Atividades náuticas de lazer e recreação. Percepção das capacidades desenvolvidas e fatores importantes na formação

Nautical activities of leisure and recreation. Perception of developed capacities and important factors for formation

Actividades náuticas de tiempo libre y recreación. Percepción de capacidades desarrolladas y factores importantes en la formación

 

Ana Catarina Rocha Mendes Fernando* **

catarina.fernando@staff.uma.pt

António Manuel Neves Vicente** ***

antonionevesvicente@gmail.com

João Filipe Pereira Nunes Prudente* **

prudente@uma.pt

Joana Catarina Marques Simões*

jokasimoes@hotmail.com

Helder Manuel Arsénio Lopes* **

hlopes@uma.pt

 

*Universidade da Madeira

**Centro de Investigação em Desporto, Saúde e Desenvolvimento Humano, CIDESD

***Universidade da Beira Interior

(Portugal)

 

Recepção: 25/02/2018 - Aceitação: 17/10/2018

1ª Revisão: 22/08/2018 - 2ª Revisão: 14/10/2018

 

Resumo

    O objetivo deste estudo foi identificar qual a percepção dos indivíduos das capacidades desenvolvidas e dos fatores importantes para a formação nas atividades náuticas de lazer e recreação. Com base em estudos anteriores elaboramos um questionário estruturado em dois grupos de perguntas, um primeiro grupo associado aos fatores importantes para a formação nas atividades náuticas e um segundo grupo associado às capacidades desenvolvidas pelas atividades, que foi aplicado a uma turma de alunos do 3º ano da licenciatura em Educação Física e Desporto da Universidade da Madeira, no âmbito da Unidade Curricular de Turismo, Lazer e Recreação após a realização de três atividades náuticas distintas (canoagem, mergulho, snorkeling). Identificamos que os fatores mais valorizados por esta amostra foram o divertimento e os desafios, apesar da sua importância variar de acordo com as atividades realizadas, já nas capacidades são destacadas a capacidade de socialização, a capacidade técnica e aquisição de skills, autoconfiança, etc., não existindo, contudo, nenhuma que seja transversal às três atividades. Dos resultados obtidos julgamos poder concluir que este instrumento (questionário) em conjunto com o Modelo das Atividades Desportivas de Adaptação ao Meio pode permitir relacionar a forma como as atividades foram realizadas e os comportamentos solicitados aos indivíduos, assim como levantar um conjunto de hipóteses que permitem ajustar a quantidade, intensidade e frequência dos estímulos na operacionalização das atividades de modo a obter os efeitos formativos pretendidos.

    Unitermos: Atividades náuticas. Capacidades desenvolvidas. Processo pedagógico.

 

Abstract

    The objective of this study was to identify the individuals' perception of developed abilities and important factors for training in nautical leisure and recreation activities. Based on previous studies, we developed a questionnaire structured in two groups of questions, a first group associated with the important factors for training in nautical activities and a second group associated with the abilities developed by the activities, which was applied to a group of 3rd year students of the degree in Physical Education and Sport of the University of Madeira, within the scope of the Curricular Unit of Tourism, Leisure and Recreation after realizing three distinct nautical activities (canoeing, diving, snorkeling). We identified that the factors most valued by this sample were the fun and the challenges, although their importance varies according to the activities carried out, already in the capacities are highlighted the capacity of socialization, the technical capacity and acquisition of skills, self-confidence, etc., but there are none that are transversal to the three activities. From the results obtained, we believe that we can conclude that this instrument (questionnaire) in conjunction with the Model of the Sport Activities of Adaptation to the Environment can allow to relate the way the activities were performed and the behaviors requested to the individuals, as well as to establish a set of hypotheses that allow adjust the quantity, intensity and frequency in the activities in order to achieve the intended training effects.

    Keywords: Nautical activities. Developed capacities. Pedagogical process.

 

Resumen

    El objetivo de este estudio fue identificar cuál es la percepción en las personas de las capacidades desarrolladas y de los factores importantes para la formación en las actividades náuticas de ocio y recreación. Con base en estudios anteriores elaboramos un cuestionario estructurado en dos grupos de preguntas. Un primer grupo asociado a los factores importantes para la formación en las actividades náuticas y un segundo grupo asociado a las capacidades desarrolladas por las actividades, que fue aplicado a una clase de alumnos del 3º año de la licenciatura en Educación Física y Deporte de la Universidad de Madeira, en el ámbito de la Unidad Curricular de Turismo, Ocio y Recreación después de la realización de tres actividades náuticas distintas (canotaje, buceo, snorkeling). Se identificó que los factores más valorados por esta muestra fueron la diversión y los desafíos, a pesar de que su importancia varía de acuerdo con las actividades realizadas, ya en las capacidades se destacan la capacidad de socialización, la capacidad técnica y adquisición de habilidades, autoconfianza, etc., no existiendo, sin embargo, ninguna que sea transversal a las tres actividades. De los resultados obtenidos podemos concluir que este instrumento (cuestionario) en conjunto con el Modelo de las Actividades Deportivas de Adaptación al Medio puede permitir relacionar la forma en que se realizaron las actividades y los comportamientos solicitados a los individuos, así como plantear un conjunto de hipótesis que permiten ajustar la cantidad, intensidad y frecuencia de los estímulos en la operacionalización de las actividades para obtener los efectos formativos pretendidos.

    Palabras clave: Actividades náuticas. Capacidades desarrolladas. Proceso pedagógico.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 23, Núm. 245, Oct. (2018)


 

Introdução

 

    O valor educativo e formativo das atividades náuticas é há muito reconhecido. Estas potencialidades são visíveis nos relatos das experiências de quem as vivenciou, como podemos ver nos exemplos que se seguem:

    “Durante oito meses, estaremos molhados, com frio, com calor, zangados, exaustos e desesperados para dormir de vez em quando, por isso, as nossas relações têm que ser muito fortes para aguentar tamanha pressão. Criámos um mix perfeito de velejadores estreantes e experientes. Estou muito contente com a equipa que construímos…” (Andrade, Dongfeng Race Team regressa à VOR com o objectivo de ganhar in Público, 18 de maio 2017, s/p).

 

    “J’ai simplement eu le sentiment d’avoir été privilégié, j’ai pris cela comme un cadeau.

 

    Je retire de cette expérience encore davantage d’humilité. Je me sens tout petit, encore plus qu’avant.” (Houdemont, Mon voilier s’est retrouvé dans une boule de foudre, in Voiles et voiliers nº397, março, 2004, p.61).

 

    “Embrassades empruntes d’émotions, délivrance après vingt-neuf jours de mer. Voilà, c’est fait, le Horn est maintenant derrière nous. … Maintenant, il va falloir naviguer de nuit dans les cailloux. Rester concentrés. Comme le répète souvent Paul: «en mer, le danger, c’est la terre». Il nous faut maintenant rejoindre Puerto Williams, dans ce dédale de canaux et d’îlots.” (Rémy Guérin, A virer le Horn!, in Voiles et voiliers nº545, julho, 2016, s/p).

 

    “So just because sailing round the world is becoming more commonplace, we should never let the enormity of the undertaking diminish in our minds. It’s as though as it ever was and because it is quicker there are new elements of danger that cancel the evolution of experience.” (Preece, Andrew, Sailing round the world, in Yachting World, fevereiro, 2004, p. 33).

    Para além destes relatos são também evidentes um conjunto de atividades que surgem intencionalmente direcionadas para a formação de jovens, como por exemplo o saill training1, onde para além da prática de atividade se pretende, fundamentalmente, proporcionar um conjunto de experiências formativas aos jovens que possam enriquecer a sua formação pessoal (Capurso e Borsci, 2013).

 

    Há um conjunto de potencialidades formativas das atividades náuticas que são por norma consensuais e que destacamos (Fernando, 2005, Araújo, Davids, Diniz, Rocha, Santos, Dias e Fernandes, 2015, Callewaert, Boone, Celie, Clercq e Bourgois, 2015, Santos, Dias, Couceiro, Mendes e Santos, 2016):

    Existem também já um conjunto de estudos onde são evidenciadas as potencialidades formativas destas atividades, no entanto, numa vertente de prática mais ligada ao lazer e recreação esta análise não é tão frequente. Apesar de não ser tão frequente podem encontrar-se já alguns trabalhos sobre os motivos que levam a este tipo de prática e outros que se centram na percepção dos indivíduos de como estas contribuem para a sua formação.

 

    Allison, McCulloch, McLaughlin, Edwards, e Tett (2007) e McCulloch, McLaughlin, Allison, Edwards, e Tett (2010) elaboraram alguns estudos onde identificam o valor e as características das atividades de “sail training experience”. Dos dados recolhidos os autores evidenciam que as atividades de sail training devem ser entendidas não só como uma aventura recreativa mas como uma poderosa experiência educativa.

 

    Também Tahara e Filho (2009) no trabalho que desenvolveram procuram identificar quais os motivos para a prática de “atividades físicas de aventura na natureza” e os benefícios advindos desta comparando-os com os das atividades de ginásio.

 

    Outros estudos abordam os motivos que levam à prática deste tipo de atividades como o de Woodmam, Hardy, Barlow, Scanff (2010) que centra a sua abordagem nas emoções em atividades desportivas de risco ou o de Kerr e Mackenzie (2012) onde são analisados os motivos para a participação em desportos de aventura.

 

    Com exceção dos dois primeiros estudos, podemos verificar que os outros trabalhos não são específicos das atividades náuticas. Apesar dos dados indicarem que são consideradas algumas atividades náuticas, no leque total de atividades consideradas, estas aparecem analisadas em conjunto com outras e por vezes são agrupadas modalidades tão diversas como o raffting ou o boia cross, o que no nosso entender dificulta a interpretação dos dados.

 

    Outra das limitações identificadas nos estudos onde são analisados os motivos que levam à realização destas atividades, foi o facto de serem considerados diferentes tipos de prática desportiva em conjunto, como a competição e o lazer, o que na nossa opinião influência os objetivos a atingir e o próprio modo de vivenciar a atividade pelo desportista, não permitindo assim uma adequada discriminação dos dados recolhidos.

 

    Com base nas dificuldades e lacunas acima descritas, realizamos um estudo exploratório com o objetivo de identificar qual a percepção dos indivíduos das capacidades desenvolvidas e dos fatores importantes para a formação nas atividades náuticas.

 

Metodologia

 

    Concebemos um questionário com base nos estudos apresentados por Tahara e Filho (2009), Allison, McCulloch, McLaughlin, Edwards e Tett (2007), McCulloch, McLaughlin, Allison, Edwards, e Tett (2010) e Kerr e Mackenzie (2012) onde adaptamos alguns dos itens que os autores destacam através das entrevistas realizadas, ao nosso modelo de questionário.

 

    Para testar a validade, face ao conteúdo do questionário, este foi apresentado a um grupo de três especialistas que fizeram algumas sugestões de pormenor na forma de apresentar alguns dos conteúdos, sugestões que foram cabalmente acolhidas.

 

    O questionário foi estruturado em dois grupos de perguntas, um primeiro grupo associado aos fatores importantes para a formação nas atividades náuticas e um segundo grupo associado às capacidades desenvolvidas pelas atividades. Utilizamos uma escala de Likert de 1 a 5 para a importância dada a cada um dos itens nomeados.

 

    Os fatores considerados foram: o trabalho em grupo, o divertimento, o isolamento, os desafios, as novas experiências e descobrir novos locais.

 

    As capacidades consideradas foram: a capacidade de resistir aos problemas encontrados, a capacidade de adaptação ao contexto, a capacidade de enfrentar problemas e de se manter otimista, a capacidade de liderança, a responsabilidade, as capacidades físicas, a capacidade de trabalho, a capacidade técnica e aquisição de skills2, a capacidade de socializar, a autoconfiança, o desenvolvimento de si próprio.

 

    Este questionário foi aplicado a uma turma de alunos do 3º ano da licenciatura em Educação Física e Desporto da Universidade da Madeira, no âmbito da Unidade Curricular de Turismo, Lazer e Recreação, após cada uma das três atividades náuticas realizadas. A prática de qualquer destas atividades inseriu-se no âmbito do lazer e da recreação e a maioria dos alunos possuía poucas vivências nas modalidades em causa e uma média de idade de 24,52 anos.

 

    As atividades realizadas foram: Atividade de iniciação à canoagem realizada junto à praia da Calheta em K2 onde foram abordadas várias manobras, pequenos percursos e jogos (n=21), Discovery Scuba Diving (DSD), primeira experiência de mergulho mais vulgarmente designada por “batismo” (n=21). A experiência consistiu em uma parte teórica, uma parte na piscina e uma parte no mar, tendo por base os padrões definidos pela PADI3 e uma atividade de snorkeling4 realizada no Caniçal onde foram abordados os skills da atividade e a sua aplicação em situações de jogo (n=14).

 

Resultados

 

Apresentação e discussão

 

    Fatores importantes para a formação

 

    Os três fatores com maior percentagem no grau de importância 4 e 5 em cada atividade são apresentados na Tabela 1.

 

Tabela 1. Fatores considerados muito importantes nas três atividades (importância 4 e 5 na escala de Likert)

Canoagem

%

Mergulho

%

Snorkeling

%

O divertimento

90

As novas experiências

100

O divertimento

93

O trabalho em grupo

76

O Divertimento

86

Os desafios

71

Os desafios

29

Os desafios e Descobrir novos locais

81

Novas experiências e trabalho em grupo

57

 

    Destacamos que, o divertimento é sem dúvida um dos fatores mais valorizados neste tipo de atividades, apesar de na atividade de mergulho o fator das novas experiências se sobrepor em termos de importância, este continua também a ser bastante valorizado.

 

    Os desafios proporcionados pelas atividades são também uma constante nas três atividades estudadas, apesar de assumirem níveis de importância diferentes em cada uma delas.

 

    Os fatores com maior percentagem no grau de importância 1 e 2 em cada atividade podem ser observados na Tabela 2.

 

Tabela 2. Fatores considerados pouco importantes nas três atividades (importância 1 e 2 na escala de Likert)

Canoagem

%

Mergulho

%

Snorkeling

%

O isolamento

76

O isolamento

81

O isolamento

79

Descobrir novos locais

76

O trabalho em grupo

14

O trabalho em grupo

21

As novas experiências

24

------------

 

As novas experiências

21

 

    O fator menos valorizado em todas as atividades foi o isolamento, no entanto é necessário considerar que todas elas foram realizadas em grupo (turma), assim como, em locais não isolados e onde a distância à costa era bastante reduzida o que, naturalmente, condicionou a percepção dos indivíduos. Por outro lado, o trabalho em grupo apesar de ter sido um dos fatores mais importantes no snorkeling aparece simultaneamente como um dos menos valorizados, o que na nossa interpretação se relaciona com a forma como funcionaram alguns grupos.

 

Capacidades desenvolvidas

 

    As três capacidades desenvolvidas com maior percentagem no grau de importância 4 e 5 em cada atividade são apresentadas na Tabela 3.

 

Tabela 3. Capacidades desenvolvidas considerados muito importantes nas três atividades (importância 4 e 5 na escala de Likert)

Canoagem

%

Mergulho

%

Snorkeling

%

A capacidade de socializar

67

A capacidade técnica e aquisição de skills

86

A capacidade de socializar

86

A capacidade técnica e aquisição de skills

67

A responsabilidade

81

A capacidade de enfrentar problemas e de se manter otimista

79

A capacidade de trabalho

62

A autoconfiança

81

A autoconfiança e desenvolvimento de si próprio

57

 

    Como é visível na Tabela 3, a capacidade de socializar foi a mais evidenciada, exceto por razões óbvias no mergulho, onde a capacidade técnica e aquisição de skills se destaca, seguida pela responsabilidade e autoconfiança.

 

    A canoagem apesar de ser um conteúdo presente nos Programas Nacionais de Educação Física, apresenta valores elevados para a capacidade técnica e aquisição de skills e novas experiências o que indica que as vivências dos alunos nesta modalidade são reduzidas.

 

    O valor elevado apresentado pela capacidade de enfrentar problemas e de se manter otimista no snorkeling julgamos que tem uma forte relação com o mau tempo existente no dia da atividade e baixa temperatura da água.

 

    As três capacidades desenvolvidas com maior percentagem no grau de importância 1 e 2 em cada atividade são apresentadas na Tabela 4.

 

Tabela 4. Capacidades desenvolvidas considerados pouco importantes nas três atividades (importância 1 e 2 na escala de Likert)

Canoagem

%

Mergulho

%

Snorkeling

%

A capacidade de resistência aos problemas encontrados

24

A capacidade de liderança

57

A capacidade de liderança

36

A capacidade de liderança

19

A capacidade de trabalho

23

A capacidade de resistência aos problemas encontrados

21

A capacidade de enfrentar problemas e de se manter otimista

19

A capacidade de socializar e a capacidade de resistência aos problemas encontrados

14

A capacidade técnica e aquisição de skills

21

 

    Como evidência a Tabela 4, a capacidade de liderança é considerada menos importante no mergulho, pois dada a especificidade da atividade a orientação técnica foi exclusiva dos instrutores. Já na canoagem, a capacidade de liderança, apesar de apresentar valores na ordem dos 19% na escala de importância 1 e 2 é também referida como bastante importante com uma percentagem elevada (próxima dos 50%).

 

    Se analisarmos as respostas na escala 4 e 5 de importância no conjunto de atividades realizadas e comparando as percentagens acima de 50% (Figura 1), podemos observar que enquanto na canoagem há uma menor diferenciação de valores entre as várias capacidades e destacam-se 5 delas com valores acima do 50%, já no mergulho e no snorkeling há entre 7 e 8 capacidades acima dos 50% e há uma maior diferenciação nos valores, como podemos observar na Figura 1 abaixo.

 

Figura 1. Percepção das capacidades desenvolvidas consideradas muito importantes nas três atividades (importância 4 e 5 na escala de Likert)

 

    Apesar de termos ficado com uma ideia de quais as capacidade e fatores mais valorizados nas atividades na perspectiva dos alunos, com este trabalho não pretendemos generalizar os resultados mas sim desenvolver instrumentos que nos permitam controlar as atividades realizadas e ajustar os processos de modo a solicitar os comportamentos que são desejados, aos indivíduos.

 

    Considerando o Desporto, em qualquer das suas facetas, não como um fim em si mesmo mas como um meio de transformação do indivíduo que tem como principal objetivo a transformação do homem, atuar ao nível dos comportamentos que solicitamos e das percepções que os indivíduos têm das atividades torna-se crucial.

 

    Hoje existem já modelos que nos permitem relacionar as variáveis com os comportamentos solicitados de modo a poder gerir a nossa atuação de forma intencional e objetiva.

 

    O modelo taxonômico das atividades desportivas de adaptação ao meio segundo a taxonomia de Almada (2008) permite-nos balizar a interpretação das atividades em questão e dar uma coerência aos dados recolhidos sem colocar em causa uma visão global do fenômeno.

 

    Esta taxonomia baseia-se nos comportamentos solicitados aos indivíduos que realizam as atividades e as atividades de adaptação ao meio são representadas pela fórmula simplificada y=f(x), onde o y simboliza os comportamentos solicitados e o x os fatores em jogo. Este tipo de atividades caracteriza-se pela existência de uma relação dos indivíduos com o meio onde não há uma automatização dos fatores de integração por parte de quem a realiza, precisamente porque as variações do contexto não permitem que este tipo de estratégia seja realizada de forma eficaz. Segundo esta taxonomia as atividades não constituem um fim em si próprias mas sim um meio de transformação do indivíduo que tem como principal objetivo a formação do homem (Vicente, Fernando, Lopes, 2014).

 

    Através do questionário aplicado e do Modelo Taxonômico apresentado, podemos assim levantar algumas hipóteses sobre os diferentes fatores em jogo que estamos a utilizar, quer seja ao nível da concepção da atividade quer seja ao nível do treino e orientação e se estão a despoletar os comportamentos que pretendemos, de modo a ajustá-los aos objetivos pretendidos e deste modo atuar.

 

    Por exemplo:

 

    Verificamos através dos questionários que o peso da “capacidade de adaptação ao contexto” percebida pelos alunos não é muito elevado. Quais as causas que podem estar inerentes a esta percepção?

 

    Façamos uma análise de cada uma das atividades.

 

Canoagem – 48% nos níveis 4 e 5 de importância

 

    Tendo em consideração que a atividade decorreu numa zona abrigada onde a ondulação, corrente, vento praticamente não se faziam sentir, parece-nos normal este resultado.

 

    Face à identificação deste problema e se pretendêssemos aumentar a percepção da importância do desenvolvimento desta capacidade nos alunos, podíamos considerar diferentes possibilidades:

Mergulho – 71% nos níveis 4 e 5 de importância

 

    Aqui o valor da necessidade de adaptação ao contexto já é mais elevado, apesar de não ser a que atingiu valores percentuais mais elevados no conjunto das capacidades mencionadas no questionário.

 

    A nossa interpretação para este resultado é que estando os participantes a realizar um DSD (batismo) é natural que exista uma necessidade de adaptação a um conjunto de coisas como o equipamento e as técnicas e skills (indivíduo e situação) que leva a que a preocupação de superar os seus medos e dificuldades se sobreponha ao contexto.

 

    Por outro lado, por questões de segurança todo o percurso realizado no mar tem sempre o acompanhamento por perto de um instrutor que garante a adaptação ao contexto, o que, na nossa interpretação, contribui para esta percepção.

Neste caso concreto só a evolução na atividade irá proporcionar o aumento da relação com o contexto.

 

Snorkeling - 57% nos níveis 4 e 5 de importância

 

    Alguns dos exercícios realizados tiveram um caráter bastante lúdico fazendo com os indivíduos se centrassem mais nas regras e objetivos do jogo do que propriamente no contexto (recolha de objetos, caça ao tesouro, etc.).

 

    Talvez se estes mesmos exercícios fossem utilizados de uma forma um pouco mais funcional, os resultados obtidos fossem diferentes. A utilização de objetos do próprio contexto, quer como referências quer para os encontrar, a identificação de espécies, etc., poderiam levar a que os indivíduos sentissem necessidade de estabelecer uma maior relação com o contexto.

 

    Por outro lado, como já anteriormente referimos, as condições atmosféricas adversas dificultaram também esta interação pois o vento, a reduzida temperatura do ar e água não permitiram uma atitude de desfrute da atividade, que poderia levar a uma melhor relação com o contexto.

 

Conclusões

 

    A utilização de questionários para compreender a percepção que os indivíduos têm dos fatores importantes na atividade e das capacidades desenvolvidas é um instrumento com potencial quando contextualizado com a atividade realizada e com a forma como esta é operacionalizada. Caso contrário poderemos incorrer em interpretações errôneas ou generalizar percepções que decorreram de determinados aspetos particulares que só são possíveis de descortinar quando existe um acompanhamento in loco da atividade. Por outro lado, a utilização do Modelo das Atividades de Adaptação ao Meio em conjunto com este tipo de instrumentos permite-nos manter uma visão global do fenômeno e estruturar uma intervenção coerente.

 

    Face ao exposto julgamos que utilizar o desporto como um meio de formação do indivíduo e não um fim em si mesmo implica a utilização de metodologias que nos permitam avaliar os efeitos da atividade, quer os percebidos pelo próprio indivíduo quer os que efetivamente foram induzidos.

 

    Por outro lado julgamos que a utilização de uma metodologia de Diagnóstico/Prescrição/Control implica a criação/utilização de instrumentos adequados à avaliação do processo pedagógico que nos permitam realizar ajustes nos estímulos, na regulação das suas componentes (quantidade, intensidade, frequência, etc.) mas também nas intervenções dos orientadores das atividades, pois só deste modo será possível ter uma praxis coerente com o quadro conceitual defendido.

 

    Uma intervenção de forma coerente e intencional na concepção e orientação das atividades implica assim a utilização de um conhecimento holístico que permita compreender a interação das diferentes facetas do fenômeno e tratá-lo como um todo integrando os dados recolhidos num modelo global que nos permita atingir os objetivos pretendidos.

 

Notas

  1. Treino de vela realizado através de regatas ou viagens onde os indivíduos integram a atividade como parte da tripulação da embarcação.

  2. Habilidades e competencias.

  3. PADI (Professional Association of Diving Instructors) é uma associação profissional que faz a formação dos instrutores de mergulho e define os parâmetros de atuação destes na orientação das suas atividades.

  4. Prática de mergulho em águas pouco profundas onde é utilizada uma máscara com um tubo que permite que o indivíduo respire sob a água. 

 

Referências

 

    Allison, P., McCulloch, K., McLaughlin, P., Edwards, V., e Tett, L.(2007). The Characteristics and Value of the Sail Training Experience. Scotland: University of Edinburgh.

 

    Almada, F., Fernando, C., Lopes, H., Vicente, A., Vitória, M. (2008). A Rotura – A Sistemática das Actividades Desportivas. Torres Novas: Edição VML.

 

    Andrade, D. (2017). Dongfeng Race Team regressa à VOR com o objectivo de ganhar in Público, 18 de maio, s/p.

 

    Araújo, D., Davids, K., Diniz, A., Rocha, L., Santos, J., Dias, G. e Fernandes, O. (2015). Ecologycal Dynamics of continuous and categorical decision-making: The regatta start in sailing. European Journal of Sport Science, 15 (3), pp. 195-202.

 

    Bouter, L. M., Knipschild, P. G., Feij, J. A., & Vollovics, A. (1988). Sensation seeking and injury risk in downhill skiing. Personality and Individual Differences, 9, pp. 667-673.

 

    Callewaert, M., Boone, J., Celie, B., Clercq, D. e Bourgois, J. (2015). Indicators of sailing performance in youth dinghy sailing. European Journal of Sport Science, 15 (3), pp. 213-119.

 

    Capurso, M. e Borsci, S. (2013). Effects of a tall ship sail training experience on adolescents’ self-concept. International Journal of Education Research, 54, pp.15-24.

 

    Chirivella, E. C., & Martinez, L. M. (1994). The sensation of risk and motivational tendencies in sports: an empirical study. Personality and Individual Differences, 16, pp. 777-786.

 

    Cogan, N. A., & Brown, R. I. F. (1999). Metamotivational dominance, states and injuries in risk and safe sports. Personality and Individual Differences, 27, pp. 503-518.

 

    Fernando, C. (2005). Estruturação das atividades desportivas dos grandes espaços - para a micro e macro gestão. (Tese de doutoramento não publicada).Universidade da Beira Interior, Portugal.

 

    Guérin, R. (2016). A virer le Horn! Voiles et voiliers nº 545, julho, s/p.

 

    Houdemont (2004). Mon voilier s’est retrouvé dans une boule de foudre. Voiles et voiliers nº397, março, p.61.

 

    Kerr, J. H. (1991). Arousal-seeking in risk sport participants. Personality and Individual Differences, 12, pp. 613-616.

 

    Kerr, J., Mackenzie, S. (2012). Multiple motives for participating in adventure sports. Psychology of Sport and Exercise,13 (5), pp. 649–657.

 

    McCulloch, K., McLaughlin, P., Allison, P., Edwards, V. e Tett, L. (2010). Sail training as education: more than a mere adventure. Oxford Review of Education, 36 (6), pp. 661-676.

 

    Preece, A. (2004). Sailing round the world, in Yachting World, fevereiro, 2004, p. 33.

 

    Santos, J., Dias, G., Couceiro, M., Mendes, P. e Santos, A. (2016). Influence of the physical fitness, anthropometry profile and body composition on sailing performance. Journal of Sport and Human Performance, 4 (1), pp.1-17.

 

    Tahara, A. e Filho, S. (2009). Atividades físicas de aventura na natureza (AFAN) e academias de ginástica: motivos de aderência e benefícios advindos da prática. Revista Movimento, 15 (3), pp. 187-208.

 

    Vicente, A., Fernando, C., Lopes, H. (2014). A Multidisciplinary Approach of Sport. American International Journal of Contemporary Research, 4 (1), pp. 286-290.

 

    Woodmam, T., Hardy, L., Barlow, M.E., Scanff, C. (2010). Motives for participation in prolonged engagement high-risk sports: Na agentic emotion regulation perspective. Psychology of Sport and Exercice, 11, pp. 345-352.


Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 23, Núm. 245, Oct. (2018)