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A via platina de introdução do
futebol no Rio Grande do Sul

Dep. Geografia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Gilmar Mascarenhas de Jesus
adrigil@marlin.com.br
(Brasil)

    O Rio Grande do Sul, estado situado no extremo sul do Brasil, na fronteira com Argentina e Uruguai, realizou em seu território com grande êxito a difusão espacial do futebol, entre 1900 e 1920. No contexto brasileiro,1 trata-se de um dos primeiros estados a adotar o futebol, possuindo ainda hoje o clube sobrevivente mais antigo do país, fundado em 1900. Mais que isso, o Rio Grande do Sul (RS) já realizava, em 1922, um campeonato que recobria espacialmente quase todo o estado, reunindo clubes provenientes de diversas cidades espalhadas pelo território estadual. Naquela época, a maioria dos campeonatos estaduais de futebol no Brasil se restringiam à capital dos estados e, no máximo, a seus arredores imediatos. O êxito da difusão do futebol local parece estar intimamente relacionado à influência platina, notadamente de Montevideo. Procuramos neste artigo mapear a "via platina" de introdução do futebol no RS, argumentando em torno de seu relevante papel neste processo.

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 26 - Octubre de 2000
Trabajo presentado en el IIIº Encuentro Deporte y Ciencias Sociales y
1as Jornadas Interdisciplinarias sobre Deporte. UBA - 13 al 15 de Octubre 2000

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Introdução

    A historiografia do futebol brasileiro apresenta imensas lacunas no que diz respeito ao processo de introdução e difusão espacial deste esporte. A escassa literatura acadêmica concentra suas atenções no eixo metropolitano Rio-São Paulo, alimentando um estado de ignorância acerca do passado histórico futebolístico na maior parte do imenso território brasileiro.

    O Rio Grande do Sul, doravante aqui mencionado pela sigla “RS”, estado situado no extremo sul do Brasil, realizou em seu território com grande êxito a difusão espacial do futebol, entre 1900 e 1920. No contexto brasileiro, trata-se de um dos primeiros estados a adotar e organizar a prática do futebol, possuindo ainda hoje o clube sobrevivente mais antigo do país, o Sport Clube Rio Grande, fundado em julho de 1900. Mais que isso, o Rio Grande do Sul (RS) já realizava, em 1922, um campeonato que recobria espacialmente quase todo o estado, reunindo clubes provenientes de diversas cidades espalhadas pelo território estadual. Nas primeiras décadas do século XX, as cidades da Campanha Gaúcha (a metade setentrional do RS, historicamente muito articulada com a região platina) dominavam o campeonato gaúcho. Vale destacar que naquela época, a maioria dos campeonatos estaduais de futebol no Brasil se restringiam à capital dos estados e, no máximo, a seus arredores imediatos. O êxito da difusão do futebol local está intimamente relacionado à influência platina, principalmente de Montevideo.

    Procuramos neste artigo apresentar a "via platina" de introdução do futebol no RS, argumentando em torno de seu relevante papel neste processo.

    Para verificar quando e de que forma (por quais “caminhos”) o futebol se introduz na vida social gaúcha (está embutida nesta interrogação a preocupação geográfica com contexto histórico-espacial), dividimos o presente artigo em três segmentos. No primeiro, demonstramos o quanto a formação territorial gaúcha está vinculada ao próspero eixo do Prata, muito mais que ao restante do Brasil, guardando por isto singularidade. A seguir, apresentamos o Prata como a região pioneira no futebol sul-americano. Por fim, reunindo os fatores apresentados nos dois primeiros segmentos, investimos em situações concretas que atestam a forte influência platina no processo de difusão do futebol no RS.


1. A Formação Territorial do RS e suas conexões com o Prata

“A extremidade meridional do território que hoje constitui o Brasil, permaneceu durante muito tempo fora de sua órbita. (...) Tratava-se de uma área deserta e que parecia sem grande interesse (...) um grande vácuo, portanto, separava as duas nações .“(Caio Prado Júnior, 1990:94).

    A historiografia acerca da complexa formação territorial gaúcha apresenta vários aspectos divergentes, mas não foge ao consenso básico de que se trata de um processo de integração tardia da região ao restante do Brasil colonial, desvinculada que estava esta dos interesses agro-mercantis da metrópole.2 A preia do gado selvagem em vastas planícies manteve tais espaços sob ocupação humana instável e rarefeita. Formou-se assim um modelo de organização espacial sob as mesmas determinações históricas do restante da região platina, este “espaço-em-construção” em expansão no século XVIII: atividade pastoril rudimentar, escassos núcleos urbanos e imensas estâncias, espaço disputado precariamente por duas metrópoles (Osório, 1995:112-113). Esta vinculação estreita com a região cada vez mais polarizada por Buenos Aires e Montevideo condicionará toda a vida de relações no território em pauta, afetando inclusive (e decisivamente) o futebol, conforme veremos mais adiante.

    Com o advento, em 1828, de fronteiras internacionais definitivas (Brasil-Uruguai) no interior de uma região de ampla mobilidade interna de mercadorias, a prática do contrabando tornou-se uma regra. Segundo Pesavento (1980:40-41), perturbações ocorridas no Prata permitiram que o gado gaúcho penetrasse em território uruguaio (desorganizado por conflitos com a Argentina) livre de impostos, de forma que em meados do século XIX as charqueadas da Campanha Gaúcha vivessem seu apogeu. E assim, as cidades de Rio Grande e Pelotas juntas começavam a sobrepujar a capital estadual Porto Alegre em população e dinamismo econômico. O fariam mais tarde também a partir do futebol.

    Com a expansão das ferrovias uruguaias até atingir a fronteira brasileira (década de 1890), e a precariedade da rede viária gaúcha, os pecuaristas da Campanha utilizam crescentemente o porto de Montevideo, fortalecendo ainda mais as relações com o Prata. Este aspecto será melhor desenvolvido no terceiro segmento. Por enquanto, e para concluir este breve segmento, é importante assinalar que, seguindo a posição majoritária na historiografia, falamos aqui em “fortes relações do RS com o Prata”. Na verdade, era o RS de então parte indissociável da realidade geográfica platina, e não algo externo com o que se estabelece relações. Quando foi criado o estado-nação uruguaio, em 1828, impôs-se uma fronteira dividindo um espaço que até então fora uniformizado cultural e economicamente: o Pampa sul-rio-grandense (aliás unidos politicamente entre 1820 e 1828) (Haesbaert, 1988). Souza (1995:130) considera artificial a fronteira internacional então criada, posto se tratar da pretensa separação de uma região homogênea, um campo indiviso: atividade pastoril extensiva, baixa densidade demográfica, latifúndios, os hábitos culturais, os trajes e mesmo o linguajar em comum de seus habitantes. Devemos portanto estudar o advento do futebol no RS sem jamais ignorar a “unidade platina”, que se manifestava nos mais diversos campos da vida social.


2. A Força do Futebol no Rio da Prata

    Na América do Sul, os interesses britânicos, apesar de territorialmente difusos, encontravam particular concentração no rico comércio platino. Por volta de 1890, a Argentina era a principal provedora de matéria-prima da Inglaterra, mantendo-a suprida de carnes, cereais e lã. A cidade de Buenos Aires, grande porto escoador e cabeça de ampla rede ferroviária, apresentava vertiginoso crescimento econômico e demográfico, alcançando a marca dos 950 mil hab. em 1904. O afluxo de migrantes era imenso: dos 600 mil habitantes existentes em 1895, metade era composta por italianos, e os estrangeiros ao todo somavam 3/4 da população portenha, conformando um ambiente urbano cosmopolita, de intensas trocas culturais. As novas elites (industriais e grandes comerciantes) adotam o ideário europeu “civilizador” em detrimento do arcaísmo caudilhesco.3 Trata-se de um cenário muito propício à adoção de inovações como o futebol.4

    Viviam na muito próspera capital argentina do final do século XIX nada menos que 40 mil ingleses, e a grande maioria dos primeiros clubes argentinos de futebol era formada no interior dos estabelecimentos de ensino para filhos de altos funcionários membros da colônia inglesa, como por exemplo o famoso clube “Alumni”, do Buenos Aires English High School (REY, 1948; SEBRELI, 1981:20; ARCHETTI, 1995:203; FRYDENBERG, 1996b). Até 1905, o inglês será o idioma oficial das atas da Argentinean Association Football League (CERUTTI, 1990). Os ingleses no Brasil, em muito menor número, fundaram clubes e colaboraram decisivamente na criação de algumas ligas, mas não chegaram a monopolizar o futebol por tanto tempo ou de forma tão contundente como no Prata, fato que traduz sua presença expressiva na região.5

    Contando com a rede ferroviária, logo o futebol vai espraiar-se para além da capital, atingindo La Plata (1887), Quilmes (1897) e Rosário (1889) (CERUTTI,1990:13). Neste sentido, na virada do século XIX para século XX o futebol começa a deixar de ser privilégio de ingleses e da elite local (ALABARCES e RODRIGUES, 1996:24; FRYDENBERG, 1996a). Em 1899 é criada uma “segunda divisão” no interior da liga para abrigar o volume crescente de novos clubes de futebol. Tal movimento coincide, segundo Frydenberg (1996b e 1996c), com outras importantes “novidades” na vida urbana: a formação dos “modernos setores populares” (o proletariado) e da própria “cidade moderna”. Trata-se de abordar o futebol sob novos ângulos, inserindo-o no contexto histórico.

    Após este olhar panorâmico sobre a introdução e o estágio alcançado pelo futebol em Buenos Aires, vejamos a situação do outro lado do Prata.

    Segundo Juan Capelán (1990:7), marinheiros ingleses praticavam regularmente o futebol em Montevideo por volta de 1880. Muito conectadas à Inglaterra (e à cidade de Buenos Aires) naqueles fins do século XIX, as elites montevideanas elegeram tal esporte como via privilegiada de “exercício atlético” e como forma da “raça latina” adquirir força e confiança (ROCCA, 1990:9). Em 1893, o reitor Alfredo Vázquez já dizia que através do futebol a raça saxônica seria enfim superada pela latina (MORALES, 1969:25). Não por acaso, partiu de acadêmicos de medicina a idéia de fundar em 1899 um clube nativo para enfrentar os times ingleses (e um importante clube alemão, o Deustcher Fussball Klub), com o revelador nome de “Club Nacional de Football” (C.N.F., 1938:14).

    Entre 1852 e 1908, o exôdo rural se impõe (vide o fechamento dos campos), a cidade se industrializa e cresce vertiginosamente, vendo neste período sua população saltar de 33 mil para 300 mil habitantes. Forma-se um cinturão de bairros periféricos fabris, chamados de “Nuestro Manchester”, “Birmingham”, etc (LENZI, 1986:18-29). Tal qual em Buenos Aires, o futebol vai rapidamente romper os círculos elitistas e disseminar-se pelas ruas como elemento de uma “cultura operária” em formação. Franklin Morales aponta para a necessidade de preenchimento do tempo livre numa cidade que não oferece aos pobres recém-chegados qualquer possibilidade de lazer. E sugere que a convivência de diferentes grupos étnicos despossuídos, numa “promiscuidade forçada”, germinou uma rica cultura popular, e o “futebol é o produto comunitário deste ambiente”, tendo o tango “a mesma raíz” (MORALES, 1969:25-26).

    E assim o esporte inglês se fez popular no Rio de Prata. Nas ruas, milhares de praticantes. No plano oficial, ligas poderosas e atuantes, erguendo os primeiros estádios, atraindo as primeiras multidões. Segundo José Buzzetti (1969:10), em 1912 há uma “nova expressão” em Montevideo: “verdaderas corrientes humanas se desplazam a los campos de juegos de los mas afastados barrios”. Em Buenos Aires, o processo de popularização do futebol segue ritmo semelhante: em 1917, 30 mil pessoas (formidável contingente humano para a época) assistiram ao jogo final do campeonato argentino (IWANCZUK, s/d:240). Um verdadeiro fenômeno de massas estava em gestação.

    É sobretudo nos primeiros anos do século XX que o futebol se disseminará pelas pequenas cidades do interior do Uruguai, até atingir a fronteira com o Rio Grande do Sul. Se na Argentina o futebol percorreu os trilhos das ferrovias que “civilizaram os pampas” (BAYER, 1990:20), no Uruguai este processo de difusão espacial se utiliza também das ferrovias e se estende à Campanha Gaúcha, para além do território nacional uruguaio, área de plena influência urbana de Montevideo. Tais conexões propiciaram as vias “platinas” de penetração do futebol em terras riograndenses e são assunto do próximo segmento.


3. Influências Platinas no futebol do Rio Grande do Sul

    No início do século XX poucas cidades no Brasil conheciam o futebol, e um número ainda menor delas o praticavam com alguma regularidade. Levantamentos que realizamos em livros, arquivos e em jornais de diversas cidades do país revelam o estranhamento que tal esporte poderia causar mesmo em certas capitais. A rigor, em 1900 não existia no Brasil nenhuma liga de futebol e portanto nenhum campeonato (MASCARENHAS, 1998). Em toda a América do Sul, ao que parece, somente o próspero eixo do Prata realizava regularmente eventos futebolísticos naquela virada de século.

    Nos limites deste artigo, destacaremos duas cidades gaúchas, ambas bastante isoladas dos grandes centros nacionais. Santana do Livramento, pela intensidade da conexão com o Prata e particularmente por realizar o mais significativo “par de cidades” na fronteira gaúcha com o Uruguai (o que resultou em precoce adoção do futebol) . E Uruguaiana, pela localização no extremo sudoeste do estado, cumprindo papel importante da difusão do futebol, permitindo mais tarde ampla cobertura espacial do campeonato gaúcho. Antes, algumas palavras sobre a expansão da malha ferroviária uruguaia no final do século XIX, processo fundamental no aprofundamento da influência de Montevideo sobre as cidades da Campanha Gaúcha.

    Vimos que, com base no intenso comercio portuário e nos primeiros passos da intensa industrialização, a cidade de Montevideo desfrutava de ampla prosperidade desde meados do século XIX. É neste contexto que em 1863 instala-se uma sucursal do Banco de Londres, detendo já um plano completo de implantação de ferrovias no país. Os primeiros trilhos ferroviários se implantam em 1869 (MARTINEZ, 1977:38-39). E logo a vasta hinterlândia de Montevideo vai sendo rapidamente desbravada pelos trilhos, que alcançam as cidades fronteiriças de Artigas e Rivera respectivamente em 1891 e 1892. Interessa-nos o fato de que toda esta expansão traz consigo grande afluxo de quadros técnicos provenientes da Grã-Bretanha, para manutenção/expansão das vias e máquinas. Considerando-se que neste mesmo período o futebol já havia se popularizado nos grandes centros industriais britânicos, pode-se imaginar a ampla contribuição dos técnicos na introdução e difusão deste esporte entre operários ferroviários e comunidades dispersas ao longo da zona de cobertura da malha ferroviária.

    A chegada das ferrovias tornará a Campanha Gaúcha ainda mais polarizada pela capital uruguaia. A região sudoeste do estado permanecia relativamente isolada dos principais centros urbanos gaúchos, face à precariedade dos meios de comunicação. Da cidade de Uruguaiana, em fins do século passado, as diligências levavam três dias para atingir a cidade gaúcha mais próxima, Alegrete. Para alcançar Rio Pardo demandavam 15 dias, e um pouco mais para atingir Rio Grande ou Porto Alegre, pois a conexão ferroviária com a capital gaúcha somente ocorrerá em 1907 (Haesbaert, 1988:71). Em contrapartida, os trilhos da Brazil Great Southern (empresa inglesa) atingiam a cidade em 1887, conectando-a com Quaraí, na fronteira com Artigas, que logo estará conectada com Montevideo. E assim, por volta de 1900, em plena fase de crescimento, Uruguaiana dispunha de representações de bancos ingleses, franceses e italianos, com sede em Buenos Aires e Montevideo. Nos jornais de então, verificamos diversos anúncios de negócios realizados com moeda uruguaia ou argentina, sendo também comum o uso cotidiano do idioma castelhano.6 Sem dúvida, aquele “pedaço” do Brasil estava plenamente mergulhado na área de influência de Montevideo e Buenos Aires.

Lecturas: Educación Física y Deportes · http://www.efdeportes.com · Año 5 · Nº 26   sigue Ü