Silva, L.C.F.P. (2012). Corpo e sexualidade na gravidez. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 46(3), 552-558. https://doi.org/10.1590/S0080-62342012000300004

 

Azevedo, R.A., Mota, M.R., Silva, A.O., e Dantas, R.A.E. (2011). Exercício físico durante a gestação: uma prática saudável e necessária. Universitas: Ciências da Saúde, 9(2), 57-70. http://dx.doi.org/10.5102/ucs.v9i2.1410

 

Carneiro, L. (2019). Bicampeã olímpica Fabi anuncia que sua mulher está grávida. https://esporte.uol.com.br/volei/ultimas-noticias/2019/01/23/bicampea-olimpica-fabi-anuncia-gravidez-de-sua-mulher-sonho-realizado.htm

 

Castro, D.M.S., Ribeiro, A.M., Cordeiro, Larissa de L., Cordeiro, Lorena de L., Alves, A.T. (2009). Exercício físico e gravidez: prescrição, benefícios e contraindicações. Universitas: Ciências da Saúde, 7(1), 91-101. http://dx.doi.org/10.5102/ucs.v7i1.737

 

Chistófalo, C., Martins, A., e Tumelero, S. (2003). A prática de exercício físico durante o período de gestação. Lecturas: Educación Física y Deportes, 59. https://www.efdeportes.com/efd59/gestac.htm

 

Dias, M.B. (2008). Família homoafetiva. Bagoas - Estudos gays, gêneros e sexualidades, 2(03), 39-63. https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2282

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 280, Sep. (2021)