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São Paulo: a cidade e o futebol

   
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Brasil)
 
 
Gilmar Mascarenhas de Jesus
adrigil@marlin.com.br 
 

 

 

 


Trabajo presentado en las Jornadas "Las Ciudades y el Fútbol" . Organizado por el Instituto Histórico de la Ciudad de Buenos Aires y el Area Interdisciplinaria de Estudios del Deporte, Facultad de Filosofía y Letras, UBA. Buenos Aires, agosto de 2001
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 46 - Marzo de 2002

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Introdução

    Na condição de elemento central na cultura brasileira, o futebol tem sido capaz de gerar objetos marcantes na paisagem urbana. São os estádios, dotados de notável centralidade funcional e simbólica. Também se espacializa na proliferação de campos de futebol e na intensa apropriação de espaços públicos (ruas, praças, parques, praias) para a prática informal deste esporte. Nas grandes cidades brasileiras, o calendário futebolístico contribui na demarcação dos tempos e dos horizontes da vida cotidiana (MASCARENHAS, 1998). Não obstante tamanha expressão espacial, o futebol não tem figurado nos estudos urbanos empreendidos pela geografia brasileira1 . Tampouco figura com satisfatória atenção em outras disciplinas que estudam a sociedade:

"Nas Ciências Sociais no Brasil, até recentemente, muito pouco se refletiu a respeito das dimensões sociológicas, culturais e políticas de uma série de fenômenos (...) Assim é que as questões que podem ser sugeridas por análises do enorme espectro de representações e relações sociais colocadas em operação pelo futebol no Brasil, permanecem estranhas na academia até, pelo menos, a década de 70, limitando-se a algumas raras incursões isoladas ou a compor lateralmente análises mais amplas que buscavam interpretações da realidade brasileira" (GUEDES, 1998:102).

    Em síntese, cidade e futebol no Brasil perfazem um pífio encontro no plano intelectual: um jogo de 0x0, pobre em lances capitais, mas que promete "esquentar" nos próximos momentos. O panorama geral ainda é incipiente, embora promissor2 .

    Nosso objetivo neste trabalho é verificar até que ponto o futebol enquanto fato social reflete características da cidade que o abriga. Trilhando o caminho da geografia urbana, tentaremos demonstrar como a cidade de São Paulo se antecipou a todas as demais no Brasil na adoção organizada do futebol, tanto na prática elitista quanto na sua posterior popularização. Pretendemos situar a evolução do futebol em relação à dinâmica urbana de São Paulo, abrangendo aproximadamente o longo período que estende entre 1890 e 1960. Para tal. o texto se divide em dois segmentos: no primeiro, tratamos do pioneirismo paulistano no contexto futebolístico nacional; no segundo, lidamos com a popularização do futebol na cidade.


Cidade pioneira no futebol brasileiro

    Praticamente não há dúvidas de que o futebol foi introduzido na Argentina através de Buenos Aires; no Uruguai, por Montevideo; no Chile, por Valparaíso; na Itália, por Genoa e na França pelo porto normando de Le Havre3 . No Brasil, a imensidão territorial e a existência de numerosos portos dificulta localizar um único ponto no mapa para este fim4 . Embora nossa investigação aponte para a pluralidade de "portas de entrada" do futebol no Brasil, e que se reconheça a impossibilidade de localizar precisamente o momento e lugar de nossa primeira experiência futebolística, São Paulo pode resgatar seu velho emblema de "locomotiva nacional" e tomar para si o orgulho de ser o berço de tal esporte no Brasil. Foi sem dúvida a primeira cidade a organizar o futebol e vê-lo disseminado pelas ruas.

    Nenhuma cidade brasileira apresenta tamanha precocidade na introdução do futebol como São Paulo5 . Podemos afirmar que já no final do século passado tal esporte era praticado em clubes, empresas (capital inglês) e estabelecimentos escolares; que em 1896 o velódromo da família Prado, na Consolação, é reformado para abrigar partidas de futebol6 ; que em 1902 a cidade organiza o primeiro campeonato de futebol do país. Segundo Mazzoni (1968), a primeira partida de futebol realizada no Brasil dentro das regras oficialmente estabelecidas na Inglaterra em 1863, ocorreu na Várzea do Carmo, entre as equipes inglesas São Paulo Railway e The São Paulo Gaz, em 14 de abril de 1895. Complementando este elenco de pioneirismo paulistano, resta frisar que o primeiro clube de futebol formado essencialmente por brasileiros foi o Mackenzie Col lege, criado em 1898. A título de curiosidade, outros clubes "nacionais" foram criados em São Paulo na virada do século, mas nenhum sobreviveu, o que qualifica o Sport Club Rio Grande (RS), fundado em 1900, como mais antigo clube brasileiro de futebol em atividade. Mas não enquanto "berço do futebol" como se afirma não raramente na literatura esportiva do Rio Grande do Sul (Mascarenhas, 2001).

    No ano de 1905, o futebol era ainda desconhecido para a ampla maioria dos brasileiros, e bem poucas cidades no Brasil o praticavam com alguma regularidade. Em São Paulo, porém, ele já atraía grande interesse e até mesmo suscitava paixões que extrapolavam o âmbito esportivo. Rosenfeld (1993:79-80) cita o discurso fervoroso de Monteiro Lobato naquele ano, após assistir a concorridos duelos entre paulistanos e ingleses:

"Essa luta tinha para a população de São Paulo um significado moral dez vezes maior do que a eleição para um presidente do Estado (...) O último goal do Paulistano provocou a maior tempestade de aplausos jamais conhecida em São Paulo (...) É desta espécie de homens que precisamos. Menos doutores, menos parasitas, menos bajuladores, e mais struggle-for-life. Mais homens, mais nervos, mais corpúsculos vermelhos, para que um Camilo Castelo Branco não possa repetir que ele tem sangue corrompido nas veias e farinha de mandioca nos ossos".

    Neste mesmo ano de 1905, o Fluminense FC havia apenas deixado há pouco de ser o único clube carioca dedicado regularmente ao futebol. Em Porto Alegre, apenas Grêmio e Fussball encontravam-se a cada seis meses para um match. Somente Salvador, em todo o Brasil, possuía tal qual São Paulo um campeonato anual de futebol, iniciado naquele mesmo ano, entretanto sob a direção dos ingleses e disputado improvisadamente numa praça7 , enquanto os paulistanos já contavam desde o início com um equipamento específico como o velódromo da Consolação. Indagar sobre as possíveis razões que levaram São Paulo a tomar a dianteira neste processo é o nosso objetivo principal neste momento.

    Podemos assim lançar algumas hipóteses preliminares.

    São Paulo vivia um momento decisivo de explosão de crescimento urbano, quase quadruplicando sua população na última década do século XIX, sob o impulso fulminante da expansão de sua hinterlândia baseada no binômio ferrovia-cafeicultura (SINGER, 1974:53). A "metrópole do café" (AZEVEDO, 1958; BRUNO, 1984) vive então uma febre de investimentos estrangeiros, e são muitos os estabelecimentos e colégios ingleses na cidade. Os ingleses criam seus clubes e praticam esportes, dentre eles aquele então na moda em sua terra natal: o futebol. O mais importante é que o fazem numa cidade que vivencia o frenesi da modernidade, o que significa dizer que São Paulo está aberta às inovações, está pronta para modernizar-se. Em outras palavras, nesta cidade, talvez mais do que em qualquer outra no Brasil, os ing leses estavam semeando o futebol em solo muito fértil8 .

    Podemos sugerir duas hipóteses para tentar explicar a razão pela qual São Paulo, na adoção do futebol, antecede o Rio de Janeiro (então a capital federal, de condição portuária, maior centro industrial e demográfico do país). Primeiramente, os cariocas já possuíam um esporte de relativa popularidade, o remo, que o futebol somente conseguiu destronar por volta de 1910 (Melo, 1999). Por outro, devemos considerar a modernidade paulistana. Se o Rio de Janeiro também se industrializa rapidamente, sua modernização se faz a partir de uma materialidade fundada em pesada herança colonial, expressa por exemplo no urbanismo, no ambiente dos títulos nobiliárquicos e no numeroso contingente de excluídos (a maioria ex-escravos), daí possivelmente oferecer maior resistência a determinadas inovações. Em S ão Paulo, o surto de crescimento se realiza sobre um território que era, em 1872, um pequeno núcleo "caipira" (o velho "burgo dos estudantes") de 31 mil habitantes, pronto para ser inteiramente reconstruído e ampliado sob as forças hegemônicas da nova ordem industrial. Acreditamos que esta cidade, embrião da metrópole frenética de que nos fala Sevcenko (1992), era naquele momento a que melhores condições possuía para assimilar inovações, e dentre elas o futebol.

    Comparando as informações contidas em Sevcenko (1992:58) para o ano de 1919, com as que encontramos para o restante do Brasil, podemos ainda supor que São Paulo (acompanhada muito de perto pelo Rio de Janeiro) foi a primeira cidade a atrair grandes multidões aos estádios. Para finalizar este elenco de méritos paulistanos, afirmamos que com a inauguração do Estádio Municipal do Pacaembu em 1938, estava nascendo uma das principais tradições políticas do futebol brasileiro: a construção generalizada de estádios com recursos públicos9 .

    Até aqui lidamos com o chamado "futebol oficial". Resta observar como se difundiu o circuito informal desta atividade, no anonimato dos terrenos baldios da cidade.


O berço do futebol popular

    Vimos que em 1902 os paulistas organizam o primeiro campeonato de futebol no Brasil. No mesmo ano, surgem os primeiros campos de várzea, que logo se espalham pelos bairros operários (ANTUNES, 1992:19); e já em 1908/1910 a várzea paulistana congregava vários e concorridos campeonatos, de forma que São Paulo não é apenas pioneira nacional no futebol "oficial", mas também (e sobretudo) no "futebol popular". É nesta cidade que, não por acaso, surge em 1910 aquele que, dentre os grandes clubes do futebol brasileiro, foi o primeiro a se formar a partir de uma base popular: O Sport Clube Corinthians Paulista (Negreiros, 1992).

    Inicialmente, o futebol varzeano era tomado como desordem, encontro de vadios a ser disciplinado ou mesmo perseguido pela polícia. A imprensa de época estabelece uma clara distinção entre o futebol das elites, elegante e bem organizado, e o futebol varzeano, como se fossem modalidades e práticas sociais completamente diferentes e até mesmo opostas10 . O próprio Corinthians encontrou grande resistência para ingressar na liga oficial da cidade. Por volta de 1920, entretanto, a atividade já havia se disseminado a tal ponto que não havia como reprimi-la.

    A difusão do futebol enquanto prática popular de entretenimento se insere na própria formação da classe operária paulistana, como elemento de sua cultura. Certamente, o grande número de imigrantes e operários contribuiu para a rápida popularização do futebol em São Paulo. Nas palavras da estudiosa Fátima Antunes (1998:92):

Da Várzea do Carmo, os campos se alastraram por toda a cidade, sobretudo nos bairros operários, situados ao longo das estradas de ferro (...) A cidade vivia intensamente a experiência do trabalho fabril e passava a conhecer a necessidade imperativa de sociabilidade e lazer, sobretudo aos domingos. Os clubes de várzea mantinham equipes de futebol e promoviam atividades sociais (...) Além destes, tornavam-se comuns os clubes formados a partir de empresas, fábricas ou grupos profissionais.

    Estudo realizado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico (COONDEPHAT, 1994) sugere que a partir da década de 1930 os bairros da cidade se relacionavam sobretudo através do futebol. Resgatando por via da história oral o futebol varzeano em um bairro popular (e fabril) como a Mooca, Patrícia Sofia (1998) colheu depoimentos que garantem a existência de dezenas de campos de futebol somente naquele bairro paulistano por volta de 1950, e todos muito utilizados. Parece ter sido a primeira cidade brasileira a se aproximar da impressionante febre futebolística que se espraiou no início do século em Buenos Aires (Frydenberg, 1999) e Montevideo (Buzzeti, 1969), cidades pioneiras no futebol sul-americano, e em menor grau em Santiago do Chile (Santa Cruz, 1996).

    Este pujante "futebol informal" despertou interesse no geógrafo francês Pierre Monbeig, na década de 1940, e bem reflete a preocupação das elites e seu discurso da ordem em relação aos numerosos campos de várzea. Referindo-se, em tom de lamentação, ao mato que cresce rápido nos terrenos baldios ("à espera dos urbanistas"), especialmente nas várzeas da capital paulista, que "resistem ao loteamento", afirma Monbeig (1953:66) que tais zonas são "sobretudo paraíso de cães vadios (...) refúgio para cabanas de miseráveis, terreno do futebol improvisado para moleques (...) verdadeiras zonas entre os bairros residenciais". Mas ressalta sua fé no progresso implacável de São Paulo, afirmando a seguir que "tudo aquilo mingua ano após ano. No Pacaembu, a municipalidade construiu um estádio de linh as tão imponentes quanto harmoniosas". Fica evidenciado que para o autor o futebol comparece na paisagem urbana de forma ambígua. Por um lado, como prática informal de entretenimento ele representa o atraso e a pobreza persistentes. Por outro, o estádio é a maravilhosa obra coletiva que encarna plenamente a modernidade paulistana11 .

    Em 1954, o mesmo Monbeig já não vive mais no Brasil, mas publica um artigo em homenagem aos quatrocentos anos da cidade de São Paulo. O tom é ufanista, incansável no registro do triunfo da técnica e do trabalho coletivo sobre as várzeas, "que deixaram de ser manchas brancas no mapa".

    Exalta a rápida expansão urbana, a edificação de arranha-céus e de extensa malha viária, a aglomeração da indústria e do comércio, e não ignora o ambiente esportivo: esta cidade é o "grande teatro dos esportes"(MONBEIG, 1954:147). Mas a modernização é sempre incompleta, e neste sentido Monbeig lamenta a persistência do "atraso", nele envolvendo mais uma vez o pequeno futebol popular. Entretanto, o autor reforça a esperança de superação definitiva dest e cenário, ao afirmar que "as obras de retificação do Tietê contribuem para o seu saneamento e em breve deixarão de ser o refúgio de uma população um tanto à margem dos quadros normais: já não são o domínio exclusivo dos moleques fanáticos por futebol ou dos oleiros.."(MONBEIG, 1954:149, grifo nosso). A força das palavras dispensa comentários.


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