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Diálogos propositivos entre a Educação Física, práticas pedagógicas 

e recreio escolar no cotidiano do ensino fundamental

Diálogos propositivos entre la Educación Física, las prácticas pedagógicas y el recreo escolar en el día a día de la escuela primaria

Purposeful dialogues between Physical Education, teaching practices and school recess in the daily elementary school

 

*Professora de Educação Física e Mestranda em Educação – Programa de Pós-Graduação

 em Educação CECH/UFSCar. Universidade Federal de São Carlos/UFSCar - São Carlos/SP

**Doutor em Educação Escolar. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação/UFSCar

e do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana

Universidade Federa de São Carlos/UFSCar - São Carlos/SP

Luana Zanotto*

luanazanotto@yahoo.com.br

Fernando Donizete Alves**

alves.sommer@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O presente estudo objetivou compreender que processos educativos são construídos entre crianças no recreio escolar e analisar como eles podem atuar em práticas pedagógicas nas aulas de educação física. Durante o primeiro semestre de 2014, foram observadas quinze crianças de uma turma de terceiro ano do ensino fundamental em tempos e espaços do recreio em uma escola municipal do interior do Estado de São Paulo/Brasil. Os caminhos teórico-metodológicos partiram de referenciais da pesquisa qualitativa, realizando observações participantes e tendo nos Diários de Campo a base para a construção dos dados. Os dados foram organizados via Análise de Conteúdo, realizando-se as fases de identificação das unidades de contexto e a elaboração das categorias de discussão. Foi observado que as crianças percorriam diferentes espaços da escola, brincavam, construíam saberes e re-significavam aprendizagens. Assim, revelaram-se duas categorias: I) Os vínculos de amizade: a partilha e o conflito e II) Brincadeiras no convívio e relações com a educação física. A partir da convivência consolidada com o grupo, percebeu-se que para além de momentos compartilhados e das vivências lúdicas, o recreio permite compreender as aprendizagens construídas pelas crianças longe das intervenções adultas, as quais podem ser transpostas à melhoria dos fazeres docentes na educação física.

          Unitermos: Recreio escolar. Educação Física. Práticas pedagógicas.

 

Abstract

          This study aimed to understand that educational processes are built among children in the school playground and analyze how they can act in teaching practices in physical education classes. During the first half of 2014, fifteen children were observed in a class of third year of elementary school once and recreational spaces in a municipal school in the state of Sao Paulo / Brazil. The theoretical and methodological approaches set out benchmarks of qualitative research by conducting participant observation and taking the field diaries the basis for the construction of the data. Data were organized via content analysis, performing the steps of identifying the context units and the preparation of discussion categories. It has been observed that children roamed different school spaces, playing, built knowledge and meant re-learning. Thus, they proved two categories: I) The bonds of friendship: sharing and conflict and II) Play in the conviviality and relations with physical education. From the consolidated coexistence with the group, it was noted that in addition to shared moments and recreational experiences, the play allows us to understand the learning constructed by the children away from adult interventions, which can be transposed to improved doings teachers in physical education

          Keywords: School playground. Physical education. Pedagogical practices.

 

Recepção: 15/11/2015 - Aceitação: 11/01/2016

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 20, Nº 213, Febrero de 2016. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Nesse artigo, abordamos o tempo e o espaço do ‘recreio escolar’ na perspectiva de compreender os processos educativos inerentes a essa práticas sociais1, compostas por crianças interagindo entre si e com os adultos, na interface das subjetividades. Buscamos situar a atividade de realizar pesquisas pautadas na escuta das crianças partindo do reconhecimento delas como sujeitos de direito, ou seja, o que elas dizem sobre o recreio.

    A participação em práticas sociais permite colaborar e compreender os processos educativos desencadeados pelos sujeitos que compõe as práticas. Estes processos são consolidados em uma relação dialógica entre os semelhantes e diferentes, numa dinâmica em que um se educa com o outro. Desta forma, e no contexto da cultura das infâncias, (Sarmento e Pinto, 1997), podemos compreender os tempos e espaços do recreio escolar enquanto uma prática social exercida por crianças.

    Sabemos que o recreio, ou intervalo das aulas, é um momento presente na vida de todo estudante. A compreensão da análise etimológica nos leva a entender a raiz da palavra ‘recreio’ como recreação, que indica “período para se recrear, como especialmente, nas escolas, o intervalo entre as aulas” (Ferreira, 1999, p. 1721). Por recreação, entende-se o momento em que o indivíduo escolhe espontânea e deliberadamente suas ações, através do qual ele satisfaz seus anseios voltados ao seu lazer. Para Dumazedier (1980), lazer é o tempo em que cada um tem para si, depois de ter cumprido suas obrigações, educativas, familiares, profissionais, sociopolíticas, etc. É, antes de tudo, liberação de cada um, seja pelo descanso, diversão, para o cultivo do intelecto ou para o movimento livre, incluindo-se as atividades esportivas.

    Como parte do período educacional escolar e, assim como o sentido do termo recreio, as aulas de educação física também buscam contemplar possibilidades para as crianças se movimentarem, experimentarem jogos e brincadeiras, conhecerem e recriarem a cultura lúdica. Os Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física (Brasil, 2004) indicam que a Educação Física deve:

    [...] tratar da cultura do corpo que se expressa de diversas formas, variado pelo repertório de conhecimentos que os alunos já possuem sobre diferentes manifestações corporais e de movimentos e buscar ampliá-lo, aprofundá-lo, recreá-lo e qualificá-lo criticamente (Brasil, 1997, p. 42).

    Desta forma, tanto o recreio quando as aulas de educação física são, por excelência, espaços e práticas sociais destinadas ao conviver e ao recrear das crianças. Portanto, elas são consideradas por nós, momentos relevantes à exploração e a troca de saberes pertencentes aos dois espaços. Neste artigo, buscamos contemplar o produzido no recreio (dando visibilidade às relações sociais forjadas pelas próprias crianças e mirando seu potencial às aprendizagens) para re-pensar os fazeres docentes na educação física, a partir do que as crianças estão nos dizendo/demonstrando, bem como para conhecê-las mais intimamente. Para tanto, o presente estudo objetivou compreender que processos educativos são construídos no recreio escolar e analisar como tais processos podem atuar nas práticas pedagógicas das aulas de educação física.

Procedimentos metodológicos

    O estudo apoiou-se em uma investigação com ida a campo e buscou fundamento metodológico na abordagem qualitativa de pesquisa. Esta abordagem permite ao pesquisador uma maior proximidade com os sujeitos e com o ambiente a ser pesquisado, sendo viável a observação dos acontecimentos diários dentre um grupo de pessoas e a inserção participativa durante os acontecimentos no campo de pesquisa (Negrine, 1999).

    Com a intenção de conviver com as crianças durante o recreio, para melhor compreender as relações que ali se estabelece, o exercício realizado foi de suspensão de pré-concepções, julgamentos e estereótipos que, historicamente, classificam as condições menosprezadas de ser criança. Assim, buscamos nos distanciar desta realidade para poder ver para além do que nossos olhos nos dizem, tentando sentir, tocar e, especialmente, exercitar a escuta paciente das vozes e ações das crianças.

    A pesquisa foi realizada em uma Escola Municipal de Ensino Fundamental situada em uma cidade do interior paulista brasileiro. Escolhemos esta escola pelo fato da pesquisadora ter sido, no ano anterior, professora de educação física nesta escola, lecionando com turmas do 1° ao 5° anos e, portanto, conhecendo a unidade escolar. Após autorização e apoio da gestão escolar, buscamos obter o consentimento/anuência das crianças. Dadas permissões, optamos por observar e conviver com um grupo de 15 crianças, entre meninas e meninos, estudantes do 3° ano desta escola. A escolha do grupo deu-se em função da necessidade em focalizar e direcionar o olhar para um determinado grupo, a fim de identificar os processos educativos desencadeados aos pares.

    Durante o total de 12 inserções, realizadas entre os meses de abril e maio de 2014, procuramos conhecer a crianças, no que diz respeito às formas de organização do espaço-tempo do recreio, tentando perceber suas compreensões acerca deste momento. Como forma de registro das observações foi utilizado o Diário de Campo, na perspectiva considerada por Bogdan e Biklen (1994). O cuidadoso exercício de leitura dos diários possibilitou a identificação das unidades de registros colhidas diretamente às asserções. Os diários de campos produzidos foram categorizados. Para interpretação das categorias, utilizamos a análise de conteúdo, propostas por Bardin (2009).

    Os registros construídos em notas de campo aconteceram decorrentes da rotina observada durante o recreio dessas crianças e foram identificadas na efetiva participação com elas no momento do lanchar e do brincar, bem como na relação delas com o espaço físico. Os processos educativos desvelados foram analisados criticamente à luz dos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física (Brasil, 1997). Neste processo emergiram duas categorias, a primeira I) Vínculos de amizade: a partilha e o conflito, e a segunda II) Brincadeiras no convívio e as relações com a educação física.

    Salientamos que foram respeitados todos os cuidados éticos no que se refere ao consentimento de participação – coletaram-se as assinaturas em termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) dos pais e/ou responsáveis pelos participantes. Preservamos o anonimato das crianças, por meio de nomes fictícios e à confidencialidade dos dados.

Resultados e discussão

    O recreio ocorre entre as 9h30min às 9h45min, neste tempo as crianças permanecem apenas no espaço do pátio e, por vezes, no interior da sala de aula, já que as portas das salas ficam abertas e é permitido o livre acesso ao interior delas. De modo geral, verificou-se que os momentos para lanchar seguido pelo brincar são ações que compõe a prática social do recreio, pois nelas ocorrem interações entre as crianças.

    Primeiramente as crianças se dividem para lanchar com o grupo de amigos. Em seguida, organizam-se para brincar. Elas lancham em aproximadamente sete minutos e, após este período começam a brincar. Percorrido determinado tempo dedicado ao lanche, elas já estão brincando, simbolizando e fantasiando com os próprios alimentos (Diário de campo II).

    Este registro nos conduz às reflexões sobre o momento, moldadas a partir de como as crianças se organizaram com relação ao tempo cronológico. Ao dividirem e atribuírem funções as duas metades do recreio, este momento não fica reduzido às simples necessidades relacionadas à alimentação, pois ao iniciarem as brincadeiras o recreio se configura como oportunidade para as crianças brincarem livremente.

    De um lado, a literatura (Neuenfeld, 2003; Mayer, Krebs, 2006) indica que o recreio está passando despercebido no contexto escolar. As causas residem no fato de ser compreendido apenas como momento para dar ao professor uma pausa em suas atividades docente e ao aluno um tempo para ‘descarregar’ as energias, descansar ou simplesmente merendar - interpretado como um espaço improdutivo. Por outro lado, mediante as inserções realizadas nesta unidade escolar, apreciamos circunstâncias contrastantes com o descrito pela literatura. O excerto abaixo corrobora à afirmativa:

    Em convivência com o grupo, percebemos que os sentidos atribuídos ao recreio são outros: para além do lanchar, é o momento para compartilharem as vivências tidas nas aulas de educação física [...]. As crianças conversam sobre o que estão aprendendo em corridas, pega-pegas e também elaboram jogos. Ressaltam se estão sendo um bom/a aluno/a; resgatam episódios do meio familiar particular e compartilham com o grupo; trocam objetos; explicam e modificam regras de brincadeiras vivenciadas em outros espaços (Diário de campo VII).

    Assim, compreendemos o recreio escolar enquanto o possível cenário para o encontro das culturas e construção de saberes, consolidado em uma relação dialógica que apresenta a criança como protagonista da ação, parafraseando Freire (2011, p. 166) “como sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua transformação”. Do encontro das subjetividades procuramos identificar os principais processos educativos desencadeados, os quais serão apresentados e discutidos a seguir.

Vínculos de amizade: a partilha e o conflito

    Segundo Linck (2009) as crianças mostram as relações estabelecidas com pares em diferentes contextos escolares, sendo que no recreio isso se torna mais evidente pela própria escolha de estar com as crianças que possuem maior afinidade. Para a autora, a noção de amizade surge com a idéia de atividades compartilhadas em específicas situações.

    A partir dos vínculos de amizades estabelecidos, observamos que as crianças aprenderam, ensinaram e trocaram valores da partilha, aspectos estes que mediaram às interações do grupo no que diz respeito ao compartilhamento de alimentos, saberes, experiências harmoniosas e conflituosas, sentimentos de felicidade e angústias. No exemplo da partilha dos lanches, citamos a interação entre as duas amigas, em que uma percebe que a outra já estava satisfeita com o suco, se vira e pega sobre a mesa a caixinha com o restante da bebida. A menina começa a beber mesmo sem pedir à amiga, apenas por ter percebido que ela não tomaria mais (Diário de campo X). As crianças sinalizam que lanchar com o amigo significa trocar os lanches, ou seja, oferecer o que é meu para o outro e assim poder comer o que é do outro. Neste sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física estabelecem: “a aula de Educação Física pode favorecer a construção de uma atitude digna e de respeito próprio por meio da convivência com o grupo [...] possibilita a construção de atitudes de solidariedade, de respeito, de aceitação, sem preconceitos” (Brasil, 1997, p. 31).

    Assim como apreciado em episódios do lanche, construídos genuinamente pelas crianças, o docente atento em suas práticas pedagógicas pode possibilitar o espaço de aula para momentos oportunos de interações do grupo, ministrando atividades que envolvam os jogos de cooperação e que reforcem gestos e atitudes de respeitos às particularidades, e, ao mesmo tempo, ofertando oportunidades para que o coletivo desenvolva suas potencialidades, para além das capacidades físicas.

    De acordo com Cruz e Carvalho (2006) o recreio é a categoria espaço-tempo em que mais ocorrem condutas de divisão e apreciação de bens comum, como por exemplo, os materiais que levam à escola para brincar. Sendo assim, percebemos que para as crianças o recreio é um dos melhores acontecimentos da escola, pois é o momento em que se dão as trocas, bem como possibilita o conversar livremente com o amigo.

    João e Henrique que haviam acabado de sair da fila da merenda sentam-se em um dos bancos. João tirou três notas de cem reais de brincadeira e lançou para Henrique e para Carla, perguntando: “querem?” e sorriu. Carla exclamou, arregalou os olhos e disse: ‘mas é claro que quero! [...]”. Henrique pergunta: “mas essas notas não são de verdade, são?!” Ele sorriu e disse: “são de mentirinha, para brincar só” (Diário de campo VI).

    O momento de empréstimo, divisão e doação premente no grupo, fortaleceu a associação do conceito de amizade à partilha. Quando se tratava da distribuição de brinquedos (objetos trazidos de casa), as crianças dividiam com o seu grupo e também com as crianças de outros grupos presentes no recreio. O convívio com as crianças nos permite perceber que a partilha aconteceu com maior freqüência entre o grupo meninas e também entre as que traziam pertences de casa. Contudo, isso não limitou o processo de divisão. A título de exemplo, em um determinado dia Cibele e os meninos não levaram apetrechos para o recreio e, ainda assim, tiveram acesso aos pininhos de borracha levados por Vitória e Amanda. Nesses momentos, outras crianças se aproximavam para pedir, trocar, emprestar os pinos, bem como deixaram ali papéis coloridos picados e em formatos de bolinhas (Diário de campo IV).

    As interações estabelecidas entre os colegas de turma, o diálogo permanente, os gestos e olhares, dão a entender que as crianças compreendem a necessidade de dividir os pertences. Além das relações de troca de objetos, alimentos e sentimentos, surgiram alguns momentos de conflitos. As situações conflituosas foram observadas enquanto modos possíveis de sociabilidade entre os pares, pois tais situações provocaram movimentos de distanciamento e aproximação entre as crianças, em meio aos impasses singulares, mas que garantiram o estar junto e o saber resolver juntos.

    Amanda inclui João na conversa e menciona que ele ainda não sabe que não pode jogar lixo no chão e, que por mais que a professora fale que não pode, que é “coisa de gente sem educação”, todos os dias ele ainda continua jogando. Em sua defesa, João - com a boca cheia de comida - argumenta apontando o dedo em direção à menina e tentando se defender diz: “va cuida da sua vida dela!”. (Diário de campo VIII).

    À medida que as crianças formam opiniões distintas uma das outras, os conflitos começam a ser entendido como parte da relação de amizade. Se por um lado, os amigos são aqueles com quem se pode brincar, conversar, rir e compartilhar momentos bons, por outro, está incutido nos vínculos de amizade os conflitos e até brigas inevitáveis, as quais fazem parte do relacionamento.

    Da mesma forma, nas aulas de educação física o conflito é compreendido como parte do processo de aprendizagem, especialmente, em situações de construção e inserção de regras de jogos pré-desportivos. Nesses momentos, uma sua ação pedagógica, o professor não deve apresentar uma solução rápida e eficiente na tentativa de sanar/abafar o conflito, mas sim estimular o diálogo democrático das crianças, para que, com autonomia, resolvam o conflito, semeando caminhos à liberdade e criticidade (Freire, 2011).

Brincadeiras no convívio e as relações com a Educação Física

    Ocasionadas após o lanchar, as interações observadas durante as brincadeiras criaram um ambiente lúdico e divertido que oportunizou a aparição de um dos principais processos educativos observados: o brincar. Foram diversas as brincadeiras apreciadas o longo do recreio, em especial, as brincadeiras tradicionalmente aprendidas na educação física escolar. Dentre elas destacamos o pular cordas e os jogos de pega-pega com regras, sendo, esta última, a atividade intensamente vivenciada pelas crianças.

    Tanto durante o recreio quanto nas aulas de educação física, não compreendemos o brincar como um meio para chegar a um fim. Segundo Brougère (2004), a produção do brincar não é um elemento naturalizado nas crianças, mas sim expressão e produto das culturas, enquanto possibilidade de ser e estar com os outros. Em acordo Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física (Brasil, 1997) a criança aprende a brincar por meio das relações com seus pares, com adultos e na descoberta de diferentes possibilidades de uso de objetos lúdicos. Adotando como referencial as compreensões e entendimentos sobre o brincar, exemplificamos a corda enquanto suporte lúdico funcionalizado à brincadeira de pular cordas, a qual foi constantemente repensada e transformada pelas características próprias das crianças, na medida em que produziram e re-produziram cultura corporal do movimento.

    A concepção de cultura corporal de movimento amplia a contribuição da educação física escolar para o pleno exercício da cidadania. Além disso, adota uma perspectiva de práticas pedagógicas que buscam o desenvolvimento da participação de todos, da cooperação e a afirmação de valores e princípios democráticos. Sendo assim, situações de socialização e de desfrute de atividade lúdicas conforme as verificadas no recreio, se transpostas à educação física, favorecem para o bem-estar coletivo.

    Da mesma forma, entendemos que a prática de jogos e brincadeiras no cotidiano de um grupo é fundamental para que as crianças, além de desenvolverem suas próprias aprendizagens, aprendam a respeitar regras e organizarem seu tempo e espaço com seus pares. Os jogos de pega-pega também foram verificados enquanto uma manifestação recorrente entre o grupo.

    Cibele não compreende que se fosse tocada pelo amigo teria apenas uma chance para continuar correndo e se fosse novamente pega ela ficaria de fora. Confusa, a menina pergunta para Anali e Flor se essa era a regra válida. Anali explica: “depende, se o pegador tocar os braços aí você tem mais duas chances pra correr, mas se ele pega da cintura para baixo aí você tem uma só [...]”. Cibele demonstra entender o conjunto das regras e continua brincando (Diário de campo XI).

    Para esta atividade destacamos as possibilidades à modificação das regras. Formatadas por um acordo comum entre as crianças e adaptadas de acordo com o contexto, as regras constantemente foram apreendidas e transformadas, ainda que a essência da brincadeira permanecesse a mesma, como demonstrado no excerto anterior. Ao longo desta brincadeira as crianças foram construindo novas maneiras de brincar e transformando as maneiras tradicionais. Para o documento supracitado (Brasil, 1997), nos jogos de regras “os alunos devem aprender, para além das técnicas de execução e performance, discutir regras e estratégias, apreciar o jogo criticamente, avaliando-o de maneira justa e ética, para que essas atividades possam ser re-sigificadas e re-criadas”. Se longe dos olhares adultos as crianças, por si só, conseguem organizar suas atividades lúdicas, podemos pensar em situações problemas semelhantes às aulas de educação física para que, do mesmo modo, elas sintam-se co-autoras das situações.

    Conviver com outras crianças e com elas brincar, nos permitiu acrescentar novos significados e elementos de aprendizagens as práticas pedagógicas, tais como: aprender a respeitar o outro para ter um bom convívio em grupo; saber os limites quanto ao que podem e o que não podem fazer; ouvir a crianças na construção de conhecimentos e saberes; ofertar autonomia e poder de escolha a ela, ensinando-a a pensar criticamente sobre isso (Sommerhalder e Alves, 2011). Tais aprendizados são inerentes aos conteúdos da educação física, portanto, cabe ao professor re-pensar sua prática e ofertar aspectos educativos e corporais inter-relacionados em suas aulas.

Considerações finais

    O grupo participante do estudo demonstrou interconectar o aprendido em uma prática com o que estão aprendendo e ensinando em outra, ou seja, o aprendido na aula de educação física ou na sala de aula, em casa, no bairro, etc., serve como referência e apoio para novas aprendizagens, como bem observadas durante o recreio.

    As aprendizagens manifestadas durante os diálogos possibilitou a convivência respeitosa e compartilhada entre as crianças, inclusive nos diálogos conflituosos, os quais possibilitam a negociação de soluções. No conviver umas com as outras foi levado a cabo os idéias dialógicos, os quais possivelmente podem ser encaixados na educação física, de acordo com as orientações dos Parâmetros Curriculares.

    A partir do estudo realizado foi possível compreender o educar-se em reciprocidade, em experiências concretas, permeadas por vivências protagonizadas pelas crianças. Nesse sentido, consideramos fundamental entender as distintas concepções de recreio, não como momento de descanso de professores apenas, mas como momento de reflexão, de transformação. Por ora, enquanto uma última reflexão para este estudo, consideramos que a habilidade em pesquisar práticas sociais advém com a própria experiência de ir a campo para reconhecer e identificar os processos educativos daquele espaço e, a partir delas, desvelar novas práticas e posturas pedagógicas que podem ser transferidos para outros componentes de rotina escolar.

Nota

  1. Práticas Sociais são compreendidas como um conjunto de ações humanas coletivas e têm por objetivo manter ou transformar uma realidade. Essas ações estão relacionadas à cultura (costumes, trabalhos, espaços escolares, movimentos sociais, etc.) e são organizadas com regras e normas, por grupos de pessoas que freqüentemente se reúnem para construir, refletir e aprender com e sobre situações vivenciadas em seus cotidianos (Silva, 2004).

Bibliografia

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