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Educação Física disciplinar e a disciplina
Educação Física: um ensaio.

Mestranda em Educação na
Universidade do Estado do Estado do Rio de Janeiro
(Brasil)

Soyane de Azevedo Vargas
rsjbomfim@ig.com.br

    Resumo
    A disciplina educação física sofreu a influência de algumas tendências que fizeram sua trajetória histórica até os dias de hoje. As ideologias subjacentes em tais tendências influenciam forte e diretamente a relação que se trava entre educador e educando. Partindo do referencial teórico kantiano, este ensaio tenta relacionar a influência das idéias iluministas deste filósofo na abordagem da questão disciplinar, com o tratamento acrítico por parte dos professores dessa área de atuação que reproduziu e, na interface teoria e prática, ainda reproduz na escola a concepção militarista de disciplinar o corpo para o doutrinamento de uma nação. O objetivo é repensar o valor da disciplina como parte constitutiva de uma necessidade para a evolução do ser humano. Portanto, não questiona o valor da auto-disciplina em si, mas a forma que esta vem sendo imposta ao sujeito, especialmente nas aulas de educação física.

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 27 - Noviembre de 2000

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    Segundo Imannuel Kant (1992), o homem quando nasce não traz consigo os limites necessários para se viver em sociedade, sendo estes adquiridos por meio da educação. Apesar de ser selvagem, de natureza rude como os outros animais, ele precisa do outro, que acaba por impor modos de conduta, conduzindo-o parcialmente ao seu tipo de formação. Porque sobretudo, o homem é criação. Ele ao nascer precisa de um projeto de conduta,1 no entanto o homem é livre, as formas de educá-lo contribuem, mas não definem por completo seu destino.

    A função emancipadora da educação é a de não definir nada a priori, mas de elucidar o poder de criação de cada um. Ela deve favorecer a formação do habitus, no sentido de prática deliberada, não para o doutrinamento mas para a reflexão e o questionamento.2 Neste contexto é que as formas de emprego da disciplina, especialmente na escola, em geral, e na educação física, em particular, precisa ser questionada.

    O iluminismo de Imannuel Kant (op. cit.) nos conduz a refletir sobre a importância da disciplina na formação do homem. O presente trabalho pretende, sob o referencial teórico kantiano, tecer algumas considerações sobre a influência desse pensamento em relação a idéia dos limites no processo educacional, especialmente no que tange a disciplina educação física 'escolar'.3 Especificamente, será abordada a questão da disciplina em seu paradoxo - sua contribuição e seu prejuízo - como um meio de atingir objetivos associados com a formação e a instrução, não obstante, é necessário questionar o uso da disciplina como meio de doutrinar e alienar o indivíduo; de sua importância para a autonomia, mas de como pode ser usada como instrumento de manipulação e reprodutora da ideologia dominante e, de seu valor para o bom uso das possibilidades corporais e, ao mesmo tempo, do seu poder de condicionamento aos padrões preestabelecidos. Enfim, tentando explicitar melhor o pensamento kantiano de forma a contextualizar a importância da disciplina, mas sobretudo se contrapor às condutas autoritárias e arbitrárias.

    Segundo Vitor M. de Oliveira (1994), é importante se sobrepor a uma pedagogia autoritária, ou seja, "a necessária autoridade pedagógica tem de ser desvinculada de um objeto autoritarismo. [...] e a disciplina não se deve confundir com educação para a subalternidade" (p. 187).

    Para Gonçalves (apud AZEVEDO, 1996), práticas educacionais que super valorizam as operações cognitivas e bloqueiam as relações sensoriais servem para além de disciplinar o corpo, como também os sentidos, as idéias, a memória a ele associadas.

    Imannuel Kant (op. cit.) afirma que os homens livres e bem educados irão naturalmente convergir para o que é bom. A liberdade da qual ele trata não é a liberdade inerente ao homem, liberto de qualquer tipo de lei, mas sim a capacidade de se auto - limitar e do uso das leis naturais e sociais. A educação é a formação a que o indivíduo é submetido, seja ela na família, na escola ou na sociedade. A liberdade e a educação devem desenvolver a ação deliberada, que pode levar o sujeito a exercer a deliberação moral, que é o caminho em direção a sua autonomia.

    Todavia, o estágio de autonomia é precedido por outros estágios para a ação deliberada do indivíduo. Em Imannuel Kant (ibid.) encontramos diferentes formulações para a mesma abordagem: a idéia dos limites, conseguida por meio da disciplina e da educação das habilidades; a formação, que diz respeito a prudência e, a instrução, referente a questão da moralidade.


A Disciplina

    Para que o homem consiga exercer plenamente a sua liberdade, deliberadamente, são necessárias bases sólidas que a sustente. O sentido da disciplina na educação é a de fornecer subsídios que ratificam a capacidade de criação, para uma possível autonomia do ser humano. Ela trataria do projeto de conduta em sua contínua formação, já que o homem não possui características inatas para isto. Assim sendo, a disciplina atua de maneira negativa no que diz respeito a importância dos limites, para que o mesmo se submeta às leis.

    A advertência de Imannuel Kant (ibid.) ( procede: cuidar para que o infante não faça uso nocivo de suas forças. A disciplina deve, sim, estar presente desde o nascimento no cuidado com a criança, transformando sua animalidade em humanidade. Ela é parte negativa da educação, juntamente com a instrução constituem parte da formação do homem, isto é, da educação.

    Segundo esse autor,4 ( "O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação" (ibid. p. 15). Em contrapartida, o próprio Imannuel Kant (ibid.) admite que se a educação pode ser pelo ensinamento de alguma coisa, ela não permite definir as disposições naturais, ou seja, o que está por vir "Com a educação presente, o homem não atinge plenamente a finalidade de sua existência" (ibid., p. 17). Assim sendo, ele tem a preocupação de não ressaltar apenas o treinamento (disciplina e instrução), este apenas condicionaria o sujeito, ao que Rosseau denomina a má autoridade da disciplina, que conduz à cega submissão ou à rebelião permanente mas nunca à liberdade (CANIVEZ, 1990). É preciso educar para a deliberação, pois, a instrução, a prudência e a moral devem caminhar em direção aos estágios superiores,5 como, por exemplo, a reflexão para saber bem decidir sobre sua própria vida e da comunidade, para a ação deliberada, para o ato político, para o bom uso de sua liberdade e, para a busca de sua autonomia.

    A educação deve favorecer o aperfeiçoamento das gerações futuras. Neste caso, a falta de disciplina e de instrução tornam os homens maus educadores. Isto é ainda um mal pior que a falta de cultura, porque esta pode ser remediada, enquanto que fazer com que o homem modifique seus maus hábitos, quando já cristalizados, é quase impossível. (KANT, op. cit.)

"A educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está melhor aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas disposições naturais na justa proporção e da conformidade com a finalidade daquelas e, assim, guie toda a humana espécie a seu destino" (ibid. p. 19).

    Para Antonio Gramsci (1982 apud OLIVEIRA, op. cit.) a toda geração cabe educar a nova geração, em virtude da superação de animalidade correspondente a natureza humana, como aborda Imannuel Kant (op. cit.) sobre o projeto de conduta. Sendo assim, a criança não deve ser exposta à caoticidade do ambiente para que a vida lhe ensine, é necessário uma intervenção pedagógica: a educação.

    No entanto, a utilização de meios disciplinares de comportamento humano podem fazer emergir situações adversas. A seguir serão demonstrados dois diferentes valores para a auto-disciplina: o homem, de natureza maleável, estaria por saber bem decidir o que preferir e o que quiser, "nosso trabalho no mundo é criar, e a maior criação é moldar a história de nossas próprias vidas" (SENNET, 1999 p. 121), aqui a concepção de homo faber se contrapõe ao dogma cristão; em contrapartida, vemos em Santo Agostinho ( apud SENNET, op. cit.) que qualquer tentativa de criação pessoal (como pudesse ser controlada totalmente) era caracterizada como inferior, para ele a virtude estava em disciplinar o uso do tempo e o pecado estava em projetar a experiência própria, "tira as mãos de ti mesmo, tente construir-te a ti e construirás uma ruína" (ibid.). A auto-disciplina está fundamentada em ambos os conceitos, sendo que um milita em favor da auto-disciplina para a autonomia. Enquanto que o outro parece estar mais próximo da modelação, por exigir uma auto-disciplina em função de guiar-se por figuras de vida exemplar, no caso do cristianismo o exemplo de Jesus.

    Outro ponto importante, a condição de doutrinamento do corpo que a disciplina por si só já fornece, faz conter um ´quantum de energia livre' 6 que reflete na cultura corporal das pessoas. Isto requer o bloqueio de uma das possibilidades de conduta humana, que é a criatividade - como um desdobramento da capacidade de criação - que as atividades lúdicas, por exemplo, permitem fluir. Esse bloqueio transforma o movimento corporal em atos mecânicos, fragmentados, alienantes e estereotipados , pois geralmente disciplinam partes de um todo, estabelecendo formas de comportamentos, de posturas, de atitudes, enfim, fazendo com que a pessoa atue de forma mecânica e condicionada, conforme o interesse de quem detém o poder, dominadores em relação aos dominados.

    O problema do doutrinamento está também na incorporação pessoal e nas representações sociais que estas medidas atingem, ou seja, de como os saberes de quem domina penetram no corpo dos dominados numa relação de poder, construindo significados que não são próprios, mas que estão à mercê de pessoas que pretendem a manipulação da maioria,

"a sujeição do corpo pelo poder não é obtida apenas por instrumentos violentos e ideológicos, podendo ser exercida técnica e detalhadamente, utilizando-se de táticas que controlam e esquadrinham ao máximo o espaço, o tempo, os movimentos, os gestos e os discursos dos indivíduos" (PAULA, Mimeo).

    No Brasil, para alguns autores (COSTA, 1983; OLIVEIRA, 1994), o adestramento e a disciplina corporal foram incorporadas, também, com o objetivo de subsidiar uma política higienista, que visava a construção de corpos que representasse o traço de uma nova classe. Diferente do indivíduo colonial, pensou-se na formação de um povo mais 'saudável', em nome da ordem e do progresso. Baseadas na hegemonia dos médicos higienistas foram disseminadas algumas técnicas de controle social.

    Esse poder disciplinar, que tem como função o doutrinamento, serve para o adestramento dos indivíduos para melhor controlá-los. Instaurado com a efetivação do capitalismo visa a eficácia econômica dos corpos e diminui seu potencial político. Sendo conhecida por Foucault (apud PAULA, op. cit.) como sociedades disciplinares, que visa a construção de corpos adaptados e úteis ao sistema produtivo. (ibid.).

    Sem dúvida, uma das maneiras que legitimam essas relações de poder é o controle de corpo, por isso a imposição da disciplina nas possibilidades corporais deve ser para autonomia, não para a dominação.

    As reflexões de Bertolt Brecht (1967 apud OLIVEIRA, 1994) sobre as fronteiras da disciplina e do autoritarismo, nos traz uma importante contribuição no que diz respeito a utilização de meios disciplinares,

"onde existe opressão, a palavra disciplina deve ser substituída pela palavra obediência porque a disciplina também é possível sem o déspota e, consequentemente, tem o significado mais nobre que obediência" (ibid., p. 27 apud OLIVEIRA, op. cit., p. 94).


A educação física disciplinar e a disciplina educação física

    A proposta de uma educação física que discipline o indivíduo é para Kant (op. cit.) de grande relevância, pois consiste nos cuidados materiais prestados às crianças, como o ato de amamentar; proteções quanto ao tipo de movimentos que podem ser nocivos ao corpo e do incentivo daqueles que podem ajudar no seu desenvolvimento; da criação do habitus para não se cair na comodidade, na preguiça. A educação física é, para o corpo, o bom uso dos movimentos voluntários e dos órgãos do sentido.

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