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Competição na Educação Física escolar: quem ganha o jogo?

La competición en la Educación Física Escolar. ¿Quién gana el juego?

Competition in Physical Education: who wins the game?

 

*UNASP-SP

**Rede Estadual (SP)

(Brasil)

Leonardo Tavares Martins*

leo.unasp@gmail.com

Rubens Oliveira da Silva**

rubens0312@gmail.com

 

 

 

 

Resumo

          A competitividade parece ser natural ao ser humano e fazer parte da cultura, é algo presente no dia a dia, assim, o texto propõe esse tema no contexto escolar, em especial nas aulas de Educação Física. Haveria algum limite para a competição escolar? Poderia ser prejudicial para o desenvolvimento? Até que ponto a competição poderá ser objeto de socialização ou exclusão? Ela prepara o indivíduo para ser útil à sociedade ou apenas cria-lhe uma ilusão? Tais questões nos direcionam para este estudo e, por meio de pesquisa de campo, com aplicação de questionário com sete questões fechadas e quatro questões abertas, buscamos identificar qual é a realidade das competições na Educação Formal, numa rede confessional de ensino. Recebemos respostas de nove escolas. As respostas foram tratadas estatisticamente e qualitativamente. Um dos aspectos negativos da competição esportiva na perspectiva da escola é, sem dúvida, o caráter discriminatório, pois credita valor ao vitorioso e exclui o aluno que não tem habilidades esportivas. A Educação Física escolar hoje proposta nos documentos oficiais deve superar o paradigma do movimento, suor e competição e prezar pela formação do homem consciente, crítico e sensível à realidade, por meio do movimento. As respostas obtidas indicam que o quarteto mágico (futebol, voleibol, basquetebol e handebol) ainda domina as atividades práticas e que a competição esportiva é parte das ações pedagógicas, mesmo sem critérios educacionais bem definidos. Compreender o lugar ideal da competição escolar parece ser um desafio ainda a ser alcançado.

          Unitermos: Competição escolar. Educação Física Escolar. Escola. Esporte. Competição esportiva.

 

Abstract

          The competitiveness seems natural to human beings and is part of the culture, is something present in everyday life, so the paper proposes this topic in the school context, particularly in physical education classes. Would there be any limit to the school competition? Could it be harmful to the development? What would be the extension in which competition would facilitate the exclusion or socialization? Does it prepare the individual to be valuable to society or does it just creates an illusion? Such questions drive us to this study and through a field research with a questionnaire with seven closed questions and four open questions we seek to identify what is the reality of competition in Formal Education, in a confessional education system. We received answers from nine schools. Responses were treated statistically and qualitatively. One of the negative aspects of athletic competition in a school perspective is undoubtedly the discriminatory character because it gives value to the victorious and excludes the students who do not have sports skills. The Physical Education proposal today in official documents must overcome the paradigm of motion, sweat and competition and value the formation of a conscious man, critical and sensitive to the reality through the movement. The responses indicate that the magical quartet (soccer, volleyball, basketball and handball) still dominates practical activities and also that sports competition are part of pedagogical actions, even without well-defined educational criteria. Understanding the ideal place for school competition seems to be a challenge yet to be achieved.

          Keywords: School competition. Physical Education. School. Sports. Sports competition.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 188, Enero de 2014. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    A competitividade é algo que está implícita no ser humano, faz parte de sua cultura é algo presente no seu dia a dia. Ela pode ser considerada tanto natural quanto uma construção social. A escola, enquanto componente social, também se defronta com as questões relativas sobre como lidar com a competição. Assim, surgem as primeiras questões que nortearam este estudo: em que medida e de que forma a competição interfere no desenvolvimento da criança e do adolescente? Será que há uma interferência positiva ou negativa no processo de formação? Até que ponto a competição poderá ser objeto de socialização ou exclusão? Até onde prepara o individuo para ser útil à sociedade ou apenas cria-lhe uma ilusão? Podemos contar com a competição como uma estratégia segura ao se pensar a educação? Tais questões nos direcionaram para este estudo, particularmente no ambiente escolar.

    É importante ressaltarmos que a interferência não se dá apenas pela ação desenvolvida, mas principalmente pelo formato da aula adotada pelo professor, pela sua postura em relação à ação, podendo ser mais interessante, mais motivadora mais racional, mais integralizadora, mais competitiva ou mais cooperadora.

    Qual tem sido o papel da educação física no contexto educacional em relação à competição? Está a atividade física escolar reduzida à prática de modalidades esportivas, incentivando a participação apenas em jogos escolares? Os jogos escolares têm caráter formativo e educativo ou se reduzem à competição, numa prática reducionista? Seria possível utilizar competições esportivas e, por meio delas, buscar desenvolver também habilidades e competências nos aspectos cognitivo, afetivo e social das crianças?

    É a partir de uma visão e uma metodologia fragmentada que a Educação Física tem proposto ações baseadas exclusivamente em práticas esportivas e competitivas, deturpando uma visão mais completa e complexa do corpo, do movimento e das ações motoras.

    A educação física tem cumprido o papel de reforçar os estereótipos masculino e feminino, de que uns nascem bons outros ruins, de que o vencedor na competição esportiva é melhor do que o perdedor, sendo reconhecido publicamente pelo seu feito, de que há esportes para meninos e esportes para meninas, de que a raça pode determinar o sucesso em certas modalidades, além de reforçar os ideais do esporte competitivo dentro de atividades escolares. É necessário “reinventá-lo, recriá-lo, reconstruí-lo e ainda mais produzi-lo a partir do específico da escola [...] uma de suas [da escola] tarefas, então, é a de debater o esporte, de criticá-lo, de produzi-lo... e de praticá-lo” (VAGO, 1996, p.13).

    Os supostos benefícios da competição esportiva podem ser questionados. Seria verdade que o ganhar ou perder numa competição esportiva ajudaria o aluno a estar preparado para as situações de sucesso ou fracasso na sociedade?

    Pior do que não se posicionar frente a esta questão é a postura que parece existir, com frequência denominada de consciência ingênua. Esta se caracteriza pela conduta alienada e acrítica, onde não há reflexão. O mero fazer reflete uma visão reducionista do homem, e uma ação sem reflexão confirma esta visão. A reflexão deve estar presente antes, durante e após a atividade, questionando o movimento e não se satisfazendo com o esporte como fim em si mesmo.

    A Educação Física cujas ações são orientadas exclusivamente pela prática esportiva, perde seu sentido maior em termos escolares, pois fica reduzida à reprodução sem questionamento, sem reflexão, reforçando que o esporte é um bom meio para se reforçar as diferenças sociais e reforçando a ideologia capitalista.

    Nesta perspectiva,

    realmente o esporte educa. Mas, educação aqui significa levar o indivíduo a internalizar valores, normas de comportamento, que lhe possibilitarão adaptar-se à sociedade capitalista. Em suma, é uma educação que leva ao acomodamento e não ao questionamento. Uma educação que ofusca, ou lança uma cortina de fumaça sobre as contradições da sociedade capitalista. Uma educação que não leva a formação do indivíduo consciente, crítico, sensível à realidade que o envolve. (BRACHT, 1992, p.63)

    O esporte tem uma clara ambiguidade, pois ao mesmo tempo propõe igualdade de condições, mas em contrapartida as desigualdades se evidenciam claramente. Evidentemente não há igualdade numa sociedade com privilégios reservados a alguns e com acesso às práticas esportivas também limitadas.

    Bracht (1992) reforça a questão da ambiguidade, entre o esporte e a educação física escolar, questionando a apropriação dos valores intrínsecos ao esporte como ação educativa e a inclusão do esporte como é concebido externamente à escola, incorporando-o sem discutir suas implicações.

    O esporte na escola é um prolongamento da própria instituição esportiva. Os códigos da instituição esportiva podem ser resumidos em: princípio do rendimento atlético-desportivo, competição, comparação de rendimentos e recordes, regulamentação rígida, sucesso esportivo e sinônimo de vitória, racionalização de meios e técnicas. O que pode ser observado é a transplantação reflexa destes códigos do esporte para a Educação Física. Utilizando uma linguagem sistêmica, poder-se-ia dizer que a influência do meio ambiente (esporte) não foi/é selecionada (filtrada) por um código próprio da Educação Física, o que demonstra sua falta de autonomia na determinação do sentido das ações em seu interior (BRACHT, 1992, p. 22).

    A mesma ideia é reforçada por Bassani ao dizer que “o esporte institucionalizado ocupa um lugar destacado na cultura escolar, relegando as práticas da Educação Física a um plano secundário” (BASSANI et. al., 2003, p. 94).

    Se a aula de Educação Física escolar importa o modelo de esporte, como estrangeiro aos interesses educacionais e, portanto, como um espaço reservado ao desempenho, surge a questão: como pode haver espaço para a coletividade, para a participação, para a inclusão e para a aceitação de diferenças?

    O modelo de aula que reproduz o esporte, mecanicamente, não acrescenta ao aluno seu posicionamento crítico, não desenvolve seu potencial questionador, sendo muito mais uma ação motora descompromissada, objetivando simplesmente o movimento.

    No desporto moderno é fácil constatar o enfraquecimento ou a perda do lúdico, o que corrompe progressivamente o jogo (MATTOS, 2002). É necessário o resgate dos valores que privilegiam o coletivo e a solidariedade, lembrando que o jogo na escola deve prever não ser individualizado e jogar “com” e não contra (COLETIVO DE AUTORES, 1992).

    Outra questão que surge, conforme apontado por Daolio (2003) é em relação à formação das turmas, pois

    alguns professores chegam mesmo a defender a formação de turmas de educação física em virtude do biótipo dos alunos, independentemente da idade que eles tenham e da série que estejam cursando. É sobre os corpos dos alunos assim definidos que deve incidir a prática do professor de Educação Física, como imposição de técnicas que favoreçam seu desenvolvimento e a eficiência do seu desempenho (DAOLIO, 2003, p. 93).

    Este tipo de proposta reforça a questão do desempenho e das condições físicas, o que evidentemente não deveria ser a perspectiva educacional.

    A conscientização do papel do professor como agente transformador deve ser repensada, pois sua ação não deve ser a de um mero executor de práticas. A atribuição de um professor deveria incluir a consciência da importância de suas ações e de sua duração, pois sua atuação não fica limitada ao tempo da aula, mas pode durar toda a vida de seus alunos. Além disto, deve ter a certeza de estar colaborando no processo de formação de indivíduos, com seu potencial de criticidade, ou seja, extrapolar os limites reducionistas do movimento como fim em si mesmo.

    Entre os mitos que reforçam a ideia do esporte na escola, destaca-se aquela que indica uma possível ascensão social e respeito pelos colegas, decorrente do sucesso na prática esportiva. Tal conceito é reforçado por casos isolados de atletas, particularmente de futebol masculino e pelos instrumentos de mídia. Nesta perspectiva da atividade esportiva,

    configurar-se-ia a utilização do esporte no mascaramento da estratificação, em classes sociais, da estrutura de nossa sociedade, daí originando-se o reforço ao ocultamento dos conflitos dela derivados face aos interesses antagônicos que permeiam as relações sociais numa sociedade classista (CASTELANI FILHO, 2003, p. 199).

    A competição dentro do ambiente escolar pode reforçar mecanismos de exclusão, se estiver baseada em desempenho nas atividades esportivas. O esporte competitivo não tem por pressuposto a inclusão, pelo contrário, prevê o privilégio da participação para os mais aptos e mais habilidosos. Considerando que o aluno com melhor desempenho será valorizado por isso e desejado como parte da equipe, aqueles com menor grau de habilidade ou desempenho não terão oportunidade no momento da competição, pois significaria um prejuízo para a equipe. A valorização do mais apto reforça o valor da pessoa pelo desempenho motor e contribui para o sentimento preconceituoso e para a exclusão daquele que não tem habilidade.

    O esporte e o jogo não carregam intrinsecamente os problemas decorrentes da competição. A prática esportiva e o jogar não implicam necessariamente em prestígio, reconhecimento ou exclusão social. O jogo e o esporte não são, por natureza, prejudiciais à formação escolar, mas carregam um valor dialético em sua prática. A forma como é proposto, seus objetivos e fundamentação teórica faz a diferença.

    Freire afirma que:

    O jogo ou o esporte representam, num contexto lúdico, as ações individuais e coletivas das pessoas e da sociedade. Portanto, a competição não nasce no jogo, mas é nele representada. Se a competição assume, na sociedade, o caráter predatório que observamos atualmente, não é por culpa do jogo e nem será suprimindo deste o aspecto competitivo que o problema desaparecerá (FREIRE, 2009, p. 136).

Percurso metodológico

    A partir das questões iniciais, realizamos uma pesquisa de campo de caráter descritivo, com a aplicação de questionário enviado a professores de Educação Física de escolas de uma rede confessional de ensino, no Estado de São Paulo. As escolas foram contatadas previamente e o questionário foi enviado por correio eletrônico para setenta escolas durante o primeiro semestre de 2007. Obtivemos respostas de nove escolas. Quanto aos sujeitos da pesquisa todos foram informados sobre os objetivos gerais deste estudo e da possibilidade de desistirem da participação a qualquer momento, conforme o Termo de Conhecimento Livre e Esclarecido. O questionário foi desenvolvido pelos pesquisadores e submetido a um processo de validação. A análise dos resultados obtidos foi feita estatisticamente para as questões fechadas e de forma analítica descritiva para as questões abertas. Foi enviada junto ao questionário uma carta aos professores destas unidades de ensino, informando quanto ao caráter desta pesquisa, mostrando a importância social e científica do tema abordado e assegurando-lhes a confidencialidade e a privacidade dos dados obtidos, garantindo assim o sigilo, uma vez que não era necessário ao informante identificar-se.

Educação Física e sociedade

    Há várias questões que permeiam a Educação Física Escolar no Brasil. Dentre elas poderíamos destacar o que Mauro Betti e Liz (2003) apontam sobre a questão da própria necessidade da Educação Física Escolar, pois se o esporte é uma prática comum em nossa sociedade e se a Educação Física é apenas uma prática esportiva, haveria a necessidade de incluí-la como disciplina obrigatória na escola? Há também outras questões, tais como a presença de atividades de inclusão (ou exclusão), como o esporte pode viabilizar tais atividades, como o conteúdo relativo à prática esportiva contribui para a formação de um cidadão e muitas outras.

    O profissional de Educação Física, particularmente na escola, não pode continuar com uma visão parcial de sua influência. Sua conduta profissional implica em reflexos nas condutas dos alunos, assim, o docente pode contribuir para reforçar ou negar determinados valores e práticas sociais.

    Neto (1995) aponta que há um maior número de pesquisas sobre aptidão física do que estudos que remetam a reflexões críticas sobre o papel do esporte e da atividade física no contexto escolar. Assim, embora os estudos sobre aptidão física tematizem a questão dos possíveis benefícios de atividades corporais à saúde, tais estudos não abordam questões como desigualdade social, questões de gênero e esporte, críticas à prática como fim em si mesma, problemas sociais e seus reflexos no esporte e na escola, dentre outras possibilidades.

    Uma das questões que têm despertado o interesse de diferentes autores da Educação Física ao abordar a questão do esporte na escola é sobre o problema da inclusão/exclusão. Não apenas em relação aos deficientes, pois esses nitidamente têm tido pouco acesso às práticas corporais e esportivas, mas também em relação às diferenças de desempenho esportivo. Quando a escola traz para si um modelo de competição regido nos mesmos parâmetros daquele onde o capital é o árbitro principal, não há esperança de que o esporte possa ser um meio para se educar, para formar um cidadão e para incluir.

    A sociedade estimula e valoriza uma concepção positivista do esporte, utilizando-o desta forma, supostamente como elemento de educação, o que não deixa de ser uma visão e apropriação ideológica da atividade esportiva.

    As questões ideológicas e políticas também parecem ultrapassar as arquibancadas e as carteiras escolares, adentrando nas quadras, pois o esporte fica à mercê dos interesses de grupos ou pessoas, sem que haja, necessariamente, uma política ou ações planejadas pensando as atividades físicas e esportivas no contexto escolar. Assim, o esporte deixa de ser conteúdo e se reduz a atividade.

    Segundo MATTOS (2002), o papel do esporte em nosso país tem sido o de reproduzir e reforçar a ideologia capitalista. A questão para a qual apontamos é que a escola não se distancia, em suas práticas esportivas, do restante das práticas presentes na sociedade.

    Nas aulas ou eventos em que o esporte é a parte central da atividade, há a busca e valorização do rendimento e da vitória, exacerbando o espírito competitivo, atribuindo ao esporte um fim em si mesmo. Nessa perspectiva de aula, há uma grande preocupação com o resultado do aluno e com o aspecto mecânico do movimento, ignorando o espaço para o coletivismo, para a incorporação de outros aspectos inerentes ao movimento, para a compreensão da questão cultural na produção do movimento e para discussão sobre a prática esportiva.

    São cada vez mais fortes as suspeitas de que a Educação Física tem premiado e supervalorizado a vitória, servindo a interesses que não são necessariamente os seus. Nesse tipo de prática, demonstra maior atenção aos talentosos e vitoriosos, mantendo a lógica de Cubertin: Citius, Altius, Fortius. A beleza, o rendimento, o progresso, a superação, as aprendizagens dos não vencedores são deixadas de lado, o segundo colocado não é um vencedor. A vitória cega de tal maneira, que os vencidos acabam sendo esquecidos, quando não excluídos, mesmo que a plasticidade de seus gestos motores tenham beleza e um significado de aquisição motora de grande valor para o aluno. No contexto escolar, quem necessita de maior apoio não é o vencedor, mas justamente o excluído e se alguém merece ser reconhecido, não é necessariamente o mais eficiente, mas aquele que consegue maior progresso, aquele que demonstra maior empenho (FERREIRA, 2000).

Que tipo de aluno quero formar? O papel do professor

    É possível que ainda exista, por parte dos profissionais de Educação Física, uma visão ainda positivista do papel do professor, no qual o movimento é a grande meta a ser alcançada. Um movimento corretamente aprendido e repetido seria o grande objetivo da Educação Física, ignorando, por exemplo, o papel social do esporte, a funcionalidade, o progresso e o desenvolvimento da sociedade e como o esporte e a atividade física são seus constituintes.

    O educador deve ser um vinculador de valores, identificando e criticando o caráter reprodutivista que o esporte pode assumir. A ação do professor é, sem dúvida, um posicionamento político e deveria prever e incentivar que, a partir de suas aulas, houvesse um processo de transformação, atuando no sentido de inverter ou reverter determinada situação, buscando colocar sua prática e a educação a favor de um projeto de sociedade.

    O raciocínio, a discussão argumentativa e o uso e defesa de argumentos deve ser parte constitutiva das aulas de Educação Física, rejeitando a ideia de que apenas movimento, suor e prazer são os constitutivos das aulas. A Educação Física Escolar deve ser repensada, com a correspondente de sua prática pedagógica assumindo a responsabilidade de formar um cidadão capaz de posicionar-se criticamente diante das novas formas da cultura corporal e do movimento (BETTI e ZULIANI, 2002).

Educação Física esportiva, mas não competitiva

    Uma visão romântica do esporte indicaria que ele é praticado desde antiguidade e trás consigo a conotação de prazer e/ou divertimento, algo que se faz nas horas vagas sem obrigação, sendo assim, o lúdico apareceria como uma característica básica. Entretanto, em nossa cultura, não parece possível dissociar o conceito de competição atrelado à prática esportiva.

    Sendo assim, a associação da Educação Física à prática esportiva incorre numa redução de possibilidades e numa caracterização da prática limitada aos contornos da competição. A influência tecnicista presente nas aulas reforça os limites impostos pela busca de desempenho e resultados, além de cercear o completo desenvolvimento motor dos alunos. O ensino da Educação Física deveria propor a construção e/ou a solução de situações problema, nas quais fosse possível vivenciar uma grande variedade de experiências motoras, o que é viável por meio de práticas esportivas, desde que não restritas à lógica da competição.

    As vantagens oriundas da prática esportiva não podem ser negadas, tais como a socialização, o espírito de equipe, saber conviver com a vitória e com a derrota, desejo de superação, autoconfiança, independência, importância da colaboração e sentido de responsabilidade. A proposta de uma Educação Física que busque formar o aluno integralmente não nega a utilização de esportes, apenas alerta para os riscos do uso descompromissado ou descontextualizado. O professor que utiliza o esporte como meio de aprendizagem pode garantir não apenas a melhoria na condição física, mas também o desenvolvimento emocional e social dos alunos (BETTI e LIZ, 2003).

    Para minimizar o efeito da competição deve-se substituir a ênfase no produto (vitória) pela ênfase no processo (atividade), privilegiando, ao final do jogo, uma discussão dos fatores que geraram o resultado final tais como a tática das equipes, falhas e acertos ao invés de somente valorizar o(s) vencedor(es) (FERREIRA, 2000). O resultado final não seria, assim, fator gerador de ansiedade nem meio de coação e os alunos não ficariam rotulados como aptos ou inaptos, vencedores ou derrotados.

Resultados

    A primeira questão apresentada no instrumento de pesquisa indagava por quanto tempo o professor atuava profissionalmente na Educação Física escolar. Encontramos que 44% dos avaliados eram recém-formados (até 3 anos de atuação profissional) e que 42% tinham mais de 5 anos atuando no mercado de trabalho. Assim, a amostra era composta tanto de professores experientes, que provavelmente já tenham se apropriado de diferentes estratégias de ensino quanto de docentes sem muita experiência.

    Quando perguntados sobre o tempo de atuação na Rede confessional, objeto desse estudo, encontramos que mais de 80% atuavam por mais de 5 anos. Tal informação parece contradizer a primeira pergunta, entretanto nossa compreensão para essa resposta é que o professor atuava antes de estar formado, na condição de estagiário ou em outra função que não a docência, pelas limitações legais implícitas. Não temos dados que comprovem essa hipótese, mas nos parece muito oportuno que uma instituição escolar crie estímulos para que o servidor busque uma formação profissional e, após a conclusão do curso, tal funcionário seja remanejado para a função docente.

    Perguntamos também sobre quais modalidades esportivas eram desenvolvidas durante o ano escolar. As modalidades com maior índice de respostas foram Basquetebol, Futsal, Handebol e Voleibol. Essa parece ser a base das práticas esportivas da Educação Física brasileira, carinhosamente denominado de ‘quarteto mágico’, como se fosse capaz de dar conta da construção e desenvolvimento de todo repertório motor dos alunos. Há uma reconhecida ignorância esportiva no conteúdo trabalhado, principalmente quando se considera que o Ministério dos Esportes reconhece oficialmente 127 modalidades esportivas (MARPLAN, s/d). O repertório motor estimulado nas aulas de educação física escolar fica limitado à prática de apenas quatro modalidades, penalizando a cultura motora e reforçando a limitação de conhecimento e práticas possíveis por maios de um programa abrangente de Educação Física.

    Embora alguns professores mencionem outras modalidades menos conhecidas trabalhadas nas aulas, há uma explícita predominância dos esportes mais populares em nosso país. A figura 1 mostra os esportes mencionados pelos professores e a incidência de suas respostas.

Figura 1. Modalidades desenvolvidas

    Outra questão de grande relevância, que ainda gera diferentes argumentações no cenário escolar é a oferta de atividades para meninos e meninas. Num mundo no qual o discurso da busca pela diminuição das diferenças e idênticas oportunidades a todos é uma constante, o estímulo motor diferenciado para meninos ou para meninas pode ser um fator de segregação ou exclusão. As experiências motoras vividas na escola devem ser de tal natureza que todos tenham as mesmas oportunidades e que inclusive a convivência com a diferença seja parte do processo formativo. Perguntamos então se as atividades eram as mesmas para meninos e meninas. A resposta positiva alcançou 88,89% dos professores, o que significa que 11,11% oferecem atividades distintas para cada um dos grupos e, conforme as respostas obtidas, as diferenças estão na intensidade do trabalho realizado com cada grupo.

    Quando questionados sobre a existência de grupos esportivos que representassem a escola em eventos interescolares ou torneios, 33,33% afirmaram possuir equipes esportivas para esse fim. Considerando que um time, para poder participar de uma competição, precisa se preparar para isso, a questão da especialização esportiva no ambiente escolar ganha espaço para a discussão. A questão se agravaria se o momento para o treinamento das equipes for o tempo destinado às aulas de educação física, pois reforçaria o problema da exclusão, do privilégio aos mais habilidosos em detrimento do grupo.

    Perguntamos aos docentes como são, em geral, formadas as equipes esportivas durante as aulas de Educação Física. As respostas indicam que os alunos são os responsáveis pela separação dos times em 22,5% das oportunidades que se requer equipes, que os professores são os únicos responsáveis pela escolha em 35% das situações de prática esportiva em equipe e que um modelo de ação conjunta do professor e alunos na escolha das equipes ocorre em 42,5% das ocasiões para tal prática.

    Outra pergunta do questionário era se a escola possui espaço físico e material para a prática adequada das modalidades esportivas que os professores mencionaram que trabalham com seus alunos. As respostas indicam que 88% possuem área e material adequados para as práticas. Não solicitamos que relatassem os materiais e espaços utilizados, entretanto, ao observar o número de modalidades mencionadas (14) e sua restrita variedade concluímos que esse percentual seja de fato espelho da realidade.

    Perguntamos também se a escola promove algum evento esportivo (“olimpíada”, torneios e/ou campeonatos). Embora, conforme mencionado anteriormente que apenas 33,33% dos entrevistados afirmaram possuir equipe esportiva para representar a escola em eventos interescolares, 100% dos professores afirmaram que suas escolas promovem algum tipo de competição interna para seus alunos, criando por fim o ambiente competitivo. Sobre a frequência de tais eventos, 35% deles afirmaram que promovem competição esportiva uma vez ao ano, 55% realizam duas vezes ao ano e 10% realizam esse tipo de evento três vezes ao ano.

    Perguntamos também aos docentes sobre a escolha dos participantes para esses eventos internos e eles afirmaram que os próprios alunos escolhem os jogadores em 88,88% das situações e apenas em 11,11% ocorrem seletivas para a formação das equipes.

    Para tais eventos internos parece não haver intervenção direta do professor na formação das equipes, criando, mais uma vez, a possibilidade de exclusão, pois se os alunos têm como objetivo a vitória sobre as outras equipes então as ações de inclusão podem ser deixadas de lado, além do que os critérios utilizados podem levar em conta outras coisas que não apenas o desempenho técnico. A escolha dos jogadores pelos próprios alunos, se não for desenvolvida no decorrer das aulas, num processo formativo, corre o risco de se tornar em momento de simples rejeição dos menos aptos. A intervenção do docente parece ser não apenas importante, mas indispensável.

    Também perguntamos sobre a existência de regulamentos para esse tipo de evento e 88,88% dos professores afirmaram possuir algum documento norteador para as competições.

    A última questão indagava se o professor considerava que as práticas esportivas realizadas na escola tinham algum diferencial em relação a outras escolas, não confessionais. Segundo os entrevistados as principais diferenças estão na maneira de como se trabalha a competição, no respeito dado aos alunos, no trabalho individual, respeitando as características de cada um e, por fim, na filosofia da rede confessional. De forma prática os professores não souberam precisar quais eram de fato as diferenças práticas e nem como elas ocorriam, dando a impressão de que tais diferenças podem estar restritas ao discurso. Ao mencionar que a filosofia da rede de ensino é diferenciada, na realidade os docentes não mencionaram formas de se oferecer uma prática diferenciada.

Considerações finais

    Não foi possível verificar todas as escolas que tínhamos nos proposto a princípio, pois não recebemos as respostas dos professores, mas ainda assim, as nove unidades escolares analisadas representavam, à época do estudo, metade daquela rede confessional, na região em que estão inseridas. De acordo com os dados obtidos, o primeiro tópico que nos chama a atenção é que dentro de tais escolas é comum a prática de atividades esportivas competitivas.

    Esses dados revelam também que as modalidades trabalhadas nas escolas são as quatro mais conhecidas no âmbito escolar: futsal, voleibol, basquetebol e handebol. A relação entre a variedade de modalidades esportivas presentes nos veículos de comunicação parece contornar os limites das práticas esportivas na escola. Se o futebol é de longe o esporte com maior espaço na mídia, também é o esporte mais praticado nas escolas. As outras três modalidades também têm momentos de maior alcance e apelo social, decorrentes de conquistas olímpicas ou outras competições internacionais. Entretanto a compreensão das diferentes modalidades e a vivência prática ficam restritas a essas quatro modalidades, sujeitando os alunos a uma ignorância esportiva.

    A competição é um processo social, presente de diferentes formas e não caberia uma discussão sobre sua presença ou não na sociedade, ou mesmo um julgamento de valor e contribuições que possa gerar. Sua extinção, mesmo que fosse possível, não garantiria uma sociedade mais justa e honesta. Por outro lado, defender que é a sua permanência que garantirá o equilíbrio social, também parece ser um raciocínio falacioso. Essa questão, da presença e espaço da competição na sociedade, toma um vulto ainda maior quando o abordamos no contexto escolar.

    Algumas das questões essenciais ao tratarmos desse assunto é a capacitação dos professores, sua postura, a condução das atividades, a forma como se viabiliza a participação dos alunos para que não seja um momento de exclusão social, a diversidade de modalidades e experiências motoras praticadas e as reflexões feitas a partir das práticas esportivas, mesmo que competitivas, dando oportunidade aos alunos para compreenderem o esporte como o maior fenômeno social contemporâneo.

    A discussão sobre o esporte e a competição no espaço escolar deve preceder a mera prática esportiva. Sua compreensão é condição essencial para que não se torne um meio de captura, pela forma como é praticado na escola. O esporte de alto rendimento tem seu espaço na mídia e na sociedade, mas não pode servir de modelo para a prática escolar, pois está repleto de outros interesses que não apenas o enriquecimento da experiência motora. O esporte praticado na escola deve levar em consideração o objetivo das práticas escolares, rejeitando o modelo da conquista esportiva como um fim em si mesmo.

    Apesar dos limites deste trabalho, a questão central que levantamos não perde sua relevância, pois as práticas esportivas precisam ser constantemente repensadas. Isso cabe destaque especial quando uma pesquisa do Ibope (2012) apresenta que uma das expectativas dos diretores de escola sobre a educação física escolar é a detecção de talentos esportivos e que uma de suas atribuições seria assegurar um bom resultado do aluno em testes de desempenho físico.

    Como a educação física escolar está discutindo o papel do esporte na sociedade e não apenas reproduzindo seus valores dentro dos muros escolares? Que essa questão perdure e incomode outros a discutir, rever e fomentar práticas esportivas adequadas e não meras reprodutoras de valores e condutas.

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  • TANI, G. et. al. Educação Física Escolar: Fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista. 26. ed. São Paulo: EPU: Editora Universidade de São Paulo, 1988.

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 18 · N° 188 | Buenos Aires, Enero de 2014
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