efdeportes.com

Reflexões sobre o jogo: conceitos, definições e possibilidades

Reflexiones sobre el juego: conceptos, definiciones y posibilidades

 

*Departamento de Educação Física

Professora da Universidade Estadual de Montes Claros, Unimontes

Mestranda em Educação. Universidade de Brasília, UnB

Bolsista Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, Fapemig

**Professor Associado da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB)

Bacharel (1981) e Licenciado (1982) em Matemática pela UnB

Doutorado em Ciências da Educação na Universidade de Paris X – França (1988)

Pós-Doutorado em Edição Científica na Unesco de Paris – França (2003)

Rosângela Ramos Veloso*

Antônio Villar Marques Sá**

rosaveloso@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          O jogo deve ser visto como um importante recurso pedagógico e deve estar presente e fazer parte do cenário escolar. Por meio do jogo, a criança comunica-se consigo mesma e com o mundo, aceita a existência dos outros, estabelece relações sociais e constrói conhecimentos, desenvolvendo-se integralmente. O jogo está de tal forma tão associado à nossa existência que raramente paramos para pensar em seu significado. Esse estudo busca-se desenvolver reflexões teóricas como propósito de contribuir com o percurso histórico do fenômeno jogo e abordar a amplitude de definições, conceitos e possibilidades existentes.

          Unitermos: Jogo. Conceitos. Possibilidades

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 132 - Mayo de 2009

1 / 1

Tentar definir o jogo não é tarefa fácil. Quando se pronuncia a palavra jogo cada um pode entendê-la de modo diferente. Pode-se estar falando de jogos políticos, de adultos, crianças, animais ou amarelinha, xadrez,... Por exemplo, no faz-de-conta, há forte presença da situação imaginária; no jogo de xadrez, regras padronizadas permitem a movimentação das peças. (KISHIMOTO, 1997, p. 13).

Introdução

    A utilização do jogo e sua importância para a educação já foram estudadas por importantes teóricos, tais como Brougère, Bruhns, Duflo, Freire, Huizinga, Kishimoto, Knijnik, Pascal, Piaget, Schiller e Vigotski. Estudiosos do tema parecem chegar a um consenso quanto à amplitude que o vocábulo jogo pode apresentar e discutem os caminhos para se chegar a uma definição para o termo.

    Duflo (1999) apresentando o percurso histórico do fenômeno jogo, coloca que durante muito tempo, o jogo apresentava-se com pouca importância e sem atrair atenção dos mais estudiosos, sendo colocado apenas como uma atividade infantil, de pouco valor em si mesmo.

    Historicamente, as primeiras noções de jogo, na Grécia antiga, acreditavam firmemente que o jogo era condição imprescindível para o alcance do elevado estado de espírito. Aristóteles apresenta o jogo pela sua auto-suficiência, e neste contexto, interroga o que procura aquele que joga, senão o prazer pelo próprio jogo? Como uma ação desejável em si: a causa final do jogo é o próprio jogo.

    Nesse sentido, (DUFLO, 1999) afirma,

    A menos que seja questionado todo o esquema no qual se apóia essa discriminação, que possamos conceber, por exemplo, que a criança seja digna de interesse, que o jogo não se opõe necessariamente ao sério, nem se assimile diretamente aos prazeres do corpo e que, enfim, nem virtuosa, nem útil, encontrando-se, portanto, fora das grandes categorias que servem para classificar e avaliar o homem em seus atos seja, no entanto, necessária para definir o humano (p. 14).

Desenvolvimento

    Com o avanço dos estudos matemáticos com leibniz, no final do século XVII, uma nova visão de jogo é resgatada, sendo concebido como um fenômeno que se origina da engenhosidade humana, merecendo, por isso, a atenção dos estudiosos, provocando uma reavaliação intelectual do jogo.

    No século XVIII, o jogo sofre grandes preconceitos concernentes ao seu valor ético, sóciopolíticos e epistemológicos, pois, entram em cena discussões de vicio. A proibição pela igreja por ser fonte de prazer e por isso, deveria ser banido do espírito humano, interessante ressaltar que apenas jogos das festas religiosas eram permitidos. No contexto de todas as formas de exclusão do jogo, Duflo, 1999, coloca-se “para julgar o jogo, é preciso compreender quais são suas funções e seus efeitos no conjunto das atividades humanas”.

    A onipresença do jogo e dos jogadores na sociedade do século das luzes, explica em parte, o fato de que os pensadores não tenham podido se contentar em ignorar esse aspecto das atividades humanas, assim, o jogo tornava-se claramente o lugar onde certa engenhosidade humana desabrochava sem a coerção do real (DUFLOS, 1999).

    Para que o fenômeno jogo obtivesse respaldo e credibilidade filosóficos, eram necessárias algumas mudanças em sua acepção conceitual, ou seja, que o jogo deixasse de ser concebido como atividade pueril, deixasse de ser relegado a uma categoria menor. Ainda no século XVIII, com Emílio 1 de Jean- Jacques Rousseau, foi o momento em que o lugar do jogo foi reconsiderado na educação.

    Assim, é que alguns tratados sobre a educação começam a destacar o jogo como função educativa. A obra De pueris instituendis 2 de Erasmo, também elucida a utilização lúdica. A educação bem-sucedida é aquela que leva gradualmente do lusu (divertimento), que convém às crianças, ao ludus literarius (a escola), passando pelos ludus (jogo): “O papel será [...] o de levar ao estudo a máscara do jogo’’ (Erasmo, 1966 In: Duflos, 1999).

    Seguindo o contexto filosófico do jogo assumido pelos pensadores, Rousseau deu um novo sentido à filosofia de Kant que certamente influenciou Schiller na perspectiva laboriosa ou lúdica sem as mesmas finalidades, necessitando reconhecer a especificidade do trabalho e do jogo, sem se equivocar dos fins recíprocos de cada um. Esses mesmos pensadores também apoiavam a idéia de que essa distinção não significava, no entanto, que o jogo fosse desprovido de sua utilidade na educação, pois, oferecia, à sua maneira, uma aprendizagem da vida e o desenvolvimento do ser humano de forma indissociável.

    A partir de Schiller, surgem algumas transformações, no sentido, de concretizações e formulações de conceitos, com a marcante frase da décima quinta das cartas sobre a educação estética do homem, segundo a qual “o homem só é de fato homem quando joga”, uma expressão de grande inversão nos conceitos.

    A noção de jogo na filosofia nas cartas sobre educação estética do homem de Schiller3 que não hesita em dar objetividade central do belo para o ser. O jogo é considerado, por Schiller como vetor de harmonia, portanto de beleza e de equilíbrio, tanto para o físico quanto para o espiritual do homem, sendo concebido a partir da concepção de totalidade do homem quando joga e não como soma de elementos indissociáveis. Assim, o jogo revela-se como principio de unidade e também como principio de legalidade e liberdade.

    Schiller, não deixa de afirmar que o jogo é sinal da humanidade, no entanto, admite totalmente a idéia de que há nos animais algo que se pode chamar de jogo, quando estes desenvolvem uma atividade sem finalidade imediata aparente.

    O jogo, para Schiller, como sinal de humanidade, é marcada na frase que marca a história da noção de jogo, na filosofia e além dela: “O homem não joga senão quando na plena acepção da palavra ele é homem, e não é totalmente homem senão quando joga” (Schiller, 1992 in: Duflos, 1999).

    A partir do desenvolvimento do modelo social burguês, com o avanço do capitalismo, com seu auge marcado pela revolução industrial, o jogo e o jogar assumem funções ligadas à lógica da produção e do consumo.

    Na atualidade, entendemos que apesar de se apresentado em várias áreas do conhecimento humano, o jogo, pouco compreendido, é reduzido a um simples objeto de estudo, desconsiderado pelas várias possibilidades que a prática do jogo pode oferecer.

    Bruhns (1999) aponta a dificuldade em compreender o jogo e outros autores que mostram a importância dele para o desenvolvimento afetivo, cognitivo, social e motor ao propiciar a descentralização individual, aquisição de regras, expressão do imaginário e a apropriação do conhecimento.

    A importância do jogo na educação recebeu várias versões ao longo do tempo. Os jogos são lembrados como alternativas interessantes para a solução dos problemas da prática pedagógica.

    Segundo Julia (1996), o jogo é uma entidade sem definição, pois, o ser que joga está buscando prazer, algo além do que simplesmente sobreviver. Por isso é que o jogo não tem definição. Pois se para definir "o ser" já é necessário um empenho significativo, definir "a busca de prazer não-material do ser" torna-se uma tarefa impossível.

    Para Feijó (1998), o lúdico passou a ser reconhecido como um traço essencial do comportamento humano. Desse modo, a definição do lúdico deixou de ser o simples sinônimo do jogo. As implicações da necessidade lúdica extrapolaram as demarcações do brincar espontâneo.

    Segundo Huizinga (2007),

    Jogo “é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana” (HUIZINGA, 2007, p. 33).

    Os jogos devem procurar associar prazer, alegria, espontaneidade e o não-constrangimento. Piaget (1987) escreve a respeito do papel dos jogos na infância para a formação do adulto. Segundo ele: “O jogo constitui o pólo extremo da assimilação da realidade no ego, tendo relação com a imaginação criativa que será fonte de todo o pensamento e raciocínio posterior”.

    Huizinga (2007) enxerga o jogo como elemento da cultura humana. Aliás, levando essa visão até o seu extremo, ele propõe que o jogo é anterior à cultura, visto que esta pressupõe a existência da sociedade humana, enquanto os jogos são praticados mesmo por animais. O autor acrescenta: “A existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização ou a qualquer concepção do universo” (p.32).

    Infelizmente, muitas vezes, os professores tendem a separar o trabalho do jogo na realidade escolar, deixando de envolver essa indispensável ferramenta no processo de aprendizado, delegando à mesma apenas os poucos momentos de recreação.

    Nesse sentido, Souza Neto, 2006, ressalta a necessidade de se estudar o sujeito permeado por suas intencionalidades é igualmente oportuno e contundente quanto estudar a caracterização do jogo amarrado com o espaço que ele ocorre.

    Seguindo essa definição de jogo, a proposta dessa abordagem busca a possibilidade de transformar a realidade em que os alunos se encontram e proporcionar uma reflexão sobre a prática do jogo, tanto num sentido conceitual quanto atitudinal. O jogo é um elemento tão antigo na história do homem que o leva a ser questionado como um elemento natural ou cultural da espécie (HUIZINGA, 2007).

    No entanto, o jogo ultrapassou a barreira do tempo, das sociedades e dos valores a que ele foi submetido, estando presente em diferentes momentos históricos. Sua própria história talvez seja uma das principais responsáveis por lhe proporcionar tamanha amplitude, assim como a complexidade de sua natureza (BRUHNS, 1999).

    O jogo se inscreve num sistema de significações que nos leva, por exemplo, a interpretar como brincar, em função da imagem que temos dessa atividade. Essa interpretação ocorre, até mesmo no comportamento do bebê, retomando este termo e integrando-o progressivamente ao seu incipiente sistema de representação. Se isso é verdadeiro de todos os objetos do mundo, é ainda mais verdadeiro de uma atividade que pressupõe uma interpretação específica de sua relação com o mundo para existir. Se for verdade que há a expressão de um sujeito no jogo, essa expressão insere-se num sistema de significações, em outras palavras, numa cultura que lhe dá sentido.

    Para que uma atividade seja considerada um jogo, é necessário então que seja tomada e interpretada como tal pelos atores sociais em função da imagem que têm dessa atividade (BROUGÈRE, 1998).

    Para Kishimoto (2000), a brincadeira é o jogo infantil, não existindo diferença significativa em termos estruturais entre ambas atividades. Os significados, para a autora, seriam próximos àqueles usados pelas línguas inglesa e francesa, que se valem do mesmo termo (to play e jouer, respectivamente), para se referir às duas atividades.

    Ludicidade que, para Huizinga (2001), é um elemento da cultura humana e se manifesta nas diversas atividades dos agrupamentos sociais, das artes às manifestações bélicas.

    Huizinga (2007) destaca certas características essenciais do jogo, tais como:

    Uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não – séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo certa ordem e certas regras (HUIZINGA, 2007, p. 16).

    Percebemos que jogo também pode ser, muitas vezes, assimilado como uma prática desportiva e, nesse contexto, portanto, pode ser visto como uma atividade tanto lúdica como competitiva.

    De acordo com Bruhns (1996), o modelo do esporte atual não deve fazer com que o jogo seja confundido ou mesmo se transforme em esporte. Conforme a autora, não se pode traçar uma semelhança entre jogo e esporte, mas sim algumas relações que fazem com que, se o primeiro pode se transformar no segundo, o esporte também pode vir a ser um jogo, sob determinadas condições, tais como o relaxamento das regras, uma menor organização, a ausência da busca incessante da vitória, entre outras.

    Nessa relação conceitual entre jogo e esporte, podemos afirmar que o esporte é apenas uma das manifestações de jogo, dentro de um contexto bastante socializado e universal. Porém, Bruhns deixa claro que não se deve restringir o jogo,

    Como imposição de regras, modelos, busca de rendimento, recordes, medalhas, juizes, capitães, etc., que, se por um lado, caracterizam o esporte, acabam descaracterizando o jogo, o qual apresenta componente como a espontaneidade, a flexibilidade, o descompromisso, a criatividade, a fantasia, a expressividade, etc., com características culturais próprias (BRUHNS 1996, p. 39).

    Dessa forma, a autora deixa bem claro que, as relações brincadeira, jogo e esporte têm por um lado, brincadeira e jogo, categorias absolutamente vinculadas às culturas humanas locais, e por outro lado, o esporte, um fenômeno que, por ter se globalizado, pertence a uma dimensão cultural mundial.

    Assim, outra dimensão preponderante do esporte moderno, a sua institucionalização, ganha importância. O esporte é organizado e institucionalizado por meio de suas entidades, ligas, associações e federações. Essa institucionalização, o surgimento desses órgãos que comandam e detêm o poder no meio esportivo, faz com que surja toda uma classe dirigente e também toda uma disputa por esse poder. Trava-se no meio de entidades esportivas uma verdadeira luta política para dominar essas instituições, ditando assim os rumos do esporte, e detendo o controle sobre o patrimônio financeiro e também sobre o status social que advém do esporte.

    Quanto mais nos esforçamos por estabelecer uma grande separação entre a forma a que chamamos “jogo” e outras formas aparentemente relacionadas a ela, mais se evidencia a absoluta independência do conceito de jogo (HUIZINGA, 2007, p. 7).

    Embora sejam atividades distintas, brincadeira, jogo e esporte possuem profundas relações e interfaces e, por pertencerem à grande “família” da cultura lúdica humana, seja local, ou então global, estão sempre se influenciando reciprocamente. Mais do que um continuum estanque, estas três categorias estão sempre em contato e possuem diversas intersecções e interfaces, se modificando mútua e continuadamente (KNIJNIK; KNIJNIK, 2004).

    Huizinga (2007) critica as abordagens sobre o jogo que sempre relacionaram esse fenômeno a algo extrínseco a ele. Esse autor mergulha na direção de descobrir a função do jogo em si mesmo, a sua significação, pois ele vê forma e conteúdo no jogo, um significante, a beleza, e um significado, o divertimento para os jogadores e, inclusive, a sua significação social. Fugindo das análises biológicas e psicológicas do jogo, que não atingem o seu cerne, o seu fundamento.

    Nesse aspecto, surge uma forte indagação, pois, se os aspectos biológicos e psicológicos não atingem o seu cerne, muitos jogos, ou a maioria deles se descaracterizam enquanto função, levando-se em consideração quando são necessariamente de movimentação e/ou de grande concentração.

    Huizinga (2007) pergunta: o que leva o jogador ao jogo contínua e repetidamente? Ele responde, claramente: a intensidade, os poderes de fascinação do jogo não têm respostas racionais. Como ele ultrapassa a esfera da vida humana (quem já não viu cachorro brincando?), não se baseia em elementos racionais. É na própria fascinação, na intensidade e paixão que residem as características fundamentais do jogo. Aparentemente descartável, torna-se necessidade imperativa quando o prazer por ele provocado cria essa necessidade. Ademais, o jogo em si, em sua natureza é instrumento sócio-educativo.

    Frente às diversas contribuições sobre o jogo, trazidas por Huizinga (2007), muitas características têm despertado interesses de vários estudiosos e foram criteriosamente abordadas por Tavares e Sousa Júnior (2006):

    A primeira está no fato de o jogo ser livre e ser próprio de liberdade. Ele jamais deve ser imposto pela necessidade física ou pela obrigação moral, e nunca é constituído de tarefa, sendo praticado sempre nas horas de ócio. Estar ligado a noções de obrigação e dever, somente quando é constituído por uma função cultural reconhecida.

    Na segunda característica, o jogo nega a vida corrente e a vida real. Trata, entretanto, de sair da vida real para uma esfera temporária de atividade, escolhendo a própria orientação. A criança sabe diferenciar o faz-de-conta da realidade. Esse fazer de conta não impede que o jogo seja realizado com seriedade e com entusiasmo. Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador.

    Como terceira característica, verifica-se o isolamento e a limitação, pois o jogo se afasta da vida comum, quanto ao lugar e à duração. Ele é jogado até o fim, considerando os limites de tempo e espaço. No momento de realização do jogo, tudo é movimento, sucessão, associação, separação.

    Uma quarta característica considera o jogo como fenômeno cultural. Mesmo após o seu término, ele é conservado na memória, transmitido, podendo tornar-se tradição. A repetição pode acontecer a qualquer momento, mesmo sendo um jogo infantil ou um jogo de xadrez. O limite do espaço no jogo é mais evidente do que o limite do tempo. Todo jogo é realizado em um campo previamente delimitado, em cujo interior se respeitam as regras determinadas.

    Já na quinta característica, o jogo cria ordem, introduzindo no mundo imperfeito, mesmo por tempo limitado, um mundo perfeito. Exige-se, portanto, para essa perfeição uma ordem suprema e absoluta. O não cumprimento desta prejudica o jogo, privando o jogador de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. A profunda afinidade existente entre a ordem e o jogo liga-se ao domínio da estética. Há neste domínio uma tendência para ser belo, lançando sobre todos nós um feitiço: é fascinante, cativante. Preenche duas qualidades importantes, que nos levam a ver nas coisas o ritmo e a harmonia.

    O jogo desempenha ainda um elemento de tensão importante que significa acaso. No jogo, verificamos o esforço do jogador até o final, pois ele pretende ser vitorioso à custa deste esforço. A tensão no jogo existe. Ela domina os jogos solitários de destreza, como os de xadrez, quebra-cabeças, charadas, os jogos de armar, paciência, tiro ao alvo. Neles, quanto mais presente o espírito competitivo, mais apaixonantes se apresentam.

    A este elemento de tensão deve ser conferido um valor ético, na medida em que a qualidade do jogador, a capacidade espiritual e a lealdade são colocadas à prova. Isso porque, mesmo ao considerar o desejo da vitória, aquele jogador deverá sempre respeitar as regras do jogo.

    Freire (2005b) faz inferências sobre o fenômeno jogo e sua complexidade, principalmente no que se refere a suas principais características, abordando o simplismo de análise de alguns autores, que na tentativa de descrever o fenômeno jogo, tolhem a sua visão, partindo de um pressuposto positivista.

    Nesse sentido, Freire alerta:

    Resta, portanto, buscar o significado do jogo, não mais na caracterização infindável de partes que o compõem, mais sim na identificação dos contextos em que ocorre. Seguramente há um nicho... que acolhe o jogo e lhe permite manifestar-se, o único ao qual ele se adapta. É nesse ambiente que temos de penetrar para tentar compreender o fenômeno jogo (FREIRE, 2005a, p. 58).

    Apesar das inevitáveis tentativas de interpretação, cabe o estabelecimento de um consenso em torno das evidências básicas, como, por exemplo, que o jogo é uma atividade dominante na criança e, ao mesmo tempo, um fator indicador do seu desenvolvimento global, isto é, tanto do ponto de vista físico, quanto social e cognitivo.

    A pedagogia do jogo que se constitui e se realiza na escola, desconsidera o aprendizado e focaliza-se no ensino, sendo um modelo de estratégia típico do cenário escolar ocidental, reprodutor de uma prática repetidora, ao invés de crítica e solidária em relação à participação dos alunos.

    Freire (2005a) faz diversos apontamentos sobre ser professor e suas práticas no cotidiano escolar. Nesse sentido, esclarece que uma aula, embora eficaz, não se basta e não se esgota no momento de sua realização, pois a missão de cada disciplina é mais que ensinar conteúdos específicos, ensinar para a vida.

    Diante dessa constatação, Freire (2005a) apresenta uma experiência positiva, utilizando estratégias diferenciadas do jogo como proposta de modificar o fracasso escolar.

    Sob esse enfoque, para Celante as teorias do jogo que muitas vezes se fundamentam nas práticas pedagógicas fazem crer que tal fenômeno não precisa de condições adequadas para sua manifestação, considerando-o um impulso primário (CELANTE apud FREIRE, 2005a). As práticas pedagógicas nas escolas revelam sobremaneira as representações dos educadores a respeito das crianças, do papel da escola e da contribuição do jogo no processo socioeducativo.

    A função do jogo no processo socioeducativo consiste, portanto, em potencializar a construção destas estratégias a fim de que a criança possa compreender melhor o mundo que a rodeia por meio da própria experimentação. Como afirma Parmentier apud Duflos, 1999, “acredita-se estar jogando e está-se instruindo”.

Considerações finais

    Em vez de ver no jogo o lugar de desenvolvimento da cultura, é necessário ver nele simplesmente o lugar de emergência e de enriquecimento dessa cultura lúdica, essa mesma que torna o jogo possível e permite enriquecer progressivamente a atividade lúdica. O jogador precisa partilhar, conhecer e entender dessa cultura para poder jogar.

    O conjunto das regras nos jogos disponíveis para os participantes numa determinada sociedade compõe a cultura lúdica dessa sociedade e as regras que um indivíduo conhece compõem sua própria cultura lúdica, representada pelo jogo. O fato de se tratar de jogos tradicionais ou os jogos recentes não interfere na questão, mas é preciso saber que essa cultura das regras individualiza-se, particulariza-se. O diversificado cenário de conceitos, definições e possibilidade conforme diversos autores ao longo da história é um meio privilegiado de acesso à cultura do jogar.

Notas

  1. J.J. Rousseau, Émile ou de l´´education, livro II, GF, 1996, p. 169.

  2. Erasmo, Declamation de pueris statim ac liberaliter instituendis, apresentação e tradução J. C. Margolim, Genebra, Droz, 1966.

  3. Johann Christoph Friedrich Schiller (1759-1805) Lettres sur L´éducation esthétique de l´homme. Aubir, 1943, Reed. 1992. 

Referências

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/

revista digital · Año 14 · N° 132 | Buenos Aires, Mayo de 2009  
© 1997-2009 Derechos reservados