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O processo civilizador e o esporte em Norbert Elias

El proceso de civilización y el deporte en Norbert Elias

The civilizing process and sports in Norbert Elias

 

*Professor Associado da UFMT – MT

Atualmente faz pos-doutoramento em Educação Física na UFSC, SC

Professor do curso de Educação Física da UNOESC campus de Videira, SC

Doutorando em Educação Física pela UFSC, SC

***Professor Titular do Centro de Desportos da UFSC, SC

Dr. José Tarcísio Grunenvaldt*

Aguinaldo Cesar Surdi**

Dr. Elenor Kunz***

aguinaldosurdi@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O artigo procura mostrar como se configura o esporte na obra do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990). Queremos mostrar que o tratamento dado ao esporte pelo autor pode ser compreendido como um fenômeno de suma importância na sociedade contemporânea. Para falar do esporte, a partir da leitura de Elias, faz-se necessário alargar esse conceito para processo de desportivização, sendo que tal desportivização não pode ser analisada sem ser relacionada ao contexto da “civilização” – discussão que marcou os estudos das ciências humanas nas primeiras décadas do século XX. O esforço de Norbert Elias consiste em singularizar a análise acerca do “processo da civilização”, na medida em que associa ao processo civilizador as investigações sociogenéticas e psicogenéticas.

          Unitermos: Esporte. Desportivização. Processo civilizador. Sociedade.

 

Resumen
          El artículo muestra cómo se configura el deporte en la obra del sociólogo alemán Norbert Elias (1897-1990). Queremos mostrar que el tratamiento dado a los deportes por el autor puede ser entendida como un fenómeno de suma importancia en la sociedad contemporánea. Para hablar sobre el deporte, desde de la lectura de Elías, es necesario ampliar este concepto al proceso de deportivización, en tanto tal deportivización no puede ser analizada sin su relación con el contexto de la "civilización" - que marcó la discusión de los estudios de humanidades, la primera décadas del siglo XX. El esfuerzo de Norbert Elias significa un singular análisis sobre el "proceso de civilización", ya que asocia el proceso de civilización a las investigaciones sociogenéticas y psicogenéticas.

          Palabras clave: Deporte. Deportivización. Proceso de civilización. Sociedad.

 

Abstract

          The article shows how to configure the sport in the work of German sociologist Norbert Elias (1897-1990). We want to show that the treatment given to sports by the author can be understood as a phenomenon of paramount importance in contemporary society. To talk about the sport, from the reading of Elijah, it is necessary to extend this concept to sportification process, and such sportification can not be analyzed without being related to the context of "civilization" - which marked the discussion of humanities studies the first decades of the twentieth century. Norbert Elias's effort is to single out the analysis about the "process of civilization", as it combines the civilizing process and the investigations sociogenetic and psychogenetic.

          Keywords: Sport. Sportification. Civilizing process. Society.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 159, Agosto de 2011. http://www.efdeportes.com

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Introdução

    O desenvolvimento moral do indivíduo, que resulta das relações entre a afetividade e a racionalidade, encontra no universo da cultura corporal um contexto bastante peculiar, no qual a intensidade e a qualidade dos estados afetivos experimentados corporalmente nas práticas da cultura de movimento literalmente afetam as atitudes e decisões racionais (PCNs, 1998, p. 34)

    Inicialmente, faz-se necessário um pequeno preâmbulo e, para tanto, terei de me apoiar nos ombros de Eric Dunning, no seu prefácio do livro A busca da excitação, para dizer sobre o fato de o desporto ter sido desprezado como área de investigação da sociologia.

    A sociologia do desporto – como área de especialização – é recente, embora alguns autores considerem que a sociologia clássica de Weber já tenha dado destaque ao desporto como uma das expressões mais características da modernidade. Para Dunning, essa área de conhecimento se destacou, principalmente, a partir da década de 1960, nos Estados Unidos, Canadá e na Alemanha. Contudo, quando da produção da obra1, a sociologia do desporto teria sido, em grande medida, o resultado de especialistas de educação física, um grupo que, devido ao seu envolvimento real e imediato na área, não teria mantido o devido distanciamento para uma análise sociológica fecunda, e nem mesmo se circunscrito àquilo que se pode designar como “implantação orgânica” das preocupações centrais da sociologia.

    Por certo, seu olhar marcadamente sociológico, percebe que muito do que foi escrito situa o fulcro de suas preocupações nos problemas específicos da educação física, cultura física e desporto. Isso dá a impressão de que as análises não buscam o distanciamento necessário, não superando o caráter meramente empirista das observações.

    Dunning é categórico ao afirmar que a maioria dos sociólogos deve concordar que muito do trabalho realizado na área da sociologia do desporto, até o momento da escrita do prefácio a que fiz referência, se encontra longe de despertar interesse fora do quadro da educação física, ou ainda, de chamar atenção das “principais correntes” sociológicas.

    É possível que a sociologia do desporto, como área de especialização, não tenha se configurado como espaço de grande relevância, pelo fato de a sociologia ter se orientado para o que se convencionou denominar como o campo restrito dos aspectos “sério” e “racional” da vida, “o que teve como efeito que o divertimento, o prazer, o jogo, as emoções e as tendências ‘irracionais’ e ‘inconscientes’ do homem e da mulher tivessem merecido escassa atenção no âmbito da teoria e da investigação sociológicas” (DUNNING, 1992, p. 16).

    Neste sentido, é plausível – podendo-se concordar com o autor acerca de sua visão – dizer que o desporto foi ignorado como um objeto de reflexão sociológica e de investigação, especialmente, porque é tido como algo que se localiza junto aos aspectos negativos do complexo dicotômico, do que convencionalmente se aceita como produtivo, como trabalho e lazer, espírito e corpo, seriedade e prazer, econômico e não-econômico. É oportuno destacar, nas palavras do autor, como ele percebe esse entendimento:

    (...) no quadro da tendência que orienta o pensamento reducionista e dualista ocidental, o desporto é entendido como uma coisa vulgar, uma atividade de lazer orientada para o prazer, que envolve o corpo mais do que a mente, e sem valor econômico. Em conseqüência disso, o desporto não é considerado como um fenômeno que levante problemas sociológicos de significado equivalente aos que habitualmente estão associados com os negócios “sérios” da vida econômica e política (DUNNING, 1992, p. 17).

    Dunning, talvez por ser um estudioso da sociologia que foge dessa tendência anunciada acima, reclama para o desporto o espaço, sugerindo que o mesmo se constitui como um campo de considerável significado social. Para tanto, destaca que, pelo grau de pretensão, que os sociólogos levam tão a sério, tendo em vista considerarem a disciplina como uma ciência de compreensão da sociedade, estudando as sociedades em todos os seus aspectos, decerto o esporte está a reclamar teorização e investigação sociológica, tendo em vista seu crescente significado social para os indivíduos na sociedade.

O lugar do esporte no processo civilizador

    Tendo em vista as considerações acima, com este artigo procura-se localizar o lugar destinado na obra do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) para o esporte, bem como o tratamento que dedicou a esse fenômeno que cresce em importância na sociedade contemporânea. Para falar do esporte, a partir da leitura de Elias, faz-se necessário alargar esse conceito para processo de desportivização, sendo que tal desportivização não pode ser analisada sem ser relacionada ao contexto da “civilização” – discussão que marcou os estudos das ciências humanas nas primeiras décadas do século XX. O esforço de Norbert Elias consiste em singularizar a análise acerca do “processo da civilização”, na medida em que associa ao processo civilizador as investigações sociogenéticas e psicogenéticas. Para tal associação é que se deve atentar, pois ali estaria a chave com a qual o fenômeno “viria ganhar contornos absolutamente novos” (WAIZBORT, 1997, p. 14).2

    Mas como a psicogênese e a sociogênese irão concorrer na obra de Elias, dando-lhe um caráter de singularidade e originalidade no âmbito das discussões sociológicas da Alemanha da década de 1920? Essas bases conceituais só podem ser lidas na obra do autor, na tentativa de entender certos aspectos das sociedades humanas não, contudo, “abstraindo-as de sua dinâmica, de sua gênese, de seu caráter como processo, de seu desenvolvimento” (ELIAS, 1994, p. 234). Com efeito, ambos os conceitos na sua obra só fazem sentido quando relacionados ao desenvolvimento, o que, para ele, só é possível na longa duração.

    A psicogênese e a sociogênese devem estabelecer uma mútua relação, no entender de Elias, tendo em vista que ambas comparecem como “aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo prazo”. Para Waisbort, das duas dimensões e de suas dependências mútuas, Elias desenvolve uma teoria da civilização – como teoria das transformações do comportamento e das estruturas da personalidade; e uma teoria da formação do Estado – como teoria do desenvolvimento social. Assim, a psicogênese do indivíduo e a sociogênese do Estado estão entrelaçadas.

    No processo da civilização, a psicogênese está relacionada ao desenvolvimento de longa duração das estruturas da personalidade humana e as modificações do comportamento. Elias atentou para as estruturas e para os mecanismos de regulação e controle dos impulsos, a fim de estudar como se forma o “superego”. Seu destaque é para a passagem da coação externa para os mecanismos internos da disciplinarização de si próprio. É nessas investigações psicogenéticas que Elias demonstra uma sensibilidade aguçada, ao despertar para os microfenômenos, o que faz resultar uma conjugação original de perspectivas micro e macrossociológicas.

    Por sua vez, concorrendo para a configuração do processo civilizador na dupla relação com a psicogênese, a sociogênese diz respeito ao desenvolvimento de longo prazo, das estruturas sociais. Em suas pesquisas, Elias procurou evidenciar, com dados empíricos, as transformações da sociedade, relacionando o processo da civilização com o processo de formação e consolidação do Estado moderno.

    Assim, com a assunção do Estado, acontecia um processo de centralização rumo à monopolização do território, do uso da violência, de cobranças de tributos, tendo como resultante “um crescente grau de dependência e funcionalização, coordenação, regulação e integração do conjunto dos processos sociais” (WAISBORT, 1997, p. 14).

    Mas afinal, por que todo esse preâmbulo sobre a configuração do processo civilizador, se me coube falar sobre o esporte? É que se deve reforçar a posição de Elias, no tocante a “desportivização”, e vislumbrar o esporte como objeto de análise acadêmica mas, para isso, não se pode deixar de agregar os trabalhos de Eric Dunning. Neste sentido, só é possível compreender a posição desses autores quando se admite, junto com eles, que as “formas e os significados do esporte moderno se desenvolveram como parte do processo civilizador” (GEBARA, 2001, p. 20).

    Em um texto de Elias, recentemente publicado no Brasil, Para a fundamentação de uma teoria dos processos sociais (2006), fica clara a posição do autor sobre a necessidade de uma teoria dos processos sociais e da tarefa de diagnosticar e explicar as tendências de longo prazo não-planejadas. Contudo, elas são estruturadas e orientadas, no desenvolvimento de estruturas da sociedade e estruturas da personalidade, que constituem a infra-estrutura do que em geral se denomina de “história”.

    Elias considera que a recepção de tal abordagem teórica vem encontrando impedimentos devido à autocompreensão da sociologia contemporânea como uma disciplina orientada em demasia para o presente, que focaliza o olhar das investigações para as transformações e as relações de curto prazo, no interior dos sistemas sociais dados. Esse entendimento resulta da própria compreensão da divisão acadêmica entre história e sociologia, e aguçada pela proximidade e crescente necessidade de a sociologia estar sujeita à inclusão em projetos de planejamento burocraticamente controlados. Por isso, acaba-se por não compreender o processo de desenvolvimento não-planejado de longo prazo, que ainda continua a ser o suporte para a prática de planejamento de nossos dias, e à qual todo o desenvolvimento planejado continua intrinsecamente ligado.

A investigação sobre o desporto: um caso de quando a descoberta suplanta o método

    No seu estudo sobre o processo civilizador, Elias considera o desporto um objeto digno de preocupações, embora considere que as investigações sociológicas sobre o problema do desporto tenham a responsabilidade de explicar alguns de seus aspectos que os poucos estudos, ao focalizarem tal fenômeno, deixaram de considerar, ou porque não o conheciam antes ou, se o conheciam, era apenas de forma vaga. Só dessa forma, a tarefa de estudos mais sistematizados poderia dar maior segurança ao saber. Enfim, Elias estava consciente de que a compreensão do desporto era conditio sine qua non para o conhecimento da sociedade. Nesse aspecto, ele lança uma crítica às ciências sociais e à sociologia em particular, de estarem correndo o risco de se desintegrarem “num amontoado de especializações profissionais sem ligações entre si” (ELIAS, 1992, p. 40).

    Parece-me que, devido à sua sensibilidade acadêmica, Elias percebeu a necessidade do diálogo entre os diversos campos do saber, pois, só assim, se poderiam verificar contribuições, não apenas quanto ao conhecimento dos desportos, mas também quanto à compreensão das sociedades humanas. Assevera que a dificuldade entre os sociólogos está na incerteza que existe entre eles mesmos quanto ao objetivo da investigação científica. Postula em favor do entendimento de que a finalidade da investigação é a mesma entre as ciências, ou seja:

    (...) é tornar conhecida qualquer coisa previamente desconhecida para os seres humanos. É alargar o conhecimento humano, torná-lo mais seguro ou mais ajustado e, de certo modo, em termos mais técnicos, alargar o fundo dos símbolos humanos a áreas do conhecimento ainda não abrangidas por ele. Como disse, a finalidade é a descoberta. (ELIAS, 1992, p. 40).

    Não obstante, essa finalidade de descoberta tem sido obscurecida e desvirtuada por discussões formais que envolvem o “método” de investigação científica. Sem dúvida que tal mudança de ênfase, da discussão do objetivo e da função da investigação para focalizar o método, resulta, em termos sociológicos, numa sintomática luta de poder. Bastante emblemática é a expressão dessa luta e mais perceptível nos cientistas das ciências naturais, que, juntamente com os filósofos da ciência, se empenham profundamente para fazer crer que o primado e o tipo de leis das ciências naturais podem convencer com o seu poder intelectual e sua legitimidade social sobre a superioridade do método dessas ciências e, em particular, o da física clássica, como o único método legítimo de descoberta científica. Seus defensores possuem, no entanto, uma experiência muito limitada de investigação nas ciências sociais.

    Sendo assim, é necessário esclarecer que

    A sua estratégia de investigação é acima de tudo filosófica ou orientada para uma “história das idéias” tradicionais. No entanto, é preciso dizer claramente e sem equívoco que é possível fazer progredir o conhecimento e realizar descobertas no campo da sociologia com métodos que podem ser muito diferentes dos que são utilizados pelas ciências naturais. O que legitima uma investigação científica não é o método, mas, sim, a descoberta (ELIAS, 1992, p. 41).

    Elias, com sua investigação sobre o desenvolvimento do desporto, sinaliza de modo elucidativo para compreender a ênfase no processo e fugir ao engessamento dos ditames do método. Ele admite que é difícil observar e compreender as características mais específicas dos “desportos”, sem que se faça uma abordagem sob a perspectiva do desenvolvimento, aliada ao método comparativo. Constata que, na atualidade, essas duas vias não têm conseguido visibilidade entre os pesquisadores, ao mesmo tempo em que considera que, com a utilização desses meios, existe campo para a descoberta, cabendo aos sociólogos descobrirem, com seu próprio envolvimento nas pesquisas, quais os métodos de investigação apropriados à realização de descobertas no campo de pesquisa em que quais estão envolvidos.

    A minha experiência demonstra, por razões que não preciso referir aqui, que, para introduzir progressos no estudo da sociedade humana, é indispensável uma abordagem na perspectiva do desenvolvimento. Sociólogos de espírito filosófico, ou que efetuam a análise da “história das idéias”, terão dificuldades, decerto, em compreender que a minha convicção quanto à utilização de uma abordagem no sentido do desenvolvimento adquiriu forma através do próprio trabalho de investigação. Não se trata de uma doutrina filosófica, nem de um axioma escolhido em conseqüência de predileção pessoal. O que não se pode refutar com argumentos filosóficos, desprovidos de preocupações pela evidência empírica. Isso só poderá ser contestado por intermédio da demonstração elaborada com o auxílio da prova adequada que, tal como no caso dos avanços de civilização, em termos de longa duração, não ocorreram as mudanças de direção verificadas no código de conduta humana e de sensibilidade que revelei (ELIAS, 1992, p. 43).

    Com os estudos que envolvem processos de longo prazo, Elias procurou demonstrar que ocorria uma transformação global do código de conduta e sensibilidade na mesma direção.

    Isso é evidenciado pelo autor, através do “método comparativo”, quando focaliza os jogos populares realizados com bola no final da Idade Média, ou mesmo, até o início dos tempos modernos, com o futebol ou o rúgbi, como a expressão do futebol inglês, os quais emergiram e foram difundidos no século XIX, e perceber que neles ocorreu um aumento de sensibilidade em relação à violência.

    Com outro desporto não foi muito diferente, pois essa mesma mudança de direção na longa duração, também se deu no desenvolvimento do boxe. Suas formas mais antigas e mais violentas de pugilato, uma maneira popular com que homens resolviam seus conflitos não eram inteiramente desprovidas de regras. Mas isso não inviabilizava que o uso dos punhos desprotegidos não viesse acompanhado pelo uso das pernas como arma para o combate. Assim, o padrão da luta era ainda bastante flexível.

    Foi somente na Inglaterra que a luta com os nós dos dedos desprotegidos, como em muitos combates corporais, assumiu características de um desporto, ou seja, a luta foi submetida a um rigoroso conjunto de regras que, entre outros artifícios, eliminava por completo a utilização das pernas para agredir o adversário. Destaca-se o aumento da sensibilidade, que é enfatizada no processo de longa duração, pelo uso das luvas e, ao mesmo tempo, pelo acolchoamento delas e a introdução de várias categorias de lutadores do boxe, o que garantia um nível ampliado no âmbito da igualdade de oportunidades.

    De fato, a forma popular de luta só assumiu as características de um “desporto” quando se verificou a conjunção entre o desenvolvimento de maior diferenciação e, de certo modo, de formas mais estritas de um conjunto de regras, e o aumento de proteção dos jogadores quanto aos graves danos que podiam advir dos confrontos.Essas características do boxe enquanto desporto permitem explicar o motivo por que a forma inglesa de boxe foi adaptada como padrão em muitos outros países, substituindo, muitas vezes, formas de pugilato tradicionais, específicas de uma região, como sucedeu em França. (ELIAS, 1992, p. 42).

    Elias procurou as evidências empíricas em processos de longa duração, na passagem dos passatempos, a desportos e sua exportação para outros países, para justificar que, nessa “desportivização” ocorrida na sociedade inglesa, se manifestava um exemplo de um avanço de civilização.

    Mas, então, se poderia indagar. Por que justamente, localizar a gênese do desporto moderno na sociedade inglesa no século XVIII e não em outra qualquer? O que a Inglaterra apresentava de sui generis, no processo civilizador que configurasse a passagem dos passatempos para os desportos como “desportivização”? Esta questão, de fato, vem sendo reiterada pelos interlocutores de Elias, desde a primeira edição do seu artigo sobre A gênese do deporto: um problema sociológico, ávidos por maiores informações sobre a assertiva que chama a atenção para a origem inglesa do desporto.

    Diante da situação, Elias apresentou uma resposta preliminar que trata da caça da raposa como evidência plausível para dar contornos e solidez à assertiva levantada, pois ela oferece um esboço sumário, capaz de apontar um dos aspectos centrais da relação entre o desenvolvimento dos passatempos com as características de desportos e o desenvolvimento de estrutura de poder da sociedade inglesa. Ele queria demonstrar que os estudos do desporto – que não sejam simultaneamente estudos da sociedade – são análises desprovidas de contexto.

    Estudos que desconsideram uma relação contextual, ou o aprofundamento da especialização em temas como o desporto ou a sociedade, admitem assumir para tais objetos identidades próprias. De modo que esses especialistas em estudar a sociedade, a personalidade, e outros que possam aparecer, pensam como se estivessem em sua própria torre de marfim. Dentro dos limites que criam, podem, inclusive, ser conseguidos resultados importantes; contudo, certos problemas não podem ser explorados dentro das fronteiras de uma única especialidade. Por isso, segundo Elias, “A relação entre desenvolvimento da estrutura de poder inglesa e o desenvolvimento dos passatempos com características de desportos, no século XVIII, constitui um bom exemplo” (ELIAS, 1992, p. 49).

    Nesse sentido, o autor entende que lançar o olhar somente para o desporto na Inglaterra, não torna possível levantar explicações razoáveis que justifiquem por que a sociedade inglesa, e não outra, foi quem protagonizou em favor da gênese do desporto. Vejamos o próprio autor:

    A emergência do desporto como uma forma de confronto físico de tipo relativamente não violento encontrava-se no essencial, relacionada com um raro desenvolvimento da sociedade considerada sob a perspectiva global: os ciclos de violência abrandaram e os conflitos de interesse e de confiança eram resolvidos de um modo que permitia aos dois principais contendores pelo poder governamental solucionarem as suas diferenças por intermédio de processos inteiramente não violentos, e segundo regras concertadas que ambas as partes respeitavam (ELIAS, 1992, p. 49).

    A Inglaterra passou por ciclos de violência, às vezes obscurecidos pela literatura que nos apresenta os ciclos revolucionários, os quais, geralmente, podem ser marcados fortemente pelas cores da violência.3 Na obra de Elias, entende-se por ciclo de violência as “configurações formadas” a partir do envolvimento de dois ou mais grupos rivais que resultam em processos de sujeições recíprocas, estabelecendo uma relação de medo mútuo. Neste sentido, “passando cada um a assumir como coisa natural o facto de os seus membros poderem estar armados ou serem mortos pelo outro grupo caso este tenha a oportunidade e os meios para o efetuar”(ELIAS, 1992, p. 49). É comum que, numa configuração de grupos humanos com tais características, ocorram impulsos de auto-escalada. Pode acontecer que um grupo vença o outro, porém o enfrentamento pode levar a desfechos como o enfraquecimento crescente ou a destruição recíproca de todos os participantes.

    Pode-se mencionar um fato bastante emblemático e que caracteriza um ciclo do tipo acima mencionado. Trata-se do caso que se iniciou na Inglaterra, no ano de 1641, quando o

    Rei Carlos I, junto com um grupo de cortesãos, entrou na Câmara dos Comuns para prender alguns membros do Parlamento, desafetos seus, que se haviam oposto a alguns de seus desejos. Fugindo da emboscada, os perseguidos deram início a um processo de contra-violência a seus agressores e, assim, começou um processo revolucionário, no transcorrer do qual o Rei Carlos I foi executado pelos puritanos.

    Cromwell, o líder do grupo inicialmente perseguido, tomou o lugar do Rei, dando prosseguimento ao ciclo de violência, ainda que mais ameno. Embora houvesse tentativas da acalmar o ódio e o medo, a desconfiança que muitos membros das classes altas sentiam pelos puritanos da classe média e das classes baixas não desaparecia. Para Elias, desse processo resultou que:

    Os puritanos, derrotados, não só ficaram sujeitos a obrigações legais como foram assolados por perseguições e, por vezes, atacados violentamente. Estas condições ofereceram um incentivo muito forte à emigração para as colônias da América. Àqueles que permaneceram, os ingleses “dissidentes”, aprenderam a viver na sombra do seu passado revolucionário. Apesar de terem diminuído bastante as suas hipóteses de chegar ao poder, muitos membros no seio do grupo dos proprietários de terras das classes altas continuaram a considerá-los como possíveis conspiradores de uma rebelião (ELIAS, 1992, p. 50).

    Tendo como foco de suas investigações a descoberta, Elias buscou saber, e desse modo evidenciar, os motivos da moderação da violência nos passatempos – uma das características específicas do desporto – surgida, inicialmente, no século XVIII, entre os ingleses das classes mais altas, por certo, relacionando-a ao desenvolvimento, na sociedade global, das tensões e da violência com a qual estavam envolvidas aquelas classes. O autor enfatiza que, quando um país passou por ciclos de violência, em que as revoluções são emblemáticas para sua manifestação, é necessário, em geral, muito tempo para que os grupos que estiveram envolvidos na contenda possam dela se esquecer.

    Muitas gerações podem passar, até que grupos adversários voltem novamente a ter confiança mútua e, quando tal configuração se dá no âmbito de um mesmo Estado, é possível que tal experiência, envolvendo a desconfiança, quando canalizada para a via parlamentar – a pacificação das atitudes – talvez seja uma boa forma de contenção de adversários. Nesse sentido, o regime parlamentar apresenta algumas afinidades com os jogos desportivos, o que certamente não é acidental. Vejamos na expressão de Elias:

    Um tipo específico de actividades de lazer, como por exemplo, a caça, o boxe, a corrida e alguns jogos de bola, assumiu as características de desporto e, de facto, foi designado por desporto pela primeira vez em Inglaterra, durante o século XVII, isto é, no período em que as antigas assembléias de estado, a câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns, representando camadas da sociedade restritas e privilegiadas, constituíram a principal área de confronto onde se determinou quem deveria formar o governo(ELIAS, 1992, p. 51).

    De modo que foi com o regime parlamentar no século XVIII, que se tornou imperativa a capacidade de um grupo ou uma facção de partido no governo dominar os demais adversários, ocupando o cargo público, sem fazer o uso da violência e amparado pelas regras que regiam o Parlamento.

    Gebara (1991) considera que essa configuração é um processo de “cortenização” ou de parlamentarização dos guerreiros medievais, o que implica afirmar que a violência dos guerreiros cede lugar ao debate e ao refinamento das atitudes dos cortesãos. Assim, longe de constituírem uma antítese, violência e civilização são processos complementares. Os aspectos mais centrais em favor dos quais se pode falar em estágio de desenvolvimento da sociedade, podem estar baseados numa “tríade de controles básicos”:

1) Centralização política, administrativa e controle da paz interna (surgimento dos Estados);

2) Um processo de democratização, em razão do aumento das cadeias de interdependência, especialmente pelo nivelamento e pela democratização funcional do exercício do poder;

3) Refinamento das condutas e crescente autocontrole nas relações sociais e pessoais. Neste sentido, há um evidente aumento da consciência (superego) na regulação do comportamento( GEBARA, 1991:21).

    Pode-se inferir, a partir das evidências da citação, que nas sociedades civilizadas articulou-se um conjunto de rotinas capazes de levar multidões a “constrangimentos”, podendo ser assumidas pelo próprio sujeito ou impostos pelo controle externo.

Considerações finais, ou um caso em que o desenvolvimento moral do indivíduo resulta das relações entre afetividade e racionalidade

    Para fechar a minha fala, faço referência à opinião expressa do sociólogo argentino Jorge Wertheim em texto publicado pelo Jornal Folha de S. Paulo de dia 09 de setembro de 2007, na sua coluna Tendências e Debates, quando sugere que a rede mundial de computadores tem representado mais um desafio para a educação. Para o autor, não nos faltam exemplos de situações em que os mundos real e virtual se interpenetram, em que se estimula o ócio improdutivo, ou mesmo a violência. Também não desconsidera os riscos que as crianças e jovens correm, em relação à pedofilia, trapaça, ao roubo, aos encontros enganosos e outros.

    Ao educador, cabe o discernimento acerca do papel fundamental que ainda se credita à educação no desenvolvimento das pessoas e das sociedades, no transcorrer do século XXI, mesmo que este não seja o entendimento unânime. Contudo, isso requer que não sejamos cegos às novas exigências que se nos impõem cotidianamente, e isso implica um diálogo constante com a tradição do pensamento pedagógico, estimulando o espírito crítico, o pensamento independente sobre o que é ensinado (BURKE, 2007), para, então, encontrar nas entrelinhas do discurso científico e educacional, espaço para que possam florescer ideais e práticas respaldadas em outro paradigma, ou seja, o paradigma emergente (CUNHA, 2003; SANTOS, 1987).

    E, assim, quero destacar a atualidade da obra de Norbert Elias (1887- 1990) no contexto acadêmico geral e para a educação física e esporte de modo especial, tendo em vista que a afetividade e a racionalidade encontram “no universo da cultura corporal um contexto bastante peculiar, no qual a intensidade e a qualidade dos estados afetivos experimentados corporalmente nas práticas da cultura de movimento literalmente afetam as atitudes e decisões racionais (PCNs, 1998: 34). Portanto, pela perspectiva eliasiana, é possível que as pessoas busquem excitações agradáveis para além da rotina do cotidiano, e as aulas de educação física, num contraponto às exigências racionalistas imperantes no âmbito educacional, possibilitam a vivência de sensações de excitação, de irritação, prazer, cansaço e de situações de dor, a ponto de mobilizar intensamente as emoções e sentimentos de satisfação (PCNs, 1998:34).

    Portanto, é no paradoxo que envolve a racionalidade e a afetividade das práticas da cultura corporal e nas configurações que os sujeitos realizam ao se relacionar com outros, que reside à inovação da proposta de Elias, tendo em vista, ele considerar plausível o fato de que em situações de intensa mobilização afetiva resultem atitudes nas quais é possível uma tomada de consciência e uma reflexão acerca de nossas práticas.

    A proposta do autor é desafiante, na medida em que não perde de vista a tendência já apontada pela sociologia de Weber, de que na sociedade contemporânea existe um rumo em direção à racionalização de condutas e atitudes. Elias, no entanto, avança nesta leitura, quando consegue vislumbrar um entendimento que vai além do discurso científico racional da modernidade, considerando como significativas e merecedoras de estudo, práticas e condutas que estimulam e liberam tensões agradáveis. Assim, é entendimento seu que:

    (...) a sociedade que não oferece aos seus membros, e, em especial, aos mais jovens, oportunidades suficientes para a excitação agradável de uma luta que não exige, mas pode envolver, força e técnica corporal pode, indevidamente, arriscar-se a entorpecer a vida de seus membros; pode não proporcionar correctivos complementares suficientes para as tensões não excitantes produzidas pelas rotinas regulares da vida social (ELIAS, 1992: 95).

    Neste sentido, penso que, vivenciar e experimentar o desporto como objeto de reflexão e investigação a luz das ciências humanas e o seu arcabouço teórico-conceitual, devido à mobilidade que lhe é peculiar, possibilita o diálogo interdisciplinar com vista ao enfrentamento de problemáticas da educação, da ciência e dos limites e estrangulamentos dessa com esse fenômeno na contemporaneidade. Assim, me parece fundamental assumir a leveza que elas nos autorizam no enfrentamento de diferentes questões, para reiterar a necessidade de deixar morrer a concepção a priori de educação e educação física que nos persegue, para dar vazão ao que Norbert Elias considera tão caro, ou seja, mais vale a descoberta de caminhos a partir de evidências empíricas, ou de necessidades que nos impõem as circunstâncias que são “voláteis” ou “líquidas”, do que o porto seguro do método determinando de antemão.

    Enfim, partilho com uma perspectiva na qual é possível tratar o desporto como fenômeno de grande relevância na atualidade, uma vez que ele representa algo que transcende à racionalidade cognitivo instrumental das ciências, e possibilita trilhar pelos caminhos da racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura, conforme anunciado por Santos (2006). Entendendo assim, pode começar a fazer sentido a alusão que fiz no início de minha exposição quanto aos Parâmetros Curriculares Nacionais de Educação Física, no tocante às relações entre afetividade e racionalidade, cujas relações de interdependência são dignas de mérito quando recebem destaque na obra sociológica do mestre das figurações sobre o fenômeno desportivo.

Notas

  1.  ELIAS, Norbert & DUNNING Eric. Quest for excitment: sport and leisure in the civilizing process. Oxford-NY, Blackwell Publishing, 1986.

  2. Para a edição do Processo Civilizador de 1968 Elias produziu uma introdução bastante elucidativa que ajuda o leitor entender os conceitos básicos da obra bem como esclarece porque ainda continua entender que o conceito de desenvolvimento não esgotou seu potencial compreensivo, pois o mesmo aliado ao conceito de processo são indispensáveis para as teorias sociológicas ou de outra natureza que tenham os seres humanos como objeto de investigação e estudo. Ele procura contrapor uma certa escola sociológica moderna dos “funcionalistas estruturais” que “trazem a marca de um tipo específico de raciocínio, que reduz processos à condição de estados”(ELIAS, 1994, p. 222). Assim, “os problemas da mudança social são, em certo sentido, congelados, e tornados inócuos para uma sociologia orientada para a idéia de estado. De modo que aconteceu que o conceito de ‘desenvolvimento social’ desapareceu praticamente por completo das teorias sociológicas modernas – paradoxalmente, numa fase de desenvolvimento social, em que na real vida social e em parte também na pesquisa sociológica empírica, as pessoas se interessam mais intensa e conscientemente do que nunca pelos problemas do desenvolvimento social” (ELIAS, 1994, p. 222-3).

  3. Sobre a Revolução Inglesa de 1640 ver Christopher Hill que publicou duas versões sobre a mesma.

Referências bibliográficas

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