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História da Educação Física no Brasil:
reflexões a partir do Colégio Pedro Segundo

 

Doutor em Educação pela UFMG

Professor da Universidade Federal de Juiz Fora

Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em

História da Educação Física e do Esporte (GEPHEFE)

Carlos Fernando Ferreira da Cunha Junior

carlos.fernando@ufjf.edu.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Este texto investiga a história da Educação Física no Brasil a partir do Colégio Pedro Segundo, instituição secundária fundada em 1837 no Rio de Janeiro. Valendo-nos de documentos inéditos localizados no Arquivo Nacional, analisamos o desenvolvimento da Educação Física na instituição entre 1841 e 1870.

          Unitermos: Educação Física. História. Colégio Pedro Segundo.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - Nº 123 - Agosto de 2008

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Introdução

    O Imperial Collegio de Pedro Segundo (CPII) foi fundado no Rio de Janeiro em 1837. O principal objetivo do governo brasileiro ao organizar o CPII foi oferecer aos filhos da boa sociedade imperial (Mattos, 1999) uma formação secundária abrangente e distintiva, própria à elite da época. A distinção pode ser avaliada pelo título conferido aos alunos que finalizavam o curso de estudos do Colégio, o de Bacharel em Letras, cuja posse garantia lugar em qualquer uma das Academias Superiores brasileiras. Já a abrangência da formação oferecida pelo chamado “Colégio da Corte” pode ser verificada se compararmos o conjunto de saberes por ele contemplado aos conhecimentos oferecidos pela maioria dos outros estabelecimentos secundários do país. A este respeito, Maria de Lourdes Mariotto Haidar (1972) chamou atenção para os saberes das “Belas Artes” - a música, o desenho e a ginástica - que figuravam nos planos de ensino do CPII e não eram oferecidos pela maior parte dos outros colégios brasileiros.

    Neste trabalho refletimos sobre o processo de escolarização dos exercicios gymnasticos no CPII com vistas a contribuir para aspectos pouco explorados por nossa História da Educação Física, quais sejam, a materialização e o cotidiano deste saber nas escolas brasileiras oitocentistas.

A escolarização dos exercicios gymnasticos no CPII

    Fundado em 1837, o CPII contratou seu primeiro Mestre de Gymnastica, o ex-Capitão do Exército Imperial, Guilherme Luiz de Taube, no ano de 1841. Acompanhemos um trecho da carta através da qual Taube ofereceu-se para “introduzir e ensinar os exercicios gymnasticos” na instituição:

    Aos pés do Throno Imperial de V. M. vém submissasse o cidadão Brasileiro, ex-Capitão do Exercito Imperial por Decreto de 24 de Novembro de 1830, supplicar uma graça [...] vém elle offerecer-se a V.M.I. p.a para introduzir e ensinar no Collegio, que tomou o glorioso nome de V.M., exercicios gymnasticos aos estudantes. Estes exercicios são reccommendados pela Revista Medica como meios de utilidade para a mocidade: estes exercicios são adoptados em todos os Collegios e Lyceos da Europa, como meios de desenvolver as forças do corpo, e tambem as d’alma.1

    Coube ao Reitor Joaquim Caetano da Silva decidir sobre a introdução dos exercicios gymnasticos no CPII e a contratação de Guilherme de Taube. O Reitor, médico formado em Paris, ressaltou o “quanto seria precioso para o mesmo Collegio a instituição de semelhantes exercicios”.2

    Ele aprovou Taube como Mestre de Gymnastica do CPII, diante dos documentos do candidato que, segundo o Reitor, comprovavam a vasta experiência do suplicante com a gymnastica no âmbito do Exército Imperial.

    Na época, a gymnastica era parte da educação oferecida pelos principais colégios europeus, como afirmou Guilherme de Taube. Joaquim Silva concordava com o mestre, acrescentando o médico e Reitor que a importância destas atividades já era universalmente reconhecida. O Império do Brasil, esforçando-se por acompanhar o desenvolvimento dos países europeus, adotava muitas de suas práticas culturais e educacionais. A própria estrutura pedagógica e administrativa do CPII havia sido organizada à semelhança dos principais liceus da Europa. A introdução dos exercicios gymnasticos na instituição, portanto, foi vista com excelentes olhos pelos dirigentes imperiais.

    Contratado Guilherme de Taube, restava acertar detalhes de seu ofício no CPII. O Reitor e o Ministro do Império discutiram os vencimentos que para ele seriam oferecidos, o número de lições e o tratamento profissional que deveria ser dispensado ao responsável pelos exercicios gymnasticos:

    Tenho a honra de propôr o ordenado annual de quatrocentos mil reis [...] abalanço-me a representar a V. Exa. a conveniencia de não se dar ao Gymnasta o titulo de Professor, pela razão de concederem os Estatutos a todos os Professores, não sei se acertadamente, o direito de serem juizes de todas as doutrinas nos exames geraes3

    De acordo com as recomendações do Reitor, as lições de exercicios gymnasticos deveriam ser oferecidas em seis dias da semana, à exceção do domingo. O espaço destinado às lições era o pátio do CPII. Cada uma das aulas compreenderia o tempo de uma hora, menos na quinta-feira, quando a duração da aula seria aumentada para duas horas de exercícios. A prática regular e diária dos exercicios gymnasticos era defendida pelos médicos como um dos fatores necessários para garantir seus benefícios. Joaquim Caetano empenhou-se em assegurá-la no CPII.

    A jornada de trabalho a ser cumprida por Guilherme de Taube proporcionaria a ele quatrocentos mil réis anuais, o mais baixo dos vencimentos pagos aos professores e mestres do CPII. Isso indica que aos exercicios gymnasticos era atribuído um valor inferior àquele empregado às cadeiras teóricas, as mais prestigiadas no interior da instituição. Nesta direção também nos aponta a sugestão de Joaquim Caetano a não dar ao responsável pelos exercicios gymnasticos o título de professor. Esta denominação deveria estar reservada aos responsáveis pelas cadeiras teóricas, indivíduos portadores de uma cultura acadêmica abrangente, aptos a participar da avaliação dos alunos nos Exames Gerais4. Ao entender que a gymnastica era um saber essencialmente de ordem prática, cujos responsáveis eram despreparados para julgar os alunos nas diversas matérias oferecidas pelo curso do CPII, o Reitor sugeria para eles a denominação de Mestre.

    Guilherme de Taube deixou o CPII em 1843. O Colégio ficaria sem Mestre de Gymnastica durante três anos, pois, segundo Joaquim Silva, era difícil encontrar pessoa experiente e perita na atividade, características do bom mestre que não colocaria a saúde dos alunos em risco.

    Somente em 1846, o Reitor aprovaria outro indivíduo para assumir a gymnastica no CPII. Frederico Hoppe, ex-militar do Exército Espanhol, havia migrado para o Brasil na década de 1830. Em sua chegada, o Coronel Hoppe ofereceu seus serviços ao governo brasileiro com vistas à ministrar lições de esgrima em alguma de suas instituições. Ele foi nomeado Mestre de Armas da Academia da Marinha e também assumiu a responsabilidade de ministrar a esgrima no Colégio Botafogo, estabelecimento particular. Em 1841, o espanhol manifestou interesse de trabalhar no CPII, mas não foi atendido porque o cargo encontrava-se preenchido por Guilherme de Taube. Em 1846, três anos após a saída de Taube do CPII, Frederico Hoppe solicitou novamente o cargo de Mestre de Gymnastica da instituição. Acompanhemos parte de seu requerimento:

    Vem a V.M.I. offerecer seu prestimo neste ramo de ensino, ficando o supplicante considerado como mestre naquelle collegio, mediante o honorario de oitocentos mil réis, em attenção ao numero de alumnos e a seu pezado trabalho. O ensino, o exercicio das armas, que constitue na Europa uma parte da educação polida, e fina, he um objecto na verdade de notavel utilidade, e sem duvida essencial á mocidade que recebe a educação dentro dos recintos dos collegios, ou seja porque este ensino considerado como exercicio gymnastico dê vigor ao corpo, estabeleça melhor as proporções fisicas, e concorrendo para o desenvolvimento das faculdades intellectuais tão dependente da saude, e da fortalesa do corpo predisponha o espirito para a melhor acquisição dos conhecimentos humanos, o qual fica ordinariamente enervado com o habito sedentario, acanhado, e frouxo que se adquire naturalmente dentro do circulo das casas de educação; ou seja pôrque considerado como distracção he aquela que mais serve o recreio á utilidade, dando mais um polimento a educação. E mais um verdadeiro conhecimento das concepções humanas em uma arte que não he sem muito proveito para diversos ramos de serviço publico, e de defesa individual.5

    Frederico Hoppe fez extensa defesa dos benefícios que os alunos do CPII experimentariam com a introdução da esgrima na instituição. Segundo ele, a esgrima, componente fundamental da educação da elite européia, superaria os resultados da “simples gymnastica” até então ministrada no CPII. Os argumentos de Hoppe provém especialmente do discurso médico e também do militar, tão importantes no processo de escolarização da gymnastica no Brasil. Assim, o espanhol nos fala das vantagens higiênicas da esgrima, mas também de sua importância como instrumento de defesa individual para os jovens do CPII.

    Frederico Hoppe foi contratado e novamente a questão dos vencimentos marcados para o Mestre de Gymnastica seria motivo de discussões no CPII. Ele solicitou ao Ministro do Império um salário anual de oitocentos mil réis. Estabeleceu-se uma polêmica no Colégio. Hoppe não aceitava assumir o cargo se a ele fosse pago o salário marcado nos estatutos, ou seja, quatrocentos mil réis. O problema parece ter chegado ao Imperador Dom Pedro II que mandou fixar os vencimentos do Mestre de Gymnastica em quinhentos mil réis, valor igual aquele recebido pelos mestres de música e desenho. Hoppe entrou em exercício, mas não se deu por satisfeito e voltou a insistir nos oitocentos mil réis:

    O supplicante entrando para o Collegio teve logo de ensinar a sessenta discipulos, e lhe foi declarado pelo Director que suas lições devião de ter lugar todos os dias, o que em verdade nunca foi mesmo previsto pelo supplicante [...] Este numero pois de discipulos logo ao principio, que o prepara para muito maior em pouco tempo, e a obrigação diaria fizerão com que o supplicante não pudesse sustentar sua sociedade d’armas, um dos recursos de que vivia, e que lhe não demandava grandes esforços. Alem disto ensinando o supplicante no colegio particular de Pedro de Alcântara, onde não é obrigado senão a trez lições por semana, percebe por cada discipulo seis mil réis que calculado quando menos em dez alumnos tem o supplicante um quantitativo por mez superior ao que recebe do Collegio de Pedro 2º sem o grande trabalho deste, e a obrigação de todos os dias.6

    O reclame de Hoppe revela que os valores oferecidos pelo CPII ao Mestre de Gymnastica não eram vantajosos em comparação à cifra que ele poderia receber nos colégios particulares, onde as lições de esgrima eram pagas à parte e aconteciam somente em três dias da semana. No CPII, o salário do mestre era fixo e Hoppe tinha que ministrar diariamente suas lições, o que o impedia de trabalhar em sua sociedade d’armas. Sem alcançar êxito nas reivindicações de aumento dos vencimentos ou de diminuição da carga de trabalho semanal, Frederico Hoppe deu prioridade ao ensino nos colégios particulares e à sua sociedade d’armas. O mestre passou a faltar às lições de gymnastica no Colégio da Corte e foi demitido. Para seu lugar, Joaquim Silva propôs a contratação do francês Bernardo Urbano de Bidegorry, indivíduo com excelentes recomendações. De acordo com o Reitor, sua capacidade era “abonada pelo Coronel Amorós, Director do Gymnasio Normal de Pariz, o qual, em hum attestado que li, o declara hum dos seus melhores discipulos”7. No entanto, dias depois, o mesmo Joaquim Silva desaprovava a entrada de Bidegorry no CPII:

    Elle publicou hoje no Jornal do Commercio hum artigo em que se notão as seguintes palavras: - No Rio de Janeiro, onde a instrucção e o modo de ensino principia a desenvolver-se, hum só Collegio até hoje entendeu a utilidade dos exercicios gymnasticos para os meninos, he o Collegio de São Pedro de Alcantara, dirigido pelos In.s Prado e Paiva - Ora, como elle sabe muito bem (porque mais de uma vez lho disse eu) que pelo Collegio de Pedro Segundo principiou no Rio de Janeiro a introducção da Gymnastica, estou muito receoso de semelhante caracter; temo que seja entre os alumnos hum fermento de perversão, e por isso me parece prudente esperar por outro Mestre.8

    Os dirigentes imperiais brasileiros esforçaram-se em construir uma imagem positiva e singular do CPII. A instituição deveria ser concebida no Brasil e no resto do mundo como um modelo do ensino secundário, fonte das principais iniciativas desenvolvidas em prol deste ramo da instrução no país. Na visão de Joaquim Silva, Urbano de Bidegorry havia cometido um ato grave, qual seja, o de refutar o caráter inovador do CPII no desenvolvimento da gymnastica em terras brasileiras.

    Três meses após ter sido demitido do CPII, Frederico Hoppe solicitou seu retorno ao Colégio9, defendendo que os exercicios gymnasticos fossem oferecidos somente em três lições semanais. Joaquim Silva concordava com a volta de Hoppe, mas fazia ver ao Ministro do Império a importância da gymnastica ser praticada diariamente pelos alunos do CPII. Em sua opinião, não convinha “privar os alumnos de huma hora de exercicio gymnastico cada dia”.10 O Reitor foi obrigado a recuar diante da escassez de pessoa habilitada a se responsabilizar pelo ensino da gymnastica no CPII. Melhor com a gymnastica, ainda que somente três vezes por semana, do que sem sua prática. Em novembro de 1848, Frederico Hoppe foi recontratado e os exercicios gymnasticos passaram a acontecer em três lições semanais. O Mestre de Gymnastica, apesar de ter se comprometido a cumprir fielmente seu ofício no CPII, assim não o fez. No ano seguinte, 1849, Frederico Hoppe voltou a faltar às lições, fato denunciado ao Ministro do Império por Joaquim Silva. Hoppe foi novamente demitido do CPII. Mais vantajoso para ele era o trabalho com a esgrima nos colégios particulares e em sua sociedade d’armas. Sua demissão não devolveu à gymnastica a freqüência diária no CPII. Apesar da defesa do Reitor Joaquim Silva, cadeiras teóricas, as mais prestigiadas no interior do CPII, ocuparam os tempos da jornada escolar antes destinados aos exercicios gymnasticos. O Ministro do Império mandou chamar para ocupar o lugar de Hoppe, Antônio Francisco Gama, Mestre de Esgrima da Escola Militar do Rio de Janeiro, instituição responsável por formar os oficiais do Exército Imperial.

O reconhecimento “oficial” dos exercicios gymnasticos no CPII

    A gymnastica foi introduzida no CPII em 1841, mas somente em 1855 ela seria citada pela legislação do Colégio. Isso ocorreu por meio do Decreto 1556 de 17/02 que baixou novo Regulamento para a instituição. No caso do CPII, ao contrário do que afirmaram Ricardo Lucena (1994) e Ademir Gebara (1992) sobre a introdução da Educação Física nas escolas brasileiras, a entrada da gymnastica não aconteceu como o resultado de um projeto legislativo, mas por iniciativas tomadas no interior da própria instituição.

    O Decreto de 1855 determinava que os exercicios gymnasticos deveriam ser praticados pelos alunos durante as “horas de recreação”, medida que fazia sobressair umas das funções higiênicas da gymnastica, um meio de ocupar e regular o tempo disponível dos jovens com atividades produtivas que, pelo uso do corpo, descansariam o espírito, predispondo-o para as lições das cadeiras teóricas.

    O Decreto de 1855 devolveu aos exercicios gymnasticos a freqüência diária, mas retirou-lhes o tempo reservado de uma hora. Eles passaram a ser praticados nos intervalos entre as lições, pois o governo elevou o número de cadeiras teóricas oferecidas pelo CPII. A disputa pelos tempos da jornada escolar do Colégio ficou acirrada e, por seu status, as cadeiras teóricas apropriaram-se dos tempos antes reservados à gymnastica.

    Desde 1841, a gymnatica era praticada no pátio do CPII. A partir de 1855, como parte de solicitações de Reitores do CPII e de Ministros do Império que reivindicavam a construção de um novo prédio para fazer funcionar a instituição, notamos a presença de discursos em favor da organização de um local específico e apropriado para as lições dos exercicios gymnasticos. Nesta direção, citamos a argumentação do Ministro Couto Ferraz apresentada em seu relatório de 1855:

    Este edificio não póde continuar a servir para o internato [...] pouco salubre já por sua posição no centro da Cidade para conter o avultado numero de alumnos internos que possue, e que tende a augmentar extraordinariamente, já pela humidade que domina grande parte do edificio, e finalmente inconveniente pela falta muito sensivel de logares de recreio, e nos quaes os meninos façam os exercicios gymnasticos, tão essenciaes em sua idade, e tão recommendados para sua educação physica por todas as autoridades competentes (p.59–60).11

    Especialmente a partir da metade do século XIX, o discurso médico higienista passaria a influir nas ações de legisladores e dirigentes responsáveis pela instrução pública, principalmente no tocante à organização e à regulação do espaço escolar (Gondra, 2000). No caso em questão, ao criticar o prédio do CPII, Couto Ferraz propunha a criação de um espaço que deveria ser organizado de acordo com os requisitos considerados como fundamentais ao pleno desenvolvimento da tarefa educativa: distante do centro da cidade, próximo à natureza, salubre, amplo, arejado e “com terreno sufficientemente espaçoso não só para exercicios gymnasticos, banhos, e natação, como para recreio dos mesmos alunos” (p.385).12

    Em 1857, o governo imperial fundou o Internato do CPII. O prédio antigo do Colégio, situado no Centro da cidade, passou a funcionar como Externato. O Internato foi localizado no Engenho Velho, um bairro rural, afastado do centro do Rio de Janeiro. Segundo o Ministro Couto Ferraz, o local reunia várias das condições mais favoráveis à instalação de um estabelecimento educativo, como por exemplo, o amplo espaço a ser utilizado para desenvolver a “educação physica” dos alunos:

    a residência dos alumnos em uma chacara fóra do centro da cidade, os passeios que ahi poderão dar nas horas de recreio, nos domingos e dias santos de guarda, sempre debaixo da vigilancia do reitor e dos inspectores, os exercicios gymnasticos em grande escala, a natação, etc, etc, hão de sobremodo concorrer para dirigir e aperfeiçoar a sua educação physica (p.65).13

    O Decreto 2006 de 24/10/1857, documento que oficializou a criação do Internato do CPII, fazia referência direta aos exercicios gymnasticos, considerando-os como uma das ‘matérias’ do curso de estudos do Colégio. O documento retirou o caráter obrigatório da gymnastica, bem como das matérias desenho, música, dança e italiano. As lições dos exercicios gymnasticos, facultativas, deveriam acontecer às quintas-feiras, podendo ainda, de acordo com a decisão do Reitor, ocupar as horas de recreação dos alunos. A gymnastica, portanto, não teria mais sua prática diária e obrigatória no CPII, o que se explica, mais uma vez, pela disputa entre as diversas matérias pelos tempos da jornada escolar do Colégio. No entanto, ainda que facultativas, as lições de gymnastica eram freqüentadas por um número significativo de alunos, como podemos verificar pelos Mapas de Matrícula do CPII da década de 186014. Assim, em 1865, 143 alunos freqüentaram as lições de gymnastica; em 1866, 148; em 1867, 118; e em 1868, 131 alunos.

    A partir de 1858, com a construção do Internato, as lições de exercicios gymnasticos passariam a acontecer num local específico, o “gymnasio”, conforme denominou o Inspetor de Instrução Pública do Município da Corte:

    a respeito do ensino da gymnastica e do desenvolvimento da educação physica e moral, principalmente no internato que se acha em condições mais adequadas, tenho chamado a attenção do reitor para o gymnasio daquelle estabelecimento [...] trata-se de dar vida real a esta tão util creação, que provavelmente, sendo imitada pelas escolas publicas e collegios particulares, marcara uma nova época para a educação physica da mocidade brasileira (p.10).15

    O gymnasio do CPII encontrava-se em construção quando o então Mestre de Gymnastica, Antônio Francisco da Gama, ausentou-se do Colégio por motivo de doença. Para seu lugar, Gama indicou Pedro Guilherme Meyer, alferes do Exército Imperial Brasileiro. Meyer assumiu as lições, bem com a coordenação da obra do gymnasio, lugar que, na opinião do Inspetor, serviria de exemplo aos demais estabelecimentos colegiais em prol da difusão da “educação physica da mocidade brasileira”.

    A construção de um lugar próprio para a prática da gymnastica não ficou restrita ao Internato. Em 1859, o Externato recebeu seu “pórtico gymnastico”, local que segundo o Ministro do Império José Antônio Saraiva, reunia “os apparelhos e as peças indispensaveis aos exercicios convenientemente dirigidos e graduados” (p.6).16

    Ao que tudo indica, Pedro Meyer, para além da esgrima, desenvolveu um trabalho mais abrangente no CPII. Neste sentido, é esclarecedor o relatório apresentado pelo Inspetor Geral da Instrução Pública do Município da Corte em 1859:

    Durante o anno passado começou a funccionar com a possivel regularidade o gymnasio do internato. Com pequena despeza se acha provido de um portico regular com varios apparelhos supplementares que permittem a maior parte dos exercicios da gymnastica pratica de Napoleon Laisné, ensinados pelo alferes Pedro Guilherme Meyer (p.18).17

    De acordo com o Inspetor, Pedro Meyer teria ministrado lições de exercicios gymnasticos inspiradas na ginástica do francês Napoleon Laisné. Este era discípulo do Coronel Francisco Amoros y Ondeano, a principal figura da ginástica francesa, falecido em 1848. Laisné tornou-se um dos principais continuadores da obra de Amoros, desenvolvendo seu trabalho na Escola de Joinville-le-Point, local para o qual foi transferido, em 1852, o principal ginásio antes dirigido pelo Coronel Amoros (BAQUET, [199-]).

    Segundo Carmen Lúcia Soares (1998), destacavam-se no método organizado por Amoros os exercícios da marcha, as corridas, os saltos, os flexionamentos de braços e pernas, os exercícios de equilíbrio, de força e de destreza, bem como a natação, a equitação, a esgrima, as lutas, os jogos e os exercícios em aparelhos, tais como as barras fixas e móveis, as paralelas, as escadas, as cordas, os espaldares, o cavalo e o trapézio. No CPII, atividades deste tipo foram implementadas por Pedro Meyer, mestre que introduziu na instituição os exercicios gymnasticos em aparelhos. Em 1876, para substituir aqueles adquiridos na época de construção do gymnasio e do portico gymnastico, Meyer solicitava ao Ministro do Império a compra de novos aparelhos:

    1º Um apparelho para os exercicios de equilibrio sobre uma trave – A trave deve ser uma viga redonda de 40 pés, (16 metros) de comprimento com 5 polegadas de diametro em uma das extremidades e com 12 na outra e tres cavalletes ou cêpos de 16 a 20 polegadas de altura. A viga deve estar segura aos cavalletes por meio de parafuzos e chapas de ferro; orçado no Arsenal de Guerra em 130$000 reis; 2º Um apparelho para subir e trepar – composto de dois póstes de 14 pés de altura e de 8 polegadas em quadro de grossura, ligados em cima por uma viga transversal que tenha 13 pés de comprimento; de 4 varaes de 2 polegadas de grossura com argollas e ganchos de ferro, parafuzos e porcas, e de duas escadas de mão de 20 pés de altura com as competentes argolas e ganchos. Os banzos ou braços das escadas devem ter 4 polegadas de largura e 2 de grosura e os degráos que serão redondos devem ter 11/4 de polegada; 3º Trez barras horizontaes ou de suspensão – devem ser tres varaes de 8 pés de comprimento e 2 polegadas grossura, de madeira rija e 4 postes para os mesmos varaes: cada poste deve ter 7 polegadas em quadrado de grossura e 8 pés de altura; 4º Uma barra de saltar – dous postes de 7 polegadas de largura, 4 de grossura e 8 pés de altura, com furos, cavilhas e cordas com 10 pés de comprimento e de 11/2 polegadas de grossura e com 2 pequenos saccos de couro fórte e cheios de areia; e seis varas de saltar com 2 polegadas de diametro e 10 pés de altura; 5º Trez barras parallelas, que consistem em 2 travessas ou corrimões de 9 pés de comprimento e de 2 e ½ polegadas de altura e 2 de grossura; quatro postes de 4 polegadas quadradas de grossura cada um. Os postes da primeira barra devem ter 3 pés de altura, os da segunda 3 e ½ e os da terceira 4 e ½; 6º Um apparelho para o exercicio do passo volante ou gigante – um mastro ou póste de 20 pés de altura, com casquete de ferro no cume, 4 cordas de ½ polegada de grossura e 22 pés de comprimento, e 4 mancios de 2 palmos de comprimento e 11/2 polegada de diametro, sendo estes torneados”18

    Consideramos que Pedro Meyer não se limitou à ginástica francesa de Amoros e Laisné. Reunimos indícios de que ele recebeu outras inspirações, como a ginástica alemã e o método organizado pelo suíço Phokion Heinrich Clias, indivíduo que desenvolveu seu trabalho na França e na Inglaterra, a partir das bases das ginásticas francesa e alemã.

    Pedro Meyer continuou como Mestre de Gymnastica do Internato e do Externato do CPII até 1870, quando passou a trabalhar somente no casarão do Engenho Velho. Nesta época, os exercicios gymnasticos já se constituíam enquanto uma disciplina, uma matéria do cursos de estudos do CPII: possuíam agentes, tempos e espaços escolares específicos; conteúdos selecionados e definidos; bem como estavam amparados pela legislação pertinente à instituição.

    Como o Colégio Pedro Segundo tornou-se uma referência para a educação secundária brasileira, sua influência atingiu outros estabelecimentos e colaborou para o desenvolvimento da Educação Física no país.

Notas

  1. A carta foi encontrada junto ao ofício enviado pelo Reitor Joaquim Silva ao Ministro do Império em 9/06/1841 (pasta IE4-29). Este documento e os demais ofícios citados estão disponíveis à consulta no Arquivo Nacional (Rio de Janeiro).

  2. Ofício do Reitor Joaquim da Silva enviado ao Ministro do Império em 13/08/1841 (pasta IE4-29).

  3. Ofício do Reitor Joaquim da Silva enviado ao Ministro do Império em 3/09/1841 (pasta IE4-29).

  4. Estes exames eram a principal avaliação dos alunos do CPII. Eles aconteciam ao final do ano e constavam de temas de todas as cadeiras teóricas oferecidas pelo Colégio.

  5. Documento que reproduz solicitação de Frederico Hoppe. Sem autor e datado 11/09/1846. Localizado na Biblioteca Nacional, seção manuscritos, pasta “C 272-6: ICP - ginástica: aulas de”.

  6. Ofício do Reitor Joaquim da Silva enviado ao Ministério do Império em 24/10/1846. Documento localizado na Biblioteca Nacional, seção manuscritos, pasta “C 272-6: ICP - ginástica: aulas de”.

  7. Ofício do Reitor Joaquim da Silva enviado ao Ministério do Império em 26/06/1848 (pasta IE4-32).

  8. Ofício do Reitor Joaquim da Silva enviado ao Ministro do Império em 4/07/1848 (pasta IE4-32).

  9. Ofício do Reitor Joaquim da Silva enviado ao Ministério do Império em 12/08/1848. Documento localizado na Biblioteca Nacional, seção manuscritos, pasta “C 272-6: ICP - ginástica: aulas de”.

  10. Ofício do Reitor Joaquim da Silva enviado ao Ministério do Império em 31/08/1848. Documento localizado na Biblioteca Nacional, seção manuscritos, pasta “C 272-6: ICP - ginástica: aulas de”.

  11. Relatório do Ministério do Império de 1855. Os Relatórios do Ministério do Império citados no texto encontram-se microfilmados no Arquivo Nacional.

  12. Decreto 2006 de 24/10/1857.

  13. Relatório do Ministério do Império de 1856.

  14. Estes documentos são encontrados ao final dos relatórios anuais do Ministério do Império.

  15. Relatório do Inspetor de Instrução Publica do Município da Corte. Documento anexo ao Relatório do Ministério do Império de 1857.

  16. Relatório do Ministério do Império de 1860.

  17. Relatório do Inspetor Geral da Instrução Pública do Município da Corte. Documento anexo ao Relatório do Ministério do Império de 1858.

  18. Ofício do Reitor César Marques enviado ao Ministério do Império em 1/06/1876, contendo em anexo a solicitação do Mestre de Gymnastica Pedro Guilherme Meyer (pasta IE4 65).

Referências bibliográficas

  • BAQUET, M. Évolution et Tendances de L’E.P. en France. Paris: ENEPS, [199-].

  • CUNHA JUNIOR, Carlos Fernando Ferreira da. Cultura Escolar e formação da boa sociedade: Uma história do Imperial Collegio de Pedro Segundo. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.

  • GEBARA, Ademir. Educação física e esportes no Brasil: perspectivas (na história) para o século XXI. In: MOREIRA, Wagner Wey (Org.). Educação física e esporte: perspectivas para o século XXI. Campinas, SP: Papirus, 1992. p. 13-31.

  • GONDRA, José Gonçalves. Medicina, Higiene e Educação Escolar. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira, FARIA FILHO, Luciano Mendes de, VEIGA, Cynthia Greive (Orgs.). 500 anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 519-550.

  • HAIDAR, Maria de Lourdes M. O Ensino Secundário no Império Brasileiro. São Paulo: EDUSP/Grijalbo, 1972.

  • LUCENA, Ricardo de Figueiredo. Quando a lei é a regra. Vitória: CEFD/UFES, 1994.

  • MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. 4ª edição. Rio de Janeiro: Access, 1999.

  • SOARES, Carmen Lúcia Soares. Imagens da educação no corpo: Estudo a partir da ginástica francesa no século XIX. Campinas: Autores Associados, 1998.

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