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A Educação Física em tempos modernos... 

No derretimento dos ‘sólidos’ e na era da ‘fluidez’

La Educación Física en los tiempos modernos… En el derretimiento de los ‘sólidos’ y en la era de la ‘fluidez’

 

Mestranda em Educação Física pela

Universidade Federal de Santa Catarina

(Brasil)

Angélica Caetano

angelica.caetano@hotmail.com

 

 

 

 

Resumo

          O presente artigo incita uma reflexão sobre modernidade e as características que a sociedade vem demonstrando/encontrando na atualidade. Pretendi a partir desta reflexão, incluir os discursos que a Educação Física vem propagando sobre saúde. Esses discursos enfatizam o processo de individualização, privatização, sensação de insegurança atrelada à responsabilidade pelo possível fracasso nos indivíduos, características estas da atual modernidade. Para a compreensão das características da modernidade, utilizei os termos metafóricos atribuídos por Bauman (2001) referente à modernidade sólida e líquida. Por fim, esses discursos presentes na modernidade em seu estado “líquido” merecem atenção do professor de Educação Física, por estarem totalmente vinculados à prática pedagógica, à atuação e à legitimidade da Educação Física.

          Unitermos: Educação Física. Modernidade. Saúde

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 141 - Febrero de 2010

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Introdução

    A idéia de discutir sobre a Educação Física e a modernidade apareceu a partir da disciplina isolada cursada no Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, oferecida pelo professor Kleber Prado Filho, no qual nos estimulou a realização de um texto como requisito de avaliação da disciplina. O que me proponho aqui fazer é refletir sobre as características da modernidade, uma modernidade que assim como Bauman denomina de modernidade líquida com as atuais práticas corporais ou discursos disseminados pela Educação Física.

    Bauman (2001) em sua obra identifica mudanças que podem ser caracterizadas a partir das metáforas da solidez e da liquidez. Para melhor explicitar isso, descreverei alguns dos diversos pontos colocados pelo autor. Entre muitos a serem considerados, de forma metafórica, o autor coloca que no estado “líquido” das coisas, os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim para eles, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas “por um momento” (p. 8). A essa liquidez, é dada a ênfase ao atual contexto societário que vivemos, como se nos encontrássemos em um momento de transição: da modernidade sólida para a modernidade líquida.

O novo e o velho... substituição da “solidez” pela “liquidez”...

    A idéia colocada que o “velho” deveria ser substituído pelo “novo” nos faz relembrar uma tentativa de mudança percebida com o passado, onde fosse capaz de esmagar as crenças e lealdades que permitiam que os “sólidos” resistissem à implantação do novo, à “liquidez”. Claramente, não podemos datar essas mudanças precisamente, como alguns autores fazem, porém, é notório que aos poucos, o melhor, ou o mais novo vai substituindo o que está ultrapassado.

    Uma forma de derreter os sólidos, anunciada pelo autor é a destruição das relações sociais (ou para amenizar: o enfraquecimento) no intuito de não se tornar resistência aos critérios de racionalidade inspirados pelos negócios – “o nexo dinheiro” estaria totalmente livre para perpetuar. O derretimento dos sólidos levou a uma “progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais” (BAUMAN, 2001, p. 10), em outras palavras, o capital de certa forma ligado a um local dá lugar ao capital que circula pelo mundo sem resistência territorial. Além disso, deixamos de fazer parte de uma sociedade produtiva para uma sociedade de consumidores, uma sociedade que tem como base o ato de consumir (aquisição e descartabilidade).

    Essa resistência territorial encontra-se articulada com a questão do deslocamento “leve” que Bauman nos coloca ao citar uma passagem importante de seu texto:

    “Fixar-se no solo não é tão importante se o solo pode ser alcançado e abandonado à vontade, imediatamente ou em pouquíssimo tempo. Por outro lado, fixar-se muito fortemente, sobrecarregando os laços com compromissos mutuamente vinculantes, pode ser positivamente prejudicial, dada as novas oportunidades que surgem positivamente em outros lugares” (p. 20).

    A partir de Bauman (2001), os padrões de dependência e interação passam também pela liquidez. Agora “eles são tão maleáveis que gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar, mas, como todos os fluídos, eles não mantêm a forma por muito tempo” (p. 14). A esse comentário podemos perceber o aparecimento do “sempre novo”, criando desejos sobre o consumidor de possuir o novo e não se sentir “excluído” de uma sociedade em que todos são iguais e devem constituir padrões similares.

    Quanto aos indivíduos, a partir do derretimento dos sólidos, as pessoas seriam libertadas de suas velhas gaiolas apenas para ser adestradas e censuradas caso não conseguissem se realocar, através de seus próprios esforços dedicados. Bauman (2001) ressalta:

    “A tarefa dos indivíduos livres era usar sua nova liberdade para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar e adaptar: seguindo fielmente as regras e modos de conduta identificados como corretos e apropriados para aquele lugar” (p. 13).

    O que me proponho a discutir neste texto, me remetendo a um dos pontos enfatizados por Bauman é a relação de liberdade e a versão individualizada e privatizada da modernidade, onde a responsabilidade pelo fracasso cai principalmente sobre os ombros dos indivíduos. Desta discussão, farei uma relação com a Educação Física, campo de conhecimento que sou proveniente, referente ao sinônimo: Educação Física x atividade física x saúde, muitas vezes colocado como único discurso legítimo desta.

A modernidade líquida envolvendo as práticas e discursos da Educação Física

    A Educação Física aparece hoje com uma proliferação e diversificação de sentidos e práticas corporais, relacionados ao discurso da saúde, e mesmo que venha em conjunto com o esporte, esse pacote é fortemente orientado para o mercado. O corpo que na modernidade sólida era visto como um corpo produtivo passa nesta transição para a modernidade líquida ao corpo consumidor, flexível e passível a mudanças descartáveis propostas pelos sistemas peritos, o que mais a frente será melhor explicado. Como na fala de Valter Bracht,1 ao fazer referência à mudança societária que hoje passamos, o corpo busca sensações que nunca podem ser plenamente satisfeitas, que levam a uma busca incessante e infindável por sempre novas sensações. O corpo deixa de ser visto apenas como alvo do controle ascético, para ser fonte de prazer.

    Neste sentido, o corpo ao se tornar fonte de prazer, a busca pelo sempre novo que sacie o desejo imediatamente é acompanhado com o processo de individualização e privatização das práticas corporais, estas passam a ser totalmente de responsabilidade do indivíduo consumidor. No entanto, se ficam obesos, supõe-se que foi por que não foram suficientemente decididos e industriosos para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque não se esforçaram o suficiente para encontrar trabalho ou porque são, pura e simplesmente, avessos ao trabalho. Esse é o jogo da autoresponsabilidade estimulada no indivíduo, no sentido de alertar de que se uma escolha for errada, será de sua única e exclusiva responsabilidade. “Ser um indivíduo significa não ter ninguém a quem culpar pela própria miséria, significa não procurar as causas das próprias derrotas senão na própria indolência ou preguiça, e não procurar remédio senão tentar com mais e mais determinação (BAUMAN, 2001, p. 48)”. Ligado a isso, ao ser colocado sobre si o olhar e a culpa pelo desempenho, é desviado o olhar sobre o espaço social onde muitas contradições da existência individual são coletivamente produzidas. A privatização aparece aqui, pois assim como o autor nos coloca, o poder do Estado se ameniza e de certa forma recua, possibilitando esferas particulares e vendedoras de desejos atuarem sobre todos, à busca de lucro. O declínio do poder decisório do Estado-Nação facilita a difusão de novos agentes que estabelecem uma nova relação social, a sociedade do consumo.

    Com maiores opções de escolha dentro do mercado, o aval científico fornece ao indivíduo uma sensação de liberdade e certa segurança, ainda que momentânea, mas isso não significa autonomia, pois se torna preso a um mercado que cada vez mais deseja criar desejos para este se satisfazer. Uma passagem interessante de Bauman (2001) deixa claro o que pode ser essa sensação de liberdade:

    (...) Uma das questões é a possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que os que lhes cabe esteja longe de ser objetivamente satisfatório; que, vivendo na escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimentem a necessidade de se libertar, e assim percam a chance de se tornar genuinamente livres. (p. 24).

    O que é interessante é que acompanhado a esse processo de liberdade, a sociedade deixa de questionar, como disse Cornelius Castoriadis ao argumentar que é um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma, e, portanto, sente-se absolvida do dever de examinar, demonstrar, justificar (e que dirá provar) a validade de suas suposições tácitas e declaradas. Isso não quer dizer, como assim comenta Bauman que nos tornamos acríticos. Com certeza, somos mais críticos que nossos ancestrais, porém nossas críticas são incapazes de afetar a agenda estabelecida para nossas escolhas, para nossas opções que são diariamente estimuladas.

    Os discursos que incansavelmente aparecem para todos reafirmando a linearidade da atividade física – saúde como compromisso responsável da Educação Física - demonstram isso, ao colocarem esses discursos como inquestionáveis, dotados de verdade, onde muitas das vezes, por detrás deles, existe um mercado a espera do consumidor. Gomes (2008) trabalhou em sua tese com as propostas para um indivíduo saudável fornecidas por conselheiros midiáticos e acadêmicos, estes subsidiados por especialistas científicos capazes de estimular discursos normatizadores. Berman (2007) comenta:

    Uma infinidade de novas experiências se oferecem, mas quem quer pretenda desfrutá-las precisa ser mais flexível, pronto a mudar seus propósitos e princípios pela platéia, a fim de reajustar seu espírito a cada passo. (p. 17).

    Na linguagem baumaniana, são indivíduos colecionadores de sensações, pois estes devem sempre estar prontos para novas sensações, para experimentar novas experiências. Essa sensação de liberdade, concretizada nas escolhas diante das opções fornecidas a ele traz um paradoxo e é bem explicado por Gomes (2008): a liberdade de escolha, entre muitas opções, fornece certa segurança para os indivíduos que a executam, quando é acompanhada por um respaldo coletivo, este conferido pelo conhecimento de especialistas. Esse saber especializado, sempre em constante renovação em função das novas descobertas científicas, constrói uma miragem de fortaleza para os indivíduos, pois estes conferem fidedignidade aos sistemas peritos, à busca da sensação de segurança a respeito das escolhas feitas (GIDDENS, 1991). Esses sistemas peritos conferem ao “leigo” certo conforto, por transmitirem informações provenientes de profissionais “competentes”, sejam médicos, ou sistemas de comunicação altamente avançados, entretanto, é depositado uma fé, embora “seja algo que não podemos, em geral, conferir por nós mesmos” (p. 35).

    Há um elemento pragmático na “fé”, baseado na experiência de que tais sistemas geralmente funcionam como se espera que eles o façam (GIDDENS, 1991, p. 36).

    Diz-se que a confiança é “um dispositivo para se lidar com a liberdade dos outros”, mas a condição principal de requisitos para a condição principal de requisitos para a confiança não é a falta de poder, mas falta de informação plena (GIDDENS, 1991, p. 40).

    Aliado a sensação de liberdade estimulada no consumidor, que coloca os indivíduos diante de diversas escolhas mercantis para seu deleite, a possibilidade de riscos são fatores que demarcam fortemente a insegurança disfarçada que cada indivíduo apresenta. Estes riscos são gerados a partir da desconcertante abundância de possibilidades que são oferecidas. Pela Educação Física, é apresentada ao indivíduo dezenas de possibilidades para ele manter a saúde, enfatizada sempre com recurso a atividade física e, sem dúvida alguma, a responsabilidade de escolher o melhor e errar na opção e enfrentar as conseqüências é unicamente de quem escolhe. Isso gera certa insegurança, pois os indivíduos vivenciam o enfretamento dos riscos e as possíveis conseqüências como sendo de sua inteira responsabilidade, fato este atrelado ao declínio ou recuo do Estado, no que se refere às garantias que ele proporcionava ou buscava proporcionar na modernidade sólida.

    No âmbito das práticas corporais, os indivíduos são cada vez mais estimulados a escolher uma prática, seja ela disponível e de acordo com sua condição social, diante de uma gama de opções, que o fornece um enfraquecimento da segurança ao escolher (ainda que tenham certa certeza por ser amparado pelo discurso científico, principalmente médico) e a conseqüência da escolha é de responsabilidade do indivíduo.

    Por mais que o Estado tenha criado certo distanciamento, além da oferta das indústrias vinculadas à saúde, ele ainda opera como patrocinador de discursos generalizantes sobre o conceito de saúde e sobre as práticas, que fomentam desejos e sentidos, porém se mantém compactuado com o mercado. Ainda, como falado pelo professor Valter Bracht na mesa temática do XVI CONBRACE, “no âmbito das práticas corporais, os cidadãos são instados a participar mais como consumidores do que como produtores (culturais)” e isso vêm afetando cada vez mais a prática pedagógica do professor de Educação Física.

    A saúde também entra no mundo da sociedade dos consumidores, as próprias exigências relacionadas à saúde, veiculadas também pelo Estado, não estão vinculadas, necessariamente, a uma disciplina mecanizante com o intuito exclusivo do trabalho, mas justamente na estimulação de desejos e responsabilidades em um indivíduo também consumidor (GOMES, 2008). Estas mudanças são amparadas por um discurso neoliberal, prometedor de satisfação imediata, que busca se legitimar como uma certeza, um guia na escolha das ações individuais.

    Esse guia, traduzido em sugestões ou propostas para um indivíduo saudável (não mais como receita, como a Educação Física foi fortemente criticada – ainda que seja uma receita disfarçada em um guia) traz consigo novos estímulos para o “colecionador de sensações”, perante as dezenas de sugestões oferecidas pela “qualidade de vida – boa vida” interpretadas como “liberdade de escolha”. Entretanto, as variadas opções prontas para serem escolhidas pelos indivíduos são vistas como condição de autonomia e liberdade e não como forma de opressão. Sendo assim percebidas, a expansão dessas idéias não encontra alguma resistência.

    O prolongamento da saúde se dará, na modernidade líquida, a partir dos constantes aconselhamentos fornecidos pelos especialistas atrelados à explosão da produção do conhecimento e pela criação das necessidades (GOMES, 2008). Sem dúvida alguma, os discursos ou propostas oferecidas em revistas, principalmente femininas, ou na própria televisão, demarcam isso.

Considerações finais

    Entendo que esses discursos sobre o indivíduo saudável e perpetuados pela Educação Física exercem uma pressão ainda maior sobre os indivíduos contemporâneos, favorecendo a culpabilização dos indivíduos e favorece ainda mais o recuo do Estado sobre as relações sociais e pedagógicas. Estes conselhos propagados instigam os indivíduos a estarem sempre em alerta, buscando a prevenção de algo que talvez nem tenha ainda lhes acometido – idealmente aptos – a enfrentar os riscos fabricados e as novas para obter saúde. Qualquer indivíduo que, não incluído aos padrões sugeridos pelos “conselheiros modernos”, se torna um “futuro culpado” por não ser um defensor austero da pátria-corpo (GOMES, 2008).

    Assim, entendemos que este discurso, além de fomentar o comentado acima sobre a individualização e responsabilização, respalda a continuidade dessa “sociedade dos consumidores” ao disponibilizar, no caso da Educação Física, diferentes oportunidades (mercadorias) que colaboram com o indivíduo saudável, pois não ser e não buscar a atividade física para a obtenção de saúde é algo que deve ser combatido.

    Ao professor de Educação Física cabe a tarefa de desconstruir esses discursos vinculados ao recuo do Estado nos seus compromissos para com a sociedade e à proliferação de mercadorias ocultas nestes discursos sobre saúde e atividade física.

Nota

  1. Notas sobre a fala do professor Valter Bracht no XVI Congresso Brasileira de Ciências do Esporte em 2009, especificamente na mesa temática sobre Formação Profissional, Currículo e Prática Pedagógica.

Referências

  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

  • BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

  • GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991.

  • GOMES, Ivan Marcelo. Conselheiros Modernos: propostas para a educação do indivíduo saudável. Tese (Doutorado em Ciências Humanas). PPGICH/UFSC, 2008.

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revista digital · Año 14 · N° 141 | Buenos Aires, Febrero de 2010  
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