efdeportes.com

Gradiente status socioeconômico e saúde: algumas 

considerações sobre a epidemia de HIV/aids no Brasil

Relación entre status económico y salud: algunas consideraciones sobre la epidemia de HIV/sida en Brasil

 

*Doutoranda em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento

e Planejamento Regional – CEDEPLAR/UFMG

**Mestre em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros, Unimontes

***Especialista em Docência do Ensino Superior pelo Instituto Superior

de Educação – ISEIB, Certificação Green Belt (com ênfase em Estatística

Descritiva e Inferencial – Metodologia “Seis Sigma”)

Marília Borborema Rodrigues Cerqueira*

Máximo Alessandro Mendes Ottoni**

Soraya Cavalcante Nunes Ottoni***

mariliaborborema@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          A relação entre status socioeconômico e saúde tem sido estudada por pesquisadores, buscando entender a natureza dessa relação, como também a sua direção causal. Em geral, indivíduos de melhor status socioeconômico têm melhor saúde, existindo um consenso em torno da existência de uma relação causal negativa entre status socioeconômico e resultados de saúde, indicadores de morbidade e/ou mortalidade, ou seja, baixas morbidade e mortalidade são registradas para os indivíduos de maior status socioeconômico. O objetivo deste trabalho é registrar algumas considerações sobre a possibilidade de existência do gradiente status socioeconômico e saúde, restringindo-se as análises ao caso do HIV/aids no Brasil. O tema foi problematizado na seguinte pergunta: existe o gradiente status socioeconômico e saúde, no caso do HIV/aids no Brasil? Para tanto, utilizou-se pesquisa bibliográfica, visando conhecer a produção acadêmica sobre o gradiente, e aplicando a teoria à epidemia de HIV/aids brasileira. Entre os resultados, por um lado, foram registrados alguns casos que fogem à regra do gradiente status socioeconômico e saúde, como o paradoxo hispânico (baixa mortalidade e baixo status socioeconômico) e o gradiente positivo entre status socioeconômico (medido pela escolaridade e riqueza) e HIV/aids nos países da África subsahariana. Por outro lado, há sociedades no mundo duramente afetadas pela epidemia e que contam com escassos recursos humanos e financeiros e sociedades substancialmente menos afetadas pela epidemia, detentoras de alternativas-padrão de alto custo e complexidade para o monitoramento, prevenção e tratamento das pessoas vivendo com HIV/aids. Para o caso da epidemia de HIV/aids brasileira, a literatura aponta evidências da presença do gradiente, mas também aponta diversas questões e dúvidas indicativas da necessidade de novas investigações. Ressalta-se o caráter sinérgico dos agravos e problemas sociais, expondo contingentes populacionais a maior vulnerabilidade à infecção pelo HIV. Em se tratando da vida após o diagnóstico e da adesão à terapia antirretroviral, a literatura indica uma relação negativa entre status socioeconômico e qualidade da vida com HIV/aids, considerando-se que a desigualdade e a exclusão que afetam algumas pessoas que vivem com o HIV/aids, potencializam a vulnerabilidade desse grupo. Percebe-se, portanto, que há a idéia do gradiente, embora não explícito, ligado à idéia de vulnerabilidade; faz-se necessário o reconhecimento da sinergia aids, exclusão, desigualdade, para o melhor entendimento da epidemia no Brasil e para fundamentar as políticas sociais para as pessoas vivendo com o HIV/aids.

          Unitermos: HIV/AIDS. Status socioeconômico. SES. SES e saúde.

 

          Conforme orientação do Programa Nacional de DST e Aids – PN-DST/AIDS, o agravo em saúde “aids” deve ser escrito em letras minúsculas como qualquer outro substantivo. “Aids” é o agravo quando corresponde à primeira palavra de uma oração ou frase ou quando faz parte de um título com esse padrão de formatação (todas as palavras iniciam com maiúscula). AIDS, com letras maiúsculas, é a sigla da doença em inglês e denomina a epidemia em português (Cunha, 2006).

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 183, Agosto de 2013. http://www.efdeportes.com

1 / 1

1.     Introdução

    Nos últimos anos, os pesquisadores têm estudado a relação entre status socioeconômico e saúde, buscando entender a natureza dessa relação, como também a sua direção causal. Em geral, indivíduos de melhor status socioeconômico têm melhor saúde, logo, menor mortalidade, o que instiga a pesquisa sobre os mecanismos pelos quais o status socioeconômico pode influenciar os estados de saúde.

    É recorrente, na literatura, a existência de um gradiente entre status socioeconômico e saúde, observando-se que o primeiro pode afetar a saúde e os comportamentos relacionados à saúde de diversas formas; ou seja, há consenso em torno da existência de uma relação causal negativa entre status socioeconômico e resultados de saúde, indicadores de morbidade e/ou mortalidade.

    Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é registrar algumas considerações sobre a possibilidade de existência do gradiente status socioeconômico e saúde, restringindo-se as análises ao caso do HIV/aids no Brasil. O tema foi problematizado na seguinte pergunta: existe o gradiente status socioeconômico e saúde, no caso do HIV/aids no Brasil?

    Para tanto, utilizou-se pesquisa bibliográfica, visando conhecer a produção acadêmica sobre o tema. Buscou-se conhecer trabalhos que escrevem sobre o gradiente, aplicando a teoria à epidemia de HIV/Aids brasileira. Dada a importância do tema, como também as características atuais da epidemia de Aids no Brasil, faz-se necessário o desenvolvimento de estudos como este e mais amplos, no que se refere à metodologia de trabalho empregada. Os resultados destes estudos podem subsidiar a elaboração de políticas de prevenção e promoção de saúde a partir de resultados que reúnam, além das características da epidemia, o registro das possíveis associações e relações causais com variáveis sobre o status socioeconômico das populações acometidas e/ou vulneráveis ao risco de infecção pelo HIV.

2.     O gradiente

    O gradiente, segundo alguns autores, como Adler e Ostrove (1999), é a existência de associações de diversos indicadores de status socioeconômico e saúde. Para mais que uma atenção seletiva dos pesquisadores, essa associação entre status socioeconômico e saúde, explorada inicialmente pelo estudo de Whitehall (estudo sobre o gradiente de mortalidade em um grupo homogêneo de trabalhadores civis em diferentes posições hierárquicas), é a resposta para as diferenças em saúde e longevidade observadas e ranqueadas por status socioeconômico (Goldman, 2001; Turra, Goldman, 2007).

    Há um consenso entre os pesquisadores em afirmar a existência do gradiente: as diferenças observadas na saúde dos indivíduos podem ser explicadas, na sua maioria, por um conjunto de processos causais (Goldman, 2001), estritamente relacionados ao status socioeconômico – indivíduos de melhor status socioeconômico têm melhor saúde (Adler, Ostrove, 1999); a mortalidade é menor para indivíduos de renda maior (Deaton, 2001). O maior número de indicadores de saúde tem associação com o status socioeconômico – indicado por, entre outros, bens, ocupação, escolaridade, ou renda –, relacionados por mecanismos causais, melhor do que por erros de medida e efeitos de seleção (Goldman, 2001). Deaton (2001) corrobora a afirmativa ao citar, no âmbito da saúde pública, que somente uma fração do gradiente pode ser representada por causalidade reversa, comportamentos de risco ou acesso desigual aos serviços de saúde.

    Também Smith e Kington (1997), em respeito ao gradiente, já afirmavam que o status socioeconômico pode afetar a saúde e os comportamentos relacionados à saúde de várias formas, uma vez que a restrição orçamentária dos indivíduos, determinada pela renda e riqueza, definia as possibilidades de investimento na saúde. Contudo, os autores ressaltaram a complexidade da questão do gradiente, visto que tanto renda quanto riqueza – indicadores do status socioeconômico, têm associações empíricas e conceituais distintas com saúde, além de ser uma relação não-linear. Como ainda, o efeito do gradiente é menor para idades acima de 50 anos.

    Portanto, uma análise compreensiva do gradiente requer a inclusão de informações macroeconômicas e fatores sociais, como também do contexto social mais próximo e fatores comportamentais e biopsicológicos individuais, entre outras variáveis (Adler, Ostrove, 1999; Marmot et al., 1997). Há a necessidade de dados mais completos – longitudinais, de acordo com Smith e Kington (1997); como também de dados de origem biológica – biomarcadores (Goldman, 2001). De forma geral, os autores são incisivos ao falar da necessidade de novas pesquisas sobre o gradiente (Deaton, 2001; Goldman, 2001; outros); o que se reforça pelos achados que apontam exceções ao gradiente usualmente encontrado nas populações estudadas, referindo-se aqui ao paradoxo hispânico (Goldman et al., 2006; Turra, Goldman, 2007) e ao gradiente encontrado para alguns países subsaharianos por Fortson (2007) – apresentado no tópico seguinte.

3.     Visitando países: algumas evidências do gradiente socioeconômico e HIV/aids

    A partir do arcabouço teórico do gradiente entre status socioeconômico e saúde, buscou-se conhecer alguns estudos da aplicação desses conhecimentos ao caso da epidemia de HIV/Aids.

    Inicialmente, vale registrar o estudo de Fortson (2007), com dados da DHS 2003 e 2004 para alguns países da África subsahariana, cujos resultados apontaram a existência de um gradiente distinto daquele observado em outras pesquisas: a infecção pelo HIV é positivamente correlacionada com o status socioeconômico, ou seja, as taxas de infecção por HIV são maiores entre os mais escolarizados. A autora confirmou o resultado ao considerar, também, a idade, o setor de residência e a região de residência; e verificou um gradiente mais fraco e variável quando analisou por riqueza (medida por bens domiciliares), ao que ela atribuiu erros de medida.

    A autora afirma que o status HIV é um importante componente de saúde entre adultos africanos, atualmente, cuja prevalência justificaria o gradiente contrário encontrado – e confirma seus achados com outros autores. Para as mulheres, também foi encontrado um gradiente semelhante, ressaltando-se que não somente as mais escolarizadas têm maior risco de infecção ao HIV, como também são as mais prováveis de fazer sexo antes do casamento e de utilizarem preservativos. Fortson (2007) associa positivamente o uso de preservativos ao sexo de risco, como ainda o considera uma proxy para outros fatores de risco para a infecção ao HIV. Não obstante os resultados registrados, a autora chama a atenção para o fato de o gradiente positivo revelar uma maior probabilidade de sobrevivência dos mais educados e infectados pelo HIV.

    Em oposição a estes achados, Wood et al. (2002) encontraram evidências de que menor status socioeconômico é associado com menor sobrevivência à infecção pelo HIV, a maior letalidade/mortalidade, ao estudarem os dados de pacientes em uso da HAART (Highly Active Antiretroviral Therapy) no Canadá, entre 1996 e até 2000. Os indivíduos com os mais baixos status socioeconômicos tiveram menor probabilidade de prescrição da terapia HAART, analisando o status socioeconômico por local de moradia (definido a partir do código postal).

    Também nessa direção, Zierler et al. (2000) concluíram que a pobreza, ou a privação econômica, é um determinante da carga de doença de uma população, calculando as incidências da aids (nome da síndrome clínica da doença causada pelo HIV – human immunodeficiency vírus) em Massachusetts, a partir dos dados do Departamento de Saúde Pública do estado, entre 1988 e 1994, e tomando-se como indicador econômico as condições socioeconômicas dos bairros (educação e classe ocupacional) e a densidade populacional. As incidências foram calculadas por posição socioeconômica, raça/etnia e sexo. De acordo com esses autores, a incidência de aids e a incidência acumulada mostram um padrão monotônico de aumento com o decréscimo dos recursos econômicos e aumento da densidade populacional, verificando-se as maiores incidências para as populações negra e hispânica. Não obstante, tratando-se de questões de ordem teórica e da terminologia empregada, os autores não fazem referência direta ao conceito do gradiente.

    Em estudo mais recente, observa-se que outros autores (Goldman et al., 2006), embora confirmarem o paradoxo hispânico e para populações da América Latina, acreditam ser provável a presença da associação negativa entre status socioeconômico e mortalidade pelo HIV/aids desses mesmos grupos, corroborando os resultados de Zierler et al. (2000) no que se referem aos hispânicos, e retomando a ideia do gradiente. Também o estudo de Mba (2007), apesar de não tratar do gradiente, confirma a maior mortalidade por aids em países em desenvolvimento e nos mais pobres.

    Nesse sentido, Bastos (2008) analisa a pandemia de aids na sua terceira década, e aponta “o profundo cisma que opõe sociedades duramente afetadas pela epidemia e que contam com recursos humanos e financeiros escassos” (p. 1719) e sociedades substancialmente menos afetadas pela epidemia, detentoras de alternativas-padrão de alto custo e complexidade para o monitoramento, prevenção e tratamento das pessoas vivendo com o HIV/aids. O autor remete à ideia do gradiente, embora não explicitá-la, e conclui citando a premente necessidade de uma ética solidária entre as diferentes sociedades e segmentos sociais no enfrentamento do HIV/aids.

    Conforme a representação simbólica do cisma proposta por Bastos (2008), na primeira situação encontra-se a Índia, pelo fato de ter uma numerosa população e uma cultura atípica – na qual as mulheres têm posição estigmatizada. Os estudos para a Índia apresentaram a existência do gradiente de natureza diversa (Araújo, 2008). Assim, pode-se falar de um gradiente em referência à associação entre conhecimento sobre a aids e educação e riqueza (para homens e mulheres) – os mais escolarizados e mais ricos têm maior conhecimento; entre estigma ao HIV/aids e educação – os mais escolarizados têm menor estigma; e uso de preservativo e educação e riqueza – os mais escolarizados e mais ricos usam mais o preservativo (Araújo, 2008).

    Portanto, considerando-se as várias situações existentes e os diferentes achados pelos autores consultados, faz-se necessário o desenvolvimento de novas pesquisas visando conhecer os possíveis gradientes no caso do HIV/aids, como também os prováveis paradoxos.

4.     O caso brasileiro

    No que diz respeito ao Brasil, à possível existência do gradiente no caso do HIV/aids, os estudos consultados não são especificamente sobre o gradiente, no entanto, apontam algumas evidências nesse sentido.

    Tratando-se das características atuais da epidemia, no cenário da pandemia o Brasil se destaca por ser protagonista em desenvolver um modelo universal de resposta, como também no número elevado de casos de aids, tendo em vista o tamanho da sua população (Grangeiro et al., 2006; Barbosa, 2002). De forma geral, o perfil epidemiológico da doença sofreu modificações ao longo do tempo, passando a ser disseminada por relações heterossexuais e, por conseguinte, contaminando as mulheres. O dinamismo da epidemia aponta para o envolvimento das populações socialmente mais vulneráveis e a análise da evolução espacial indica que a aids não se distribui de forma homogênea entre as regiões brasileiras, e deixa de ser uma doença dos grandes centros, atingindo municípios menores (Barbosa, 2002; Dourado et al., 2006; Szwarcwald et al., 2000; Castilho, Szwarcwald, 1998; Cohn, 1997; Parker, Camargo Júnior, 2000).

    Neste momento, vale ressaltar as particularidades dos estudos sobre HIV/aids no Brasil, tendo em vista o desenho deles: inicialmente, falava-se em “grupos de risco” e na doença dos quatro H’s, associando a aids aos hemofílicos, homossexuais, haitianos e usuários de heroína (Bastos, 2006). As taxas de incidência e características atuais da epidemia indicaram a saturação desses estudos, uma vez que não existem grupos de risco e comportamentos de risco – mas, sim, situações de vulnerabilidade. Há, também, o equívoco sobre a droga injetada, a heroína, e que permitiria a associação positiva com o status socioeconômico, considerando-se o valor de compra da heroína; isso fez com que fosse excluído dos estudos um grande contingente de usuários de drogas cujas taxas de infecção pelo HIV são mais elevadas – os usuários de cocaína injetada (Bastos, 2006). O processo de injeção da heroína é mais espaçado e utilizam-se acidificantes no seu preparo, o que reduz o risco associado ao compartilhamento.

    Posteriormente, as pesquisas seguiam a linha envolvendo os “comportamentos de risco”, entendendo-se que a infecção não era determinada pelas características dos grupos populacionais, mas sim por comportamentos individuais. Neste modelo, são incluídos os estudos que falam do padrão de disseminação via relações heterossexuais e sexo de risco, resultando em razões de sexo cada vez menores, decrescendo de 18,9 em 1984 para 1,5 em 2004, chegando a 0,9 na faixa de 13 a 19 anos em 2004 (Dourado et al., 2006), como ainda aqueles que associam alguns comportamentos de risco ao status socioeconômico do indivíduo, evidenciando-se um gradiente, cuja relação é negativa. Ou seja, remetendo à citação de Marmot et al. (1997), e cuja ideia está presente em publicações brasileiras sobre HIV/aids (como em Pinto et al., 2002), as práticas/comportamentos de saúde mais pobres são mais presentes entre aqueles indivíduos das posições sociais mais baixas.

    Seguindo a abordagem das particularidades sobre os desenhos dos estudos de HIV/aids, este modelo dos “comportamentos de risco”, embora superior ao anterior de “grupos de risco”, não contemplava os fatores sociais da epidemia. Assim, as pesquisas passaram a abordar a questão da “vulnerabilidade” ao risco de infecção por HIV/aids, segundo o conceito de vulnerabilidade cunhado por Mann, Tarantola e Netter (1993): “susceptibilidade ou fatores de indivíduos ou grupo de indivíduos que podem aumentar ou diminuir o risco de ocorrência de um determinado evento”. Logo, foram reconhecidas “as desigualdades econômicas, raciais, étnicas, de gerações e de gênero, entre outras, como fatores potencializadores da vulnerabilidade que, atuando de forma isolada ou sinérgica, favorecem a infecção por HIV, a instalação e a evolução do quadro de Aids” (Grangeiro et al., 2006, p. 5).

    Este conceito de vulnerabilidade tem três dimensões determinantes da disseminação do HIV que podem remeter à ideia do gradiente entre status socioeconômico e saúde: a dimensão individual (cognitiva e comportamental), a social e a organizacional. Estes aspectos, tomados sob a perspectiva de desigualdade social, apontam a maior vulnerabilidade daqueles com menores níveis de escolaridade, os trabalhadores de ocupações mal-remuneradas ou fora do mercado formal, com acesso restrito aos cuidados de saúde e a outras políticas de promoção social e comunitária e, ainda, algumas mulheres, alguns jovens e idosos (Szwarcwald et al., 2000; Cunha, 2006; Garcia et al., 2008). Bastos e Szwarcwald (2000, p.72) chamam a atenção para a possibilidade de, em virtude da maior vulnerabilidade dos setores mais pobres da população, repercutindo no acesso diferenciado aos serviços de saúde, de “estar em curso um processo de disjunção temporal das duas epidemias: a de HIV e a de AIDS”, uma vez que a aids progride mais rapidamente entre esses indivíduos mais pobres, configurando-se o gradiente.

    Retomando-se a questão da escolaridade, Fonseca, Szwarcwald e Bastos (2002) definem os menos escolarizados como mais vulneráveis à infecção pelo HIV; no entanto, ressaltam-se as significativas parcelas de dados ignorados, mormente na epidemia de HIV/aids, em geral. E, falando-se em modelos de vulnerabilidade, o trabalho de Costa-Couto (2007), alerta para o fato de que a desigualdade e a exclusão que afetam a população também afetam as pessoas que vivem com o HIV/aids, potencializando a vulnerabilidade dessas pessoas, principalmente após o diagnóstico. A “vulnerabilidade potencial”, conceito cunhado pela autora (COSTA-COUTO, 2007), tem bases em desigualdades estruturais, significando que a possibilidade de enfrentamento integral ao HIV/aids, no Brasil, é pequena se a responsabilidade da resposta for prioridade apenas da política setorial de saúde pública; a autora sugere normalizações jurídicas e políticas visando à garantia dos direitos sociais e ao delineamento de programas específicos de atenuação das vulnerabilidades. “O pleno reconhecimento da sinergia Aids, exclusão, desigualdade e ausência de políticas sociais possibilitará a defesa de uma política pública igualmente sinérgica [...]” (COSTA-COUTO, 2007, p. 162-3).

    Não obstante o registro das evidências da presença do gradiente no caso brasileiro do HIV/aids, faz-se necessário citar algumas críticas aos estudos consultados, em voga na literatura, principalmente depois da tentativa do Ministério da Saúde de “racializar” a epidemia de aids no Brasil (Fry et al., 2007). 

    A saber: 

  1. O problema de usar proporções em vez de taxas, visto que as proporções não são medidas de risco. Barata (2007, p. 513) apresenta dados que confirmam que o risco de contrair HIV/aids continua sendo alto para os usuários de drogas injetáveis (taxa de incidência de 169,2 casos por 100 mil usuários em homens e 161,8 casos por 100 mil usuários em mulheres) e para os homossexuais masculinos (95,3 casos por 100 mil homossexuais), comparando-se às incidências para homens e mulheres heterossexuais (8,0 casos e 10,4 casos por 100 mil, em ordem).

  2. Quanto à classificação de raça/cor, há discrepâncias entre a autoclassificação – utilizada nos inquéritos (Censo e PNAD, por exemplo) e que servem de denominadores dos indicadores, e a heteroclassificação, feita pelos profissionais de saúde ao notificar os casos de infecção por HIV e/ou aids. E, ainda, a raça/cor é um indicador de status socioeconômico?

  3. Problemas nos sistemas de notificação, de forma geral, tendo em vista o grande número de dados ignorados e desconhecidos, como também no interregno entre o diagnóstico e a notificação.

    Somam-se às críticas aos estudos, algumas dúvidas que se apresentam ao término deste trabalho, já presentes na literatura e instigadoras de novas pesquisas e estudos:

  1. Reportando-se aos estudos de Goldman (2001), Smith e Kington (1997), Deaton (2001), entre outros, paira a questão sobre HIV/aids: baixo status socioeconômico afeta a saúde e os comportamentos de saúde, por exemplo, a prática do sexo de risco, ou o pior estado de saúde, decorrente do diagnóstico e evolução da infecção pelo HIV responde por pior status socioeconômico?

  2. E, sob a perspectiva da vulnerabilidade ao HIV/aids, as condições de vulnerabilidade já não seriam decorrentes da existência do gradiente, atribuindo aos contingentes populacionais menos “empoderados” da sociedade (Cunha, 2006; Bastos, Szwarcwald, 2000) a condição de mais vulneráveis à infecção? Nesse sentido, a tentativa do Ministério da Saúde em racializar a epidemia não seria a confirmação do gradiente, a despeito dos problemas com os dados de classificação raça/cor?

5.     Considerações finais

    A literatura apresenta a existência de um gradiente entre status socioeconômico e saúde, sendo a relação causal negativa – baixas morbidade e mortalidade são registradas para os indivíduos de maior status socioeconômico. Há, contudo, alguns casos como o paradoxo hispânico e o gradiente positivo entre status socioeconômico (medido pela escolaridade e riqueza) e HIV/aids nos países da África subsahariana.

    Para o caso da epidemia de aids brasileira, a literatura aponta evidências da presença do gradiente, mas também aponta diversas questões e dúvidas indicativas da necessidade de novas investigações. Vale registrar que, para além das evidências da existência do gradiente no caso do HIV/aids no Brasil, faz-se necessário considerar o caráter sinérgico dos agravos e problemas sociais, expondo contingentes populacionais a maior vulnerabilidade à infecção pelo HIV e exigindo novas posturas da sociedade que signifiquem, enfim, o resgate da solidariedade entre os indivíduos.

Referências

  • ADLER, N. E.; OSTROVE, J. M. Socioeconomic Status and Health: What We Know and What We Don’t. Annals New York Academy of Sciences. USA, 1999.

  • ARAUJO, P. Socio-Economic Status, HIV/AIDS Knowledge and Stigma, and Sexual Behavior in India. CAEPR Working Paper. Indiana University Bloomington, 2008.

  • BARATA, R. B. A politização dos riscos. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 23(3): mar. 2007.

  • BARBOSA, L. M. A dinâmica da epidemia de AIDS nas regiões Nordeste e Sudeste. In: Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 13, 2002, Ouro Preto. Violências, o estado e a qualidade de vida da população brasileira: anais. Belo Horizonte: ABEP, 2002.

  • BASTOS, F. I. Aids na terceira década. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2006.

  • BASTOS, F. I. “Get back to where you once belonged”: monitoring the AIDS pandemic in the 21st century. Ciência & Saúde Coletiva. 13(6), 2008.

  • BASTOS, F. I.; SZWARCWALD, C. L. AIDS e pauperização: principais conceitos e evidências empíricas. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 16(Sup. 1), 2000.

  • BERQUÓ, E. et al. Uso do preservativo: tendências entre 1998 e 2005 na população brasileira. Revista Saúde Pública. São Paulo: USP, 42(Supl), 2008.

  • CASTILHO, E. A.; SZWARCWALD, C. L. Mais uma pedra no meio do caminho dos jovens brasileiros: a AIDS. In: Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília: CNPD, 1998. v. 2.

  • COHN, A. Considerações acerca da dimensão social da epidemia de HIV/Aids no Brasil. In: Simpósio satélite, 1997, Brasília. A epidemia da AIDS no Brasil: situação e tendências. Brasília: Ministério da Saúde, 1997.

  • COSTA-COUTO, M. H. A vulnerabilidade da vida com HIV/aids. 2007. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social – IMS da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, 2007.

  • CUNHA, J. V. Q. da. Vulnerabilidade, gênero e HIV: um estudo sobre mulheres e homens heterossexuais, Brasil – 1998. 2006. 169 p. Tese (Doutorado em Demografia) – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de Minas Gerais, 2006.

  • DEATON, A. Relative deprivation, inequality, and mortality. Research Program in Development Studies & Center for Health and Wellbeing. USA, Princeton University, 2001.

  • DOURADO, I. et al. Tendências da epidemia de Aids no Brasil após a terapia anti-retroviral. Revista de Saúde Pública. São Paulo: USP, 40(Supl), 2006.

  • FONSECA, M. G. P.; SZWARCWALD, C. L.; BASTOS, F. I. Análise sociodemográfica da epidemia de Aids no Brasil, 1989-1997. Revista de Saúde Pública. São Paulo: USP, 2002, 36(6).

  • FORTSON, J. G. The gradient in Sub-Saharan Africa: socioeconomic status and HIV/AIDS. Becker Center on Chicago Price Theory. USA, University of Chicago, 2007.

  • FRY, P. H. et al. AIDS tem cor ou raça? Interpretação de dados e formulação de políticas de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 23(3): mar. 2007.

  • GARCIA, S. et al. Práticas sexuais e vulnerabilidades ao HIV/aids no contexto brasileiro. Considerações sobre as desigualdades de gênero, raça e geração no enfrentamento da epidemia. In.: MIRANDA-RIBEIRO, P.; SIMÃO, A. B. Qualificando os números: estudos sobre saúde sexual e reprodutiva no Brasil. Belo Horizonte: ABEP: UNFPA, 2008. (Demografia em debate, v. 2).

  • Goldman, N. Social Inequalities in Health: Disentangling the Underlying Mechanisms. Annals New York Academy of Sciences. USA, 2001.

  • GOLDMAN, N. et al. Another Hispanic Paradox: Differences in Socioeconomic Gradients in Health Between White and Mexican-Origin Populations. American Journal of Public Health. December 2006, v. 96, n. 12.

  • GOLDMAN, N. et al. Socioeconomic Gradients in Health for White and Mexican-Origin Populations. American Journal of Public Health. December 2006, Vol. 96, No. 12.

  • GRANGEIRO, A. et al. UNGASS-HIV/Aids: balanço da resposta brasileira, 2001-2005. Revista Saúde Pública. São Paulo: USP, 40(Supl), 2006.

  • GUPTA, S. et al. Networks of sexual contacts: implications for the pattern of spread of HIV. AIDS 1989.

  • MANN, J.; TARANTOLA, D. J. M.; NETTER, T. W. (Orgs.). A aids no mundo. Organizadores da edição brasileira, Richard Parker, Jane Galvão, José Stalin Pedroso. Rio de Janeiro: Relume Dumará: ABIA: IMS, UERJ, 1993.

  • MARMOT, M. et al. Social inequalities in health: next questions and converging evidence. Soc. Sci. Med. Vol. 44, No. 6, 1997.

  • MBA, C. J. Impact of HIV/AIDS mortality on South Africa’s life expectancy and implications for the elderly population. African Journal of Health Sciences. v. 14, n. 3-4, jul-dec, 2007. p. 201-211.

  • MOREIRA, A. L. Inquietações positivas para todas as idades. RADIS: comunicação em saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, set. 2008. n. 73.

  • PARKER, R.; CAMARGO JÚNIOR, K. R. Pobreza e HIV/Aids: aspectos antropológicos e sociológicos. Cadernos de Saúde Pública. São Paulo: USP, 16(Supl), 2000.

  • PINTO, M. D. et al. Juventudes, raça e vulnerabilidades. Revista Brasileira de Estudos de População. Campinas/SP: NEPO/UNICAMP, 2002. v. 19, n. 2.

  • SMITH, J. P.; KINGTON, R. S. Race, Socioeconomic Status, and Health in Late Life. In.: MARTIN, L. G.; SOLDO, B. J. (ed.). Racial and Ethnic Differences in the Health of Older Americans. Washington, D.C.: National Academy Press, 1997.

  • SZWARCWALD, C. L. et al. A disseminação da epidemia da AIDS no Brasil, no período de 1987-1996: uma análise espacial. Cadernos de Saúde Pública. São Paulo: USP, 16(Supl), 2000.

  • TURRA, C. M.; GOLDMAN, N. Socioeconomic Differences in Mortality Among U.S. Adults: Insights Into the Hispanic Paradox. Journal of Gerontology: SOCIAL SCIENCES. The Gerontological Society of America, 2007, vol. 62B, no.3.

  • WOOD, E. et al. Socioeconomic status, access to triple therapy, and survival from HIV-disease since 1996. AIDS 2002. 16: 2065-2072.

  • ZIERLER, S. et al. Economic Deprivation and AIDS Incidence in Massachusetts. American Journal of Public Health. July 2000, Vol. 90, No. 7.

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
Búsqueda personalizada

EFDeportes.com, Revista Digital · Año 18 · N° 183 | Buenos Aires, Agosto de 2013  
© 1997-2013 Derechos reservados