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ISSN 1514-3465

 

O caso de Yoandy Leal: uma análise do 

processo de naturalização no voleibol brasileiro

The Case of Yoandy Leal: an Analysis of the Naturalization Process in Brazilian Volleyball

El caso de Yoandy Leal: un análisis del proceso de naturalización en el voleibol brasileño

 

Carlos Henrique de Vasconcellos Ribeiro*
c.henriqueribeiro@ig.com.br

Rafael Marques Garcia**

rafa.mgarcia@hotmail.com

Diego Ramos do Nascimento***

personalnascimento@gmail.com

Jeferson Roberto Rojo****

jeferson.rojo@hotmail.com
Larsson Alves de Almeida*****

larson@gmail.com
Erik Giuseppe Barbosa Pereira******

egiuseppe@eefd.ufrj.br

 

*Coordenador do Curso de Bacharelado

em Educação Física da Universidade Santa Úrsula

Docente do Mestrado em Gestão do Trabalho

para a Qualidade do Ambiente Construído desta IES

Doutor em Educação Física pela Universidade Gama Filho
**Professor de Educação Física da Prefeitura Municipal de Volta Redonda/RJ

Doutorando em Educação Física pelo PPGEF/UFRJ

Licenciado, Bacharel e Mestre em Educação Física

pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

Membro do GECOS - Grupo de Estudos em Corpo, Esporte e Sociedade

e do Laboratório de Estudos Corpo, Esporte e Sociedade, o LAbCOESO

Diretor esportivo do Lendários Esporte Clube

associação poliesportiva LGBTI+ da cidade do Rio de Janeiro. 
*** Doutorando em Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

Mestre em Educação Física, Esp. em Treinamento Desportivo (UFRJ)

Graduado em Educação Física (Licenciatura e Bacharel)

pelo Centro Universitário Augusto Mota (UNISUAM)

****Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Aluno de doutorado pelo PPG Associado em Educação Física UEM/UEL

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Física da UFP

Graduado em Educação Física pela Universidade Estadual de Maringá

*****Graduando em Licenciatura em Educação Física

pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Membro do Grupo de Estudos em Esporte, Corpo e Sociedade (GECOS-UFRJ)

******Licenciatura Plena em Educação Física pela UFRJ

Mestrado em Ciência da Motricidade Humana pela UCB- RJ

Doutorado em Ciências do Exercício e do Esporte da UERJ

Atualmente é professor na Graduação e no Programa

de Mestrado e Doutorado (PPGEF) da EEFD/UFRJ

Líder do Grupo de Estudos em Corpo, Esporte e Sociedade, o GECOS

e do Laboratório de Estudos Corpo, Esporte e Sociedade, o LAbCOESO

(Brasil)

 

Recepção: 16/03/2020 - Aceitação: 13/09/2020

1ª Revisão: 19/05/2020 - 2ª Revisão: 10/09/2020

 

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Citação sugerida: Ribeiro, C.H. de V., Garcia, R.M., Nascimento, D.R. do, Rojo, J.R., Almeida, L.A. de, & Pereira, E.G.B. (2020). O caso de Yoandy Leal: uma análise do processo de naturalização no voleibol brasileiro. Lecturas: Educación Física y Deportes, 25(269), 16-33. Recuperado de: https://doi.org/10.46642/efd.v25i269.2055

 

Resumo

    O objetivo do trabalho é problematizar o processo de naturalização do jogador Leal no voleibol brasileiro. Estudar este jogador é compreender um pouco mais sobre como entidades que dirigem os esportes, confederações em nível mundial, e federações em nível local, atuam para legitimar e proteger a questão das mudanças de nacionalidade, criando regulamentos para elegibilidade e restrições de atletas de seus esportes. Adotamos dois instrumentos metodológicos para obtenção de nossos resultados. O primeiro instrumento foi a análise de notícias, o segundo foi a análise documental do Formulário de Solicitação de Mudança de Federação, instituído pela Federação Internacional de Voleibol, no Caderno “Regulamentos do Esporte”. Do ponto de vista do mercado de trabalho, das especificidades técnicas conquistadas por anos de dedicação e da livre movimentação para assinar contratos com diferentes empresas, inferimos que as restrições não fazem sentido. Logo, ficam concentradas nos atletas que já alcançaram elevado nível técnico e estão na idade cronológica mais produtiva. Para os que não participaram de seleções nacionais ou alcançaram a idade de 35 anos para homens e 32 para mulheres, há flexibilização das condições de elegibilidade.

    Unitermos: Voleibol.Brasileiro. Naturalização.Yoandy Leal.

 

Abstract

    The aim of this research is to problematize the naturalization process of the Leal player in Brazilian volleyball. Studying this player is to understand a little more about how entities that run sports, confederations at the global level, and federations at the local level, act to legitimize and protect the issue of nationality changes, creating regulations for the eligibility and restrictions of athletes in their sports. We adopted two methodological instruments to obtain our results. The first instrument was news analysis, the second was the application form for changing the federation, instituted by the International Volleyball Federation in the “Sport Regulations”. From the point of view of the labor market, the technical specificities achieved by years of dedication, and the free movement to sign contracts with different companies, we infer that the restrictions do not make sense. Therefore, they are concentrated on athletes who have already reached a high technical level and are at the most productive chronological age. For those who did not participate in national teams or reached the age of 35 for men and 32 for women, there is flexibility in the eligibility conditions.

    Keywords: Volleyball. Brazilian. Naturalization. Yoandy Leal.

 

Resumen

    El objetivo del trabajo es problematizar el proceso de naturalización del jugador Leal en el voleibol brasileño. Estudiar a este jugador es entender un poco más cómo las entidades que dirigen el deporte, las confederaciones a nivel global y las federaciones a nivel local, actúan para legitimar y proteger el tema de los cambios de nacionalidad, creando regulaciones de elegibilidad y restricciones para los deportistas en sus deportes. Adoptamos dos instrumentos metodológicos para obtener nuestros resultados. El primer instrumento fue el análisis de noticias, el segundo fue el análisis documental del Formulario de Solicitud de Cambio de Federación, instituido por la Federación Internacional de Voleibol, en la sección “Reglamento Deportivo”. Desde el punto de vista del mercado laboral, de las especificidades técnicas logradas por años de dedicación y la libre circulación para firmar contratos con distintas empresas, inferimos que las restricciones no tienen sentido. Por lo tanto, se concentran en deportistas que ya han alcanzado un alto nivel técnico y se encuentran en la edad cronológica más productiva. Para aquellos que no participaron en selecciones nacionales o alcanzaron la edad de 35 años para hombres y 32 para mujeres, hay flexibilidad en las condiciones de elegibilidad.

    Palabras clave: Voleibol. Brasileño. Naturalización. Yoandy Leal.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 25, Núm. 269, Oct. (2020)


   

 “Porque só escrevendo alguém pode saber o que quer escrever, 

até onde pode chegar, se quer ou não fazer política com a literatura, 

se é bom escritor ou um tolo, se vai autocensurar ou ser censurado...” 

“O romance da minha vida” – do escritor cubano Leonardo Padura, 2019.

 

Introdução 

 

   “Vou ser um brasileiro a mais”. Assim iniciamos nossa pesquisa com a frase dita pelo jogador Yoandy Leal, tão logo soube que a Federação de Voleibol Internacional (FIVB) o autorizou a jogar pela seleção brasileira de voleibol. Assim, a notícia é de 2017 para algo que apenas em maio de 2019 ganhou concretude1.

 

    Ao abordarmos os temas relativos à naturalização, temos a oportunidade de compreensão sobre como são complexos e, por vezes, tensos – os sentimentos de pertencimento e identidade desdobrados no âmbito esportivo.

 

    Sobre identidade, Jorge(2009) afirma ser um processo cíclico de (re)construção, não somente social e político, mas também geográfico, baseado na capacidade de mobilidade que os agentes sociais possuem.Essa (re)construção e sua relação com o processo de naturalização ficam mais latentes quando nos aprofundamos nas camadas contidas dentro da noção de identidade. Ao aportarmos na camada referente à identidade social, perceberemos que o indivíduo que busca fixar-se em um novo país necessita compreender o ambiente social que está inserido com a finalidade de perceber a sua posição naquele povo se filiando a um grupo que apresente características comuns, facilitando as interações sociais. (Del Prette, &Del Prette, 2003)

 

    Paralelamente, quando refletimos sobre a camada destinada à identidade cultural em uma era globalizada, este sujeito que está coberto de patrimônios simbólicos da sua nação de origem necessita redefinir esses valores para se adequar a uma nova coletividade (Sousa, 2012). Por fim, a camada relativa à identidade étnica sugere que o elemento social durante o processo de naturalização compreenda as relações raciais que construíram a trajetória histórica daquele povo, suavizando sua incorporação ao todo. (Lima, 2008)

 

    Neste sentido, o esporte irrompe como importante ferramenta para a construção das identidades de atletas, sejam eles migrantes ou não. Soto-Lagos et al. (2020) explicam que essa ideia corrobora para robustecer imaginários nacionais de uma nação forte, incluindo aspectos políticos, sociais e culturais. Nesta linha de apreensão os autores apontam que em uma mundo globalizado-capitalista, a influência das relações intercontinentais afrouxou a própria construção e valorização de uma identidade nacional, já que se tornou menos dificultoso transitar por territórios e pedir uma naturalização estrangeira com base em uma nova construção de identidade.

 

    Por tais linhas, destacam-se elementos que interferem nesse processo, tais como os valores socioculturais do país de origem e destino, por assim dizer. Assim, Soto-Lagos et al. (2020, p. 2) recorrem ao clássico de Jorge Larraín, El concepto de identidad, para afirmar que a construção da identidade é um processo cultural, material e social:

    la identidad es un proceso cultural, material y social. Cultural, porque las personas se definen a sí mismas en términos de ciertas categorías compartidas cuyo significado está culturalmente definido. Material, en tanto las personas proyectan simbólicamente su sí mismo y sus propias cualidades en cosas materiales. Social, porque la identidad implica una referencia a los “otros”, de quienes internalizamos opiniones y expectativas para definirnos y, a su vez, diferenciarnos. A las tres dimensiones señaladas, se agrega la dimensión histórica a través de la noción de memoria colectiva […] lo que le permite mantener y cambiar de forma simultánea ciertos aspectos de las identidades.

    Desta forma, a identidade traduz-se no conjunto de elementos sociais que as pessoas representam e cultivam ao longo de suas próprias vidas, sendo a dedicação ao esporte uma das formas de construir esse ideal de pertencimento/identificação. (Soto-Lagos et al.,2020)

 

    O conceito de pertencimento passa, segundo Lestinge (2004), por um caminho ligado ao sentimento de espaço territorial e seus componentes e, por outro caminho, a um sentimento de inclusão subjetiva do todo em que se insere. Percebemos que em ambos os conceitos há uma ligação direta a espaços geográficos, correlacionando assim os sentimentos de pertencimento e identidade com os aspectos migratórios.

 

    Moriconi (2014) afirma que os sentimentos de pertencimento e identidade são capazes de mover o sujeito a tomar atitudes que modifiquem seus hábitos, saindo de sua zona de conforto e buscando novas direções pessoais e profissionais.

 

    Para reforço: se a presença de Leal fosse pacífica na seleção, talvez o atleta tivesse menos a justificar. Como legalmente tem este direito, não seria necessário proferir a frase “Ser um brasileiro a mais”. Portanto, algo que o atleta nos informa – quase que como um pedido de desculpas – não faz sentido para outros brasileiros da seleção. Os outros atletas não serão mais ou menos brasileiros: serão atletas ocupando suas posições, legitimamente conquistadas.

 

    Apesar do conceito de nacionalidade esportiva ser um tema que advém da ideia inicial de Pierre de Coubertin do começo do século passado, que precisa ser compreendido a partir de suas singularidades diplomáticas, europeias e geográficas (Clastres, 2016), os desdobramentos para distintas nacionalidades esportivas ganharam estatuto jurídico recente e estão ainda em construção, ficando ao sabor dos interesses das entidades que representam estes esportes em nível internacional. (Nicolau, 2017)

 

    Atletas saem dos seus países de nascimento por inúmeros motivos e, ao se fixarem em outros, conquistam, às vezes, o direito de jogar por seleções esportivas nacionais destes novos países que os acolheram. Normalmente são aquelas que permitem que estes atletas fixem residência e conquistem uma trajetória vitoriosa em clubes esportivos de grande popularidade dentro destas novas nações.

 

    Para efeitos de introdução, temos como exemplo o jogador de futebol Diego Costa que, durante a Copa do Mundo FIFA 2014 no Brasil, atuou pela seleção espanhola e recusou o convite da Confederação Brasileira de Futebol meses antes do torneio. Através de um pedido de dispensa feito por carta em que reafirmava seu amor pelo Brasil, mas que explicava sua opção pela Espanha, país que lhe “acolheu como um filho”, Diego não só optou pelo selecionado espanhol como, de forma inédita, dispensou o direito – irreversível – de vestir a camisa do selecionado brasileiro. (Ribeiro et al., 2017)

 

    Assim, esta pesquisa se utiliza de uma parte da trajetória esportiva de Leal para compreender a complexa rede de trabalho do voleibol, sobretudo dos que atingiram nível de excelência internacional. Interessa-nos o processo de mudança de uma federação para outra, em que pesem as escolhas do jogador e o direito de exercer sua profissão em equipes nacionais distintas dos seus países de origem, bem como os documentos oficiais da federação internacional responsável por gerir este esporte, que regulam a elegibilidade de atletas para atuarem em outras seleções nacionais.

 

    A saída do jogador em tela soma-se a outros atletas de Cuba de sua geração que, vislumbrando um futuro melhor para suas vidas, desertaram da seleção nacional e foram atuar por outras federações. Contemporâneos de Leal que trocaram de nacionalidade são os jogadores Osmany Juantorena e Wilfredo León. Juantorena obteve cidadania italiana e atua pela Federação deste país. León joga agora pela seleção polonesa de voleibol. Brasil, Itália e Polônia,três países com forte tradição no voleibol e que detêm dezenas de títulos mundiais neste esporte, tendo nas suas equipes nacionais a presença de jogadores que se formaram em Cuba.

 

    Leal conquistou o direito de jogar pela seleção brasileira de voleibol pelo seu nível de excelência, mesmo que não exista, aparentemente, a falta de jogadores para sua posição, em um esporte cujos resultados internacionais são, há décadas, do nível das melhores equipes do mundo2. Ao furar o bloqueio da presença exclusiva de atletas nascidos em território nacional e entrar na seleção, Leal segue o sentido oposto, por exemplo, de jogadores de diferentes seleções nacionais de outros esportes que compuseram a representação do “Time Brasil”, para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Foram 23 atletas no total, que atuaram em 10 modalidades esportivas, como pólo aquático, hóquei na grama e rúgbi, esportes em que o Brasil tem poucos resultados expressivos no cenário internacional e que a presença deles serviu para elevar o nível técnico destas equipes, na busca por melhores resultados em solo brasileiro. (Almeida, & Rubio, 2018)

 

    Assim, inferimos que a decisão de contar com atletas estrangeiros nas diferentes federações esportivas brasileiras – que detêm resultados pouco expressivos em nível internacional –, seja mais pacífica do que no caso de federações como a do voleibol, onde a quantidade de atletas brasileiros com experiência internacional não é um problema. Esta pesquisa tem como objetivo, por fim, problematizar o processo de naturalização do jogador Leal no voleibol brasileiro, primeiro atleta de voleibol nascido em um país estrangeiro a representar a seleção brasileira nesta modalidade.

 

Métodos 

 

    Esta pesquisa é de natureza qualitativa, do tipo descritivo, e utiliza como estratégia a análise documental (Triviños, 1987). Para Cellard (2008), a análise documental estrutura-se em: 1. Conceituação e caracterização da pesquisa documental em si; 2. Discussão e ampliação do documento a ser analisado e; 3. Análises e inferências acerca dos princípios investigativos vislumbrados. Neste cotejo, deve-se extrair informações e confeccionar entendimentos que se interconectam com objetivos da pesquisa: “a fim de estabelecer essas ligações e de constituir configurações significativas, é importante extrair os elementos pertinentes do texto, compará-los com outros elementos contidos no corpus documental”. (Cellard, 2008, p. 304)

 

    Com base nos autores, elaboramos o seguinte roteiro de organização: a) seleção e registro de passagens importantes na elaboração do objeto de pesquisa; b) elaboração de síntese crítica da documentação e confronto de possíveis lacunas com o material teórico; c) revisão desses registros para o aprofundamento do objeto de pesquisa e comparação com a literatura pertinente da área e; d) releitura do material coletado com intuito de refletir e iniciar as análises e discussões do material selecionado. Como dado adicional ressaltamos que a análise dos documentos foi feita à luz do referencial teórico que pautou nossa revisão de literatura, sobretudo quanto às problematizações levantadas sobre o tema de migração esportiva e mais especificamente as características da migração esportiva no voleibol.

 

    A aplicabilidade consistiu na seguinte estruturação: A primeira estratégia, com o intuito construir um breve histórico sobre a vida profissional de Yoandy Leal, foi a análise de notícias sobre sua trajetória desde sua naturalização até a final da Copa do Mundo do Japão em 2019. Esse aspecto é importante para podermos compreender melhor o histórico do atleta até vir de fato a ser naturalizado brasileiro, já que, ao operarmos com a análise documental, é importante conferir destaque aos elementos contextuais que rodeiam o fenômeno problematizado. O jogador foi matéria jornalística em veículos de comunicação brasileiros e obtivemos os seguintes veículos: a) Folha de São Paulo (versão online); b) Grupo Globo (globoesporte.com e oglobo.com); c) BBC (versão brasileira online); d) Saída de rede (blog voltado para o público de voleibol da empresa brasileira de conteúdo virtual Universo Online) e;e) Veja (versão online). Neste tipo de material, realizamos a seleção dos documentos e os discutimos com a literatura da área, tais como Ribeiro et al. (2017), Rial (2006, 2008) e Carravetta (1996).

 

    A segunda estratégia metodológica foi o a análise documental propriamente dita do “Formulário de Solicitação de Mudança de Federação”, conforme o Caderno “Regulamentos do Esporte” da Federação Internacional de Voleibol. A análise deste formulário nos permitiu adentrar nos quesitos legais que competem à naturalização de um atleta no voleibol brasileiro.

 

    O formulário é o primeiro passo para a elegibilidade dos jogadores que solicitam o direito de jogar por outra equipe nacional. Neste documento, constam as condições necessárias que um atleta deve preencher para que tenha seu pedido considerado pela FIVB, que apresentaremos a seguir.O documento que pauta a mudança de federação é o “Regulamentos do Esporte” (Fédération Internationale de Volleyball, 2013), onde as seções 2 e 6.3 regulam esta possibilidade e estão transcritas na integra abaixo, conforme nota de rodapé3.

 

    Para que um atleta possa trocar de Federação e, com isso, estar livre para atuar por outra seleção nacional, ele precisa cumprir as seguintes condições: a) residir por pelo menos dois anos no país para o qual o atleta solicita a mudança de Federação, prioritariamente antes do pedido; b) ter obtido nacionalidade no país para o qual solicita a mudança de Federação; c) a concordância da Federação de origem com a mudança; d) a concordância da nova Federação com esta mudança e; e) o pagamento de taxas à FIVB, com dois valores distintos, em francos suíços (SFr): 15.000 e 25.000 para aqueles que já atuaram por alguma equipe nacional principal (Fédération Internationale de Volleyball, 2013)4. Além deste documento, acrescentamos a carta de desculpas da FIVB sobre o erro cometido com Leal, para confrontar com os prejuízos causados ao jogador.

 

Resultados e discussão 

 

A trajetória esportiva de Yoandy Leal 

 

    O jogador Yoandy Leal Hidalgo nasceu em Cuba, cidade de Havana em 31 de agosto de 1988. Pouco sabemos sobre sua iniciação no voleibol e como foi sua trajetória até a profissionalização, contudo, em entrevista à revista Veja (Senechal, 2019), Yoandy Leal fala a respeito do seu início no esporte e as dificuldades de praticá-lo em Cuba:

    O esporte para um cubano não é apenas lazer. É uma das poucas chances que temos para nos destacar na sociedade. Tive uma conversa com meus pais, e decidimos que deveria seguir no voleibol. E aqui estou até agora. Era difícil, porque com 12 anos já estava separado da minha família. Vivia na escola e via meus pais uma vez por semana. Quem se destaca é levado para uma escola de nível superior, com dedicação ao esporte. O passo seguinte é a seleção nacional. Você treina com o objetivo de jogar pelo país, para defender a seleção de Cuba. Essa era minha vida na ilha, desde cedo tinha grandes responsabilidades. Não é fácil para uma criança ter de passar por isso.

    Percebemos na fala de Leal que o voleibol entra na sua vida como uma esperança de transformação social. O poder transformador do esporte para atletas de alto rendimento não é uma exclusividade do voleibol ou de atletas de países desfavorecidos econômica e socialmente. Carravetta (1996) já apontava a utilização do esporte como ferramenta de ascensão social em atletas olímpicos e Rial (2006, 2008) nos mostra que essa possibilidade norteia as escolhas profissionais de uma parcela de atletas brasileiros de futebol que se aventuram no exterior. A diferença, neste caso, é que ao invés de termos atletas brasileiros saindo do país em busca do seu “eldorado”, temos em Leal o sentido oposto, ou seja, um atleta que vem ao Brasil para ascender socialmente, visto que em seu país isto não é possível.

 

    Em 2007, Leal teve sua estreia como jogador de seleção cubana, atuando na equipe sub-21 e, posteriormente, na seleção principal até o ano de 2010, quando disputou o campeonato mundial de seleções, obtendo a medalha de prata nesta competição, perdendo a final para a equipe brasileira.

 

    Neste mesmo ano, deixou a seleção cubana, insatisfeito com as condições impostas aos atletas. Leal afirmou que "em Cuba, não podia jogar como profissional, porque não há clubes, e o governo não deixa um atleta da seleção jogar em outro país". Além disso, informou que ganhava US$ 8 por mês. "Não era um salário que permitia viver normalmente. Queria ajudar minha família a ter uma vida melhor com meu trabalho". (Barifouse, 2019)

 

    Por motivos de impedimento sobre a obtenção de visto de saída imposto a todos esportistas que querem deixar a ilha, teve de cumprir uma quarentena de dois anos sem poder assinar contrato de trabalho com qualquer outro clube de outro país5. Não há informações sobre sua rotina esportiva durante esse período. Chegou ao Brasil em 03 de agosto de 2012 e foi inscrito como jogador do SADA/Cruzeiro. Sobre este fato, Yoandy Leal ressalta a importância de seu empresário, do clube mineiro e do Brasil em um delicado momento de sua vida:

    (...) Um brasileiro me estendeu a mão. O Alessandro Lima, que hoje é meu empresário. Ele foi a Cuba com um diretor do SADA/Cruzeiro, time de Minas Gerais, os dois falaram comigo e me convidaram. Como não vou ter carinho e estima pelo Brasil? Não seria o jogador que sou hoje sem essa ajuda.

    Em 26 de junho de 2015, obteve o visto de permanência no Brasil (Diário Oficial da União, 2015a) e, em 17 de dezembro do mesmo ano, obteve a naturalização brasileira (Diário Oficial da União, 2015b). Leal, até aquele ano, já havia obtido grandes conquistas.Tais fatos fizeram com que, desde 2015, já houvesse a consideração de que a naturalização era o primeiro passo numa longa jornada para uma possível – e improvável –, convocação para a seleção brasileira de voleibol. (Araújo, 2015)

 

    Quanto às suas conquistas, Leal coleciona uma série de prêmios coletivos e individuais. Acerca dos títulos coletivos, conquistou pelo Cruzeiro 5 títulos da Superliga (2013/2014, 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018) e três títulos mundiais de clubes (2013, 2015 e 2016). Seus títulos individuais têm quantitativo maior que os coletivos. Dos mais expressivos citamos: 1) melhor atacante nas Superligas de 2012, 2013, 2016 e 2017; 2) jogador mais valioso das Superligas de 2015, 2016 e 2017; 3) jogador mais valioso do Campeonato Mundial de Clubes de 2015 e; 4) melhor atacante nos Campeonatos Mundiais de Clubes de 2013, 2014, 2016 e 2017. Leal foi o primeiro a conseguir um título mundial de clubes por um clube das Américas e outro por um clube europeu em 2019. Ele atuou até o ano de 2018 no Brasil, onde se transferiu para o clube italiano Civitanova.

 

    Após toda essa caminhada, Yoandy Leal reafirma, em suas palavras, todo o seu amor e gratidão ao Brasil pelo acolhimento e auxílio nesse percurso:

    Para aqueles que pensam o contrário (que não sou um brasileiro), só posso dizer que me sinto feliz por ter a nacionalidade brasileira e, seguramente, sou mais brasileiro do que eles. Eu sou brasileño. Sinto-me assim porque iniciei minha carreira profissional no país aos 22 anos. Nesta temporada (ano de 2019), saí para jogar na Itália, onde conquistei os títulos nacional e europeu. Mas foi no Brasil que cresci como atleta e homem. E agora, aos 30 anos, ajudei o Brasil a garantir a vaga para a Olimpíada de Tóquio, ao vencer o torneio pré-olímpico na Bulgária.

    A fala de Leal traz à tona o seu sentimento de pertencimento à nova nacionalidade e sua identidade social e cultural. Sendo “abrasileirado”, agora é o momento de realçar a conquista da vaga olímpica com a seleção brasileira de voleibol masculina. Este sentimento de identidade e pertencimento foi visto em Ribeiro et al. (2017), e Rial (2006; 2008), identificado dentro do futebol, em que os atletas vão adquirindo novos sentimentos de pertencimento, sobretudo nos novos países que os acolheram e permitiram que estes se desenvolvessem como atletas, amadurecendo suas qualidades técnicas e melhorando suas performances. Ao que tudo indica, os mesmos valores estão presentes no universo do voleibol.

 

    Os valores construídos e cultivados por Leal em território brasileiro fazem parte do que Soto-Lagos et al. (2020) denominam de “condições socioculturais”. Para os autores, os elementos culturais traduzem-se em valores simbólicos para os atletas, e em nossa análise, é de se destacar que Leal sempre manteve convivência turbulenta com os dirigentes e delegação cubanos6, o que não veio a ser vislumbrado no Brasil, onde conquistou vários títulos pela equipe do SADA/Cruzeiro Vôlei, de Contagem/MG, tendo sido acolhido pelo torcedor e população do clube e município mineiros. Esses aspectos podem ter contribuído para que Leal se identificassem com o “calor brasileiro”, desenvolvendo daí sua própria noção de nacionalização.

 

    A seguir, apresentaremos as questões legais que ocorreram durante todo esse processo.

 

Figura 1.Reprodução/Instagram – página do jogador

Figura 1. Reprodução/Instagram – página do jogador7

 

Elegibilidade e restrições do processo de naturalização e atuação no voleibol brasileiro 

 

    De sua chegada ao Brasil à conquista do direito de atuar na seleção brasileira de voleibol foram cerca de nove anos. Resiliência, longa espera e incertezas são palavras que podem ter estado presentes durante esta quase uma década para o atleta. Para os pesquisadores que se detêm nesta temática, o exemplo do jogador cubano-brasileiro é uma boa oportunidade para discussão de como o guarda-chuva da nacionalidade ganha contornos de restrição e impedimento em um esporte mundialmente praticado, e que é jogado em quadras, areias e recentemente até mesmo na neve8. As temáticas aqui são as condições e desdobramentos de se estar apto para jogar por uma equipe nacional distinta de seu país de origem.

 

    Escrever sobre este jogador é compreender um pouco mais sobre como entidades legalmente constituídas durante décadas e que representam os esportes – Confederações e Federações –, atuam para legitimar e proteger a questão das mudanças de nacionalidade e as aplicam dentro de suas afiliadas. Dependendo do esporte e do momento, questões de elegibilidade se alteram e um exemplo que nos serve aqui é o caso das mudanças que foram feitas pela FIFA para a elegibilidade de jogadores em equipes nacionais. A flexibilização de um atleta para poder ou não estar apto a atuar por outra equipe nacional pode levar em conta, por exemplo, se esta partida foi um amistoso ou um jogo oficial. (Ribeiro et al., 2017)

 

    Tempo de residência (02 anos) e obtenção de nacionalidade no país o qual solicita mudança de federação são duas primeiras condições que fazem com que os atletas precisem ter demonstrado tempo de permanência e interesse na naturalização em terras estrangeiras. Dois anos. Um tempo – arbitrário – que, a qualquer momento pode ser modificado, conforme os entendimentos da entidade máxima que cuida deste esporte.

 

    No caso de Leal foram quase três anos (34 meses) entre sua chegada ao Brasil e a concessão da nacionalidade brasileira, por naturalização, conforme escrevemos na seção destinada à trajetória do atleta.

 

    A questão sobre a federação de origem ter poder de veto em relação à movimentação dos atletas também precisa ser objeto de atenção. Ao colocar como condição a anuência da federação que o atleta está inscrito para que a transferência seja realizada, a FIVB dá um importante poder decisório aos dirigentes locais. Assim, não basta que o atleta tenha um convite de outra federação, ele precisa que a atual entidade o deixe ser desfiliado, dando encaminhamento para uma nova movimentação. No caso de um país como Cuba, ressalta-se que os atletas também estão à sorte das decisões do regime político que pode, de forma inequívoca, influenciar as decisões dos seus dirigentes esportivos. (Merguizo, & Conde, 2013b)

 

    Leal, assim como seus contemporâneos, pode ter sido beneficiado por um momento de abertura política do regime cubano, quase que um ato de boa vontade. Do ponto de vista do mercado de trabalho, das especificidades técnicas conquistadas por anos de dedicação e da livre movimentação para assinar contratos com diferentes empresas, estas restrições não fazem sentido. São mais um entrave na vida profissional de atletas de nível internacional que precisam aproveitar o tempo curto de ascensão e amadurecimento, somadas às redes de contato e as oportunidades que surgem com a movimentação das equipes ao redor do mundo (Tavares et al., 2019).

 

    Mas estamos tratando de equipes nacionais, onde a capacidade de atração, adesão e interesse são desdobramentos de uma complexa rede de interesses comerciais, midiáticos e de audiências. Nacionalismo e identidade são aqui fatores a serem considerados no espetáculo esportivo, em que a tensão entre atletas e federações se dá por uma série de impedimentos, onde o tempo conta a favor dos que exercem o controle político e econômico do esporte.

 

    Assim, Leal é mais um exemplo entre inúmeros no cenário de trabalho esportivo internacional a conquistar o direito de jogar por uma equipe diferente de seu país de origem. No Brasil, ele é o primeiro a ser incorporado a uma equipe nacional de voleibol, mesmo que sua assimilação cultural seja posta à prova repetidamente – disfarçada na peculiaridade do sotaque destacado pela mídia, e a reserva de mercado seja explicitamente discutida entre ex-atletas e atletas que desdenham da necessidade de um estrangeiro em uma equipe esportiva tão vitoriosa. A crítica não é dirigida às habilidades técnicas, à inteligência tática ou qualquer outra capacidade do jogador, mas ao fato de ser este um estrangeiro, e da seleção brasileira de voleibol “não [precisar] de estrangeiros”. (Barifouse, 2019)

 

    O Brasil, no vôlei, é centro e não periferia, quando pensamos nos pólos de atração econômica e política – isto para utilizarmos um vocabulário utilizado por Taylor (2006) nas questões entre interdependência entre as distintas geografias do desenvolvimento esportivo. A relação países pobres-ricos ou norte-sul não necessariamente se configura como igual neste esporte. Assim, do ponto de vista do voleibol, o Brasil é um país desenvolvido esportivamente. Isto significa dizer que temos um processo de seleção de talentos que funciona, um campeonato nacional que atrai a atenção da mídia e de patrocinadores, técnicos e equipes de apoio competentes, além de uma seleção nacional com resultados expressivos em competições internacionais. (Dangui, & Marchi Júnior, 2019)

 

    Leal cumpriu todas as condições impostas pela entidade máxima deste esporte para jogadores que solicitam a “mudança de origem de federação”. Assim, além das condições especificadas anteriormente, ele precisou cumprir mais um período de dois anos, exigidos para os atletas que já tenham jogado por alguma seleção nacional. (Fédération Internationale de Volleyball, 2020b)

 

    Este período de carência começa a contar a partir do aceite da Federação Internacional da entrega de toda a documentação.No caso de Leal, houve ainda um erro crasso sobre as datas de elegibilidade, o que, sem dúvida, trouxe transtornos para o atleta. Quanto a esta confusão de datas, a FIVB se pronunciou desta forma:

    A FIVB deseja esclarecer que devido a um erro administrativo, foi afirmado erroneamente que o jogador de voleibol do Cruzeiro, o Sr. Yoandy Leal Hidalgo, poderia representar o Brasil a partir de 3 de março de 2018.

Na realidade, o Sr. Yoandy Leal Hidalgo não poderá representar o Brasil - em competições internacionais (incluindo jogos não competitivos) - até 29 de abril de 2019, de acordo com o Artigo 5.5.2 do Regulamento Esportivo da FIVB, que estabelece que:

 

    “No entanto, se o jogador jogou anteriormente para outra equipe nacional, ele será elegível para jogar para uma equipe nacional da nova Federação somente após dois (2) anos consecutivos. O período de dois anos começa a partir do dia em que o FIVB recebe o arquivo de inscrição completo, contendo todos os documentos necessários9”.

 

    Após a apresentação de um pedido incompleto em 3 de março de 2016, a Federação de Origem do Sr. Leal, Cuba, apresentou um pedido completo em 30 de abril de 2017. Isso foi aprovado formalmente pelo Comitê Executivo da FIVB durante sua reunião em Marraquexe em 4 de maio de 2017.

 

    O período de dois anos para o Sr. Leal começou em 30 de abril de 2017 e terminará em 29 de abril de 2019. Ele só estará disponível para a seleção brasileira a partir de 30 de abril de 2019.

 

    A FIVB oferece suas sinceras desculpas ao CBV e ao Sr. Leal por este erro administrativo e por qualquer inconveniente causado.

    Um ano de diferença impedindo que Leal fosse convocado. Assim, entre confusões de datas, formulários incompletos, reuniões e “erros administrativos” conforme explicita a carta da FIVB, as vidas dos atletas seguem sob forte aparato burocrático.

 

Figura 2.Cópia do formulário incompleto enviado pela Federação cubana de voleibol à FIVB

Figura 2.Cópia do formulário incompleto enviado pela Federação cubana de voleibol à FIVB10

 

    As restrições sobre legibilidade no mercado esportivo de seleções nacionais são uma forma de proteção de mercado, atingindo de forma inequívoca os atletas (Silva, Ribeiro, & Da Costa, 2013). Mais: os técnicos destas mesmas equipes nacionais não passam por este mesmo tipo de restrição. Não raro, estes profissionais atuam em diferentes selecionados durante sua carreira, trazendo junto consigo suas equipes de apoio, onde estão incluídos, muitas vezes,preparadores físicos, médicos, nutricionistas, entre outros profissionais que normalmente são do mesmo país de origem destes treinadores. (Nascimento, Ribeiro & Pereira, 2019)

 

    Outra condição que precisa ser explicitada é o valor de mais de R$60.000,00 para pagamento como parte da solicitação de mudança de federação. O documento não especifica quem paga este valor, mas alguém precisa fazê-lo. Inferimos que para atletas que alcançaram nível internacional – e atuam nas mais importantes ligas do esporte –, este valor não seja um impedimento na solicitação. Mas 15.000 dólares é um valor razoável e precisa ser posto como mais um obstáculo para a obtenção da permissão de troca de federação, sobretudo quando há de se pensar que, de fato, há um hiato temporal entre a solicitação, a aprovação e, mais distante ainda, uma convocação para seleção nacional.

 

    O documento solicita também que as duas federações envolvidas concordem com a solicitação do atleta. A que possivelmente irá recebê-lo com esta nova nacionalidade deve, ao menos, ter como objetivo aproveitá-lo em sua seleção nacional. Caso contrário, não consentiria em recebê-lo como atleta nesta condição. A vontade do atleta, portanto, é secundária no jogo de forças entre federações nacionais e a entidade máxima que controla este esporte. Sem a liberação da federação ao qual é filiado, e sem a demonstração de interesse da federação ao qual solicita ingresso, nenhuma movimentação burocrática e financeira estaria sendo realizada.

 

    A Federação Internacional de Vôlei também exige que a mudança aconteça apenas uma vez, sendo terminantemente proibida a possibilidade de uma nova solicitação para uma terceira afiliada. Também é proibido que o atleta retorne à federação de origem, ou seja, feita a solicitação, o atleta não poderá jogar mais pela federação de origem. Do ponto de vista da relação de forças entre Federação Internacional, Federações Nacionais e Atletas, os únicos que têm algo a perder são os últimos.

 

    No caso de atletas que nunca atuaram por seleções nacionais ou alcançaram 35 anos de idade (homens) e 32 anos (mulheres), o regulamento é mais benevolente. A seção “Casos Especiais” permite uma flexibilização nas condições acima descritas, demonstrando que os interesses políticos e econômicos estão no período de vida mais produtivo dos atletas, bem como naqueles que já alcançaram excelência esportiva suficiente para pertencer a equipes nacionais.

 

Conclusões 

 

    Estudar o périplo do jogador – e tê-lo como objeto de estudo –, é mostrar as restrições que jogadores, e só eles, estão submetidos. Em última instância, estudar atletas como Leal é uma oportunidade de compreensão sobre o funcionamento do mercado de trabalho internacional de jogadores de nível de seleções nacionais.

 

    Como escrevemos anteriormente, o voleibol no Brasil é de elevado nível técnico. Assim, é considerado pólo de atração de vários jogadores estrangeiros, que aqui chegam e utilizam-se do campeonato mais famoso, a Superliga, para se aperfeiçoarem como jogadores, mesmo que existam restrições às suas presenças em equipes, quando o ranqueamento dos atletas é imposto pela entidade máxima deste esporte no Brasil. (Pontes et al., 2018)

 

    O tempo de carreira profissional de um atleta é curto, se comparado a outras profissões. Assim, atletas têm de estar aptos para exercer, conquistar e capitalizar em um breve período – 20 anos de carreira, quando muito –, agarrando as oportunidades que, em torno dos trinta e cinco anos de idade tendem a se tornar escassas. E a própria flexibilização da elegibilidade aos 35 anos de idade para atletas masculinos e 32 anos para as do feminino, como analisamos em nossa pesquisa, demonstram que ao chegarem a esta idade os jogadores e jogadoras tendem a ser menos importantes em equipes.

 

    Inferimos através das falas de Yoandy Leal que o processo de naturalização fez emergir os sentimentos de pertencimento e identidade cultural e social que o atleta possui com o Brasil. Indubitavelmente essas construções influenciaram e foram influenciadas por símbolos socioculturais brasileiros e estão demarcadas pelo processo de maturidade profissional e pessoal que Leal percorreu durante os anos que atuou no Brasil. O orgulho apresentando em seu discurso sobre a conquista da vaga olímpica com o selecionado nacional também aponta para as raízes criadas com sua nova nação.

 

    Desde sua deserção da seleção nacional cubana, passando por sua chegada em nosso país – até que este obtivesse o aval de poder ser inscrito como jogador da seleção brasileira de voleibol –, foram cerca de longos nove anos, tempo suficiente para que o atleta não tivesse alcançado o direito de vestir a camisa da seleção de voleibol do Brasil.Sendo assim e, por fim, questionamos: quantos “Leais” se perdem e/ou já se perderam por esses caminhos?

 

Notas 

  1. A fala completa é: “Alguns jogadores gostam, outros não (sobre sua presença na seleção). Isso é normal. Quero falar para aquela pessoa que não goste do fato de eu jogar na seleção que eu vou estar lá para trabalhar. Vou jogar sério, defender a bandeira igual a eles. Vou ser um brasileiro a mais”. (Rodrigues & Amaral, 2017, p. 1, grifo nosso)

  2. Este fator histórico inclusive é fundamental para nortear a discussão, haja vista que muitas frentes de resistência irrompem ao processo de naturalização de Leal ao voleibol brasileiro. Embora seja interessante discutir até que ponto a composição das seleções nacionais são modificadas em função dos aspectos evolutivos e modernizantes do esporte em um mundo globalizado-capitalista, que gira fortemente à luz dos preceitos de mercado e capital, esse não será objeto de nossa análise, sendo uma sugestão para possíveis futuros estudos.

  3. O documento ao qual se referem os artigos que oferecem aos jogadores as possibilidades de se habilitarem a jogar por outros países estão assim escritos, respectivamente:“Elegibility to play for a national team: any person holding the nationality of a country, whether acquired at birth or later (by application or any other means), is eligible to play for the national team of the National Federation of the same country, provided that said National Federation is his Federation of Origin and that the conditions set out in these Regulations are fulfilled. Transfer procedure: “An International Transfer Certificate system (hereinafter "ITC system") is in place on the FIVB website and is only accessible to the FIVB, Confederations, National Federations, Clubs and Players, through a password provided by the FIVB”. CF: http://www.fivb.org/EN/fivb/Document/Legal/FIVB_Sports_Regulations_2018_20180504.pdf. Acesso em: 28 maio 20.

  4. Para referência de valores, 15.000 Francos Suíços significam, em nossa moeda, cerca de R$ 62.049,00. Cf. https://economia.uol.com.br/cotacoes/cambio/franco-suico-suica. Cotação realizada em 18 dez 19.

  5. Apenas no final de 2013 o Governo da ilha caribenha flexibilizou as regras para atletas que queriam deixar Cuba, fazendo com que este pudessem atuar em outras equipes esportivas mundo à fora sem ter de cumprir a quarentena de dois anos. (Merguizo, & Conde, 2013a)

  6. Não há muito detalhes declarados por Leal, porém, atentos a Soto-Lagos et al. (2020, p. 11), é possível sugerir a existencia de fenómenos que atuam para “[…] invisibilizar precariedades y desigualdades en la vida de los y las deportistas y en el acceso a los bienes necesarios para desarrollar su labor de forma digna […] que validan la precariedad, la desigualdad y las injusticias”.

  7. Leal postou esta foto em sua página no Instagram após a conquista do título da Copa do Mundo de Seleções da FIBV em 2019. O atleta também escreveu junto à foto: “Sou brasileiro de coração, Brasil é o país que escolhi e não me arrependo!”. (Loio, 2019)

  8. A modalidade está sob guarda-chuva da FIVB, que ainda passa por adaptações e regulamentações. Provavelmente, em poucos anos, atletas da quadra e areia migrarão para este novo tipo de piso, sobretudo se houver apoio das federações, reconhecimento financeiro e destaque midiático. O potencial turístico da nova modalidade também é ponto a ser considerado, e cidades como Bariloche são sedes deste tipo de festival esportivo. (Fédération Internationale de Volleyball, 2020a)

  9. Informação disponibilizada por Henrique (2017).

  10. Disponibilizado por Henrique (2017).

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