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O futebol como conteúdo de ensino da Educação Física escolar:
possibilidades a partir da concepção crítico-emancipatória

   
*Mestranda em Educação/PPGE.
Universidade Federal de Santa Maria, RS.
**Docente do Curso de Educação Física.
Universidade do Oeste de Santa Catarina, SC.
(Brasil)
 
 
Andréia Paula Basei*
andreiabasei@yahoo.com.br  
Marcos Araújo Vieira**
marcosv@unoesc.edu.br
 

 

 

 

 
Resumo
     Este estudo objetivou analisar a forma como está sendo praticado o futebol nas aulas de Educação Física e a partir disso, verificar quais as possibilidades de (re)significar os sentidos e significados atribuídos a sua prática no contexto escolar, fundamentada na concepção crítico-emancipatória. A metodologia fundamentou-se na fenomenologia, caracterizando-se como uma investigação-ação com abordagem qualitativa. Os participantes foram alunos de uma turma do primeiro ano do Ensino Médio, de uma escola da rede pública estadual de ensino do município de São Miguel do Oeste/SC. Constatou-se que o futebol praticado nas aulas segue os moldes dos esportes institucionalizados vivenciados fora do âmbito escolar, que transportados para as aulas tornam-se uma prática descontextualizada que não atende aos desejos/necessidades de todos os alunos. Através da investigação-ação, os alunos participaram das aulas incorporando os princípios pedagógicos propostos, tais como: dialogicidade, ludicidade, cooperação, criticidade, totalidade e continuidade-e-ruptura. Conclui-se que é possível (re)significar o entendimento do conteúdo esporte nas aulas através de estratégias didático-metodológicas e concepções de ensino que possibilitem uma compreensão ampla dos conteúdos, como construção histórica, social e cultural, atribuindo-lhes sentido e significados que possibilitem contribuir com a formação dos sujeitos e com a emancipação humana.
    Unitermos: Educação Física escolar. Prática pedagógica. Esportes. Emancipação humana.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 115 - Diciembre de 2007

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Introdução

    As práticas pedagógicas da Educação Física Escolar vem se constituindo para professores e pesquisadores da área num amplo campo de estudos e reflexões, tanto no que se refere à metodologia das aulas, avaliação do processo ensino-aprendizagem e organização dos conteúdos, quanto na homogeneização das práticas pedagógicas em torno do conteúdo esporte. Assim, as manifestações da cultura de movimento e o objetivo da Educação Física de tratar pedagogicamente dessas manifestações estão cada vez mais, sendo subsumidas pela hegemonia do esporte. E o futebol é o maior representante dessa hegemonia, uma vez que é amplamente praticado no contexto escolar, mas os sentidos atribuídos a sua prática estão restritos a racionalidade instrumental, limitando significativamente o seu valor pedagógico e, portanto, as possibilidades de contribuir com a formação dos sujeitos.

    Compreendendo a Educação Física Escolar como uma das possibilidades de contribuirmos com a emancipação humana, enquanto uma busca orientada na ação comunicativa proposta por Jürgen Habermas, que se fundamenta em uma ação livre de coerção, e visando estimular a consciência crítica e a reflexão a partir da cultura de movimento, buscamos fundamentação na proposta crítico-emancipatória, desenvolvida pelo professor Elenor Kunz, para a realização deste estudo através da investigação-ação.

    Nossa opção pela proposta crítico-emancipatória se dá pelo fato de acreditarmos na necessidade de se desenvolver nos alunos as competências objetivo, social e comunicativa enquanto forma de inserir os alunos no mundo e mais do que isso, proporcionar-lhes as condições necessárias para que possam agir no mundo, com entendimento e possibilidades para questionar e analisar a complexidade das questões que o envolvem.

    Para esse momento, escolhemos a transformação didático-pedagógica do esporte centrado na modalidade futebol, acreditando na necessidade de proporcionar aos alunos a reflexão sobre o esporte e os diferentes contextos que o mesmo se apresenta, seja educacional, de lazer ou de rendimento, e também a reflexão enquanto conteúdo hegemônico das aulas, buscando ampliar o entendimento do mesmo como prática cultural e instrumento de ensino.

    Sendo assim, objetivamos com o presente estudo analisar a forma como está sendo praticado o esporte, mais especificamente o futebol nas aulas de Educação Física e a partir disso, verificar quais as possibilidades de (re)significar os sentidos e significados atribuídos a prática do futebol no contexto escolar a partir de uma intervenção pedagógica através da investigação ação.


As concepções que nortearam a investigação

    Compreendendo a educação, e mais especificamente a Educação Física como uma das possibilidades de contribuirmos com a emancipação humana, buscamos na proposta crítico-emancipatória (KUNZ, 1994), uma fundamentação teórica para embasar nossas ações. Acreditamos ser de fundamental importância uma compreensão com relação às concepções de mundo, sociedade e educação que norteiam as práticas pedagógicas baseadas em teorias críticas para ampliarmos também as concepções de ensino e esportes.

    Nesse sentido, a compreensão de educação proposta pelo autor, é de um agir comunicativo, racional e crítico, que se oriente pelo desenvolvimento de uma capacidade questionadora e argumentativa consciente sobre a realidade. Esse entendimento está embasado na teoria da ação comunicativa desenvolvida por Habermas (1987), a qual, conforme o autor apresenta três regras básicas: 1) todo e qualquer sujeito capaz de agir e falar pode participar de discursos; 2) todo e qualquer participante pode problematizar qualquer informação, introduzindo novas afirmações, exprimir suas necessidades e; 3) nenhum interlocutor pode ser impedido de fazer uso dos direitos acima descritos. Sendo assim, através das práticas educativas, buscando desenvolver a competência comunicativa, podemos transcender para além da aula, contribuindo para a formação de um sujeito capaz de intervir em seu mundo-de-vida. E, ampliando essa atuação, será possível caminhar para mudanças no mundo dos sistemas, que segundo Habermas (1987) vem colonizando o mundo-de-vida, desalojando a ação comunicativa.

    A "operacionalização" da ação comunicativa ocorre através de três níveis, como nos afirma Habermas (1987): 1) entendimento onde o locutor [professor] por meio da argumentação racional procura convencer o outro da verdade de uma afirmação, da validade da norma e/ou veracidade de suas declarações; 2) discurso é um tipo de ação comunicativa que se estabelece quando o entendimento está temporariamente suspenso e; 3) teoria consensual da verdade, onde a razão orienta um processo de busca da verdade. Essa operacionalização é facilmente identificável nas aulas, desde que, os objetivos de formação estejam conectados com um processo emancipatório.

    Citando como exemplo, nossa investigação, o professor busca o entendimento a medida que, através de argumentações busca construir uma nova concepção de "jogar futebol" com os alunos. Estes, por sua vez, através do discurso, trazem suas vivências e concepções, as quais confrontadas com as dos outros colegas e do professor chegam a um consenso, livre de coerções internas e externas. Para que esse processo se dê, se faz necessário desenvolver a capacidade argumentativa nos alunos, disponibilizar o tempo necessário para que o discurso aconteça e que os interlocutores [professor e alunos] busquem o esclarecimento.

    Nesse sentido e de acordo com Kunz (1999), "[...] a escola deve ser aquela instância em que os Esclarecimentos do Mundo possam ser esclarecidos. Só isso pode conduzir a uma prática pedagógica emancipatória". Com isso, o autor quer nos afirmar que apesar de estarmos sendo bombardeados por informações de todos os meios, é preciso sair da mera incorporação e cópia dessas informações, através de uma reflexão comunicativa e crítica, transcendendo esses limites para efetivamente construirmos conhecimentos. Por isso, também um processo emancipatório de ensino não tem um final a ser alcançado, mas trata-se de estarmos constantemente transcendendo os limites e buscando novos esclarecimentos.

    Dessa forma, para a escola possuir uma função emancipatória, como nos coloca Kunz (1994: 115), o ensino deverá "[...] ser um ensino de libertação de falsas ilusões, de falsos interesses e desejos, criados e construídos nos alunos pela visão de mundo que apresentam a partir de 'conhecimentos' colocados a sua disposição pelo contexto sócio-cultural onde vivem".

    Outra questão que consideramos importante ressaltar é a necessidade de compreender-se a aula de Educação Física "[...] como um processo de interação social, no qual o professor e os alunos definem suas situações de ação e, com isso, determinam os seus significados" (HILDEBRANDT-STRAMANN, 2001: 47). Com isso, temos um conceito de prática educativa em Educação Física que orienta-se em uma proposta de formação onde a participação dos integrantes da aula é fundamental e os sentidos e significados são confrontados pelos participantes a partir de uma relação dialógica.

    Partindo desse entendimento, é possível ampliarmos a concepção dos esportes como conteúdo da Educação Física, pois conforme nos aponta Adorno (1971 apud KUNZ, 1996),

O esporte é um fenômeno social que pode ter duplo sentido, de um lado, pelo fair play, pelo companheirismo, pelo respeito aos mais fracos, etc. ele pode fomentar a anti-barbarie e o anti-sadismo social, mas por outro lado, através de muitas de suas formas e processos de desenvolvimento, ele poderá promover a agressão, a brutalidade e o sadismo, e isto tudo, muitas vezes, numa dose maior em pessoas que nem se dedicam a ele de forma prática, como todas as suas exigências e disciplinamentos, mas como meros espectadores.

    O esporte então, configura-se como uma prática de origem sócio-cultural, que trás inscritos códigos, sentidos e significados que devem ser analisados criticamente, quando se fala do valor pedagógico e do sentido desse conteúdo estar presente no currículo escolar. Sendo assim, é necessário "[...]orientar o ensino num processo de desconstrução de imagens, [...]desconstrução de imagens negativas que o aluno interioriza [...]" (KUNZ, 2001: 24), com relação a prática dos esportes como se apresentam atualmente, institucionalizados e normatizados.

    É nesse sentido que entendemos que é preciso uma (re)significação para as práticas educativas, seja através de novos conteúdos ou dos tradicionalmente trabalhados nas aulas, e a proposta crítico-emancipatória nos abre essa possibilidade centrando o ensino num agir comunicativo, estimulando o questionamento.

    Conforme Kunz (2002: 126), para que esse processo se concretize, se faz necessário identificar os elementos significativos centrais da modalidade a ser trabalhada e a partir daí, buscar vivências através de várias situações de ensino que envolvam tais elementos. Outro ponto de referência é a identificação do significado central do "se-movimentar" de cada modalidade esportiva. Através dessa perspectiva de "encenação temática", é possível conforme o autor, levar o aluno a refletir sobre as diferentes formas que o esporte se apresenta, e com isso, mostrar que o futebol vai muito além do espetáculo transmitido pela mídia, através das personalidades que se transformaram seus jogadores e da imagem associada ao consumo.

    Assim, compreendendo o futebol como uma cultura de movimento hegemônica dentro das aulas de Educação Física, é necessário mostrar alunos que ele pode ser praticado de outras formas, para além dos aspectos técnicos e táticos do esporte normatizado, incorporando outros sentidos e significados para a prática do jogo, propiciando o entendimento do jogo enquanto prática da cultural que necessita de cooperação e interação.


Metodologia

    Este trabalho caracterizado como uma pesquisa com enfoque fenomenológico, com abordagem qualitativa, teve como participantes os alunos de uma turma do primeiro ano do Ensino Médio, de uma escola da rede pública estadual de ensino do município de São Miguel do Oeste/SC.

    Esta pesquisa foi desenvolvida a partir da investigação-ação, que é "[...] um tipo de pesquisa com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo" (THIOLENT, 1985).

    Assim, ela objetiva uma intervenção prática e de conhecimento diante da realidade do senso comum, onde os participantes têm possibilidade de expressarem sua compreensão do fenômeno, em nosso caso o esporte, especificamente a modalidade futebol, e a nossa intervenção caminha no sentido de não apenas descrever essas compreensões, mas construir estratégias no sentido de (re)significar as compreensões prévias.

    Fundamentamos nossa intervenção na ação-reflexão-ação, uma vez que através dela os sujeitos, nesse caso tanto o pesquisador quanto os pesquisados, enquanto produtores de conhecimentos e ações podem estar ativamente envolvidos nas decisões das situações problema encontradas, na participação, na avaliação das ações e também na criação de formas de ação.

    A análise das compreensões prévias dos sujeitos, das suas ações e reflexões sobre o fenômeno estudado, foi realizada através de uma interpretação hermenêutica, que de acordo com Demo (1989: 248), "[...] é uma metodologia de interpretação que dirige-se a compreender formas e conteúdos da comunicação humana, em toda a sua complexidade e simplicidade".


Os achados da investigação

    Num primeiro momento, objetivamos dar liberdade aos alunos para realizarem o jogo de futebol conforme já vinham praticando e expressarem assim, através de suas ações as compreensões prévias sobre o "jogar futebol". Observamos que a compreensão dos alunos e a maneira como é tratado o jogo no âmbito escolar se dá conforme sua manifestação na sociedade, "[...] uma cópia exata e irrefletida do esporte de rendimento" (KUNZ, 1991), representando uma cultura hegemônica que é transportada para a escola de acordo com as experiências subjetivas dos alunos.

    Essa constatação fica bastante evidente na forma de organização do jogo, com estabelecimento de tempos para cada time, na separação dos times por gêneros e nas expressões utilizadas por eles durante o jogo, tais como: "A dupla da zaga está feita", "Faz o cruzamento na direita quando eu estou livre", "Espera vamos colocar barreira", e "Tem que sair do meio do campo". A influência é de tal proporção que, na compreensão dos alunos, se o jogo não for realizado dessa maneira, não é possível praticá-lo. Outro fato interessante é o caráter competitivo atribuído ao jogo, que fica claramente acentuado através da expressão de um aluno do time que estava perdendo ao dizer aos colegas: "Vamos que dá para fazer mais um gol" e a comemoração feita pelos alunos ao fazerem gols. Essa característica contribui ainda mais para uma vivência de sucesso para a minoria, e uma experiência fracassada e desmotivadora para a grande maioria dos sujeitos (KUNZ, 1994), reforçando ainda mais os valores da sociedade capitalista.

    Sobre esta constatação e também pela expressão de insatisfação de alguns alunos com relação a esse tipo de práticas, ao perguntar-nos: "Prof, vai ser sempre assim a aula [...]. É só uma matação, não tem graça jogar, eles não passam a bola", percebemos o quanto se faz necessário ampliarmos o entendimento do jogo, segundo o senso comum, atribuindo-lhe um valor pedagógico para legitimar sua inserção no currículo escolar.

    A partir dessa visão de como os alunos praticam o futebol, é que foram estruturadas as outras aulas, as quais estavam fundamentadas no principio do jogo de futebol, porém, tratando-se de um jogo pedagogicamente transformado, objetivando verificar como este poderia contribuir para (re)significar as compreensões prévias dos alunos. O jogo pedagogicamente transformado de que falamos traz como fundamento o jogo de futebol já conhecido pelos alunos, porém as atividades que propomos, envolvendo o jogo, visavam essencialmente atender a princípios pedagógicos que centram a atenção não somente no jogo em si, mas no "se-movimentar" dos sujeitos envolvidos.

    Um jogo pedagogicamente transformado que propomos foi o "Futebol caranguejo", onde um dos obstáculos encontrados foi primeiramente a divisão dos times, pois não foi realizada por gênero e alguns se recusavam a participar se assim fosse. Outro obstáculo foi para que as meninas começassem a atividade, pois estavam com receio de colocar-se na posição que para jogar. Entretanto, através da realização dessa atividade, percebeu-se que em vários momentos o gol não era mais visto como um dos principais elementos do jogo, pois, por vários momentos os alunos paravam para observar o colega se movimentando como 'caranguejo', uma forma de movimento estranha para muitos, o que percebemos nas suas falas: "Olha que legal", ou então "Meu o que parece isso", não ironizando os colegas, mas demonstrando estar vivendo/sentindo a situação de aula como um momento de prazer. Com o decorrer do jogo, os alunos começaram a cansar e perder o entusiasmo, nesses momentos eram introduzidas novas regras desafiando-os a realizarem suas ações de movimento de outra forma, necessitando da criação de estratégias.

    Um segundo jogo realizado que desencadeou reflexões interessantes foi o "Futebol estátua", onde todos deveriam escolher uma posição no campo e não poderiam mais movimentar-se para receber a bola, sendo que ao final de esclarecermos qual seria a proposta inicial de jogo um dos alunos disse: "Prof. é como aquele jogo com os pregos?", associando o jogo com outro já realizado por eles anteriormente, porém com os jogadores representados por pregos. Com essa atividade, oportunizamos aos alunos trabalharem o passe, identificado como um dos elementos significativos da modalidade, objetivando a busca de vivências variadas desse fundamento do jogo, compreendendo a importância de cooperação entre eles se quisessem realizar o gol.

    Na aula onde foi proposto o "Futebol com meta móvel", eles jogaram normalmente com os pés, porém a goleira, formada por dois alunos segurando uma corda, se movimentaria por todo o campo. A atividade tornou-se interessante, pois os alunos modificavam as regras no decorrer do jogo ao perceber que as estratégias utilizadas não estavam contribuindo para a realização da atividade. Como exemplo podemos citar uma situação em que a bola pegou na mão de um menino e ele disse: "Aqui não é futebol tradicional, não tem mão", ou então quando foram sair do meio campo e um aluno disse: "Não precisa dar três metros". Em outras situações eles ficavam confusos, pois como tinha dois alunos segurando uma corda, que era a goleira, manifestavam-se ao tentar fazer o gol: "Meu Deus a goleira tá escapando". Através da problematização dessa atividade foi enfatizado as competências social e comunicativa na aula, e como resultados interessantes podemos mencionar o fato dos alunos criarem estratégias novas, comparando-as com suas compreensões anteriores do jogo, porém, não querendo mais tomá-las como referência, o que podemos ilustrar nas falas: "Vale gol contra...", e "A trave [aluno] pode fazer gol".

    Num segundo momento, foi proposto que a mesma atividade fosse realizada em duplas, com as mãos dadas, alguns alunos apresentaram resistência, principalmente os meninos, como afirma um deles:"Eu não sou viado para dar a mão pra ele", e após uma discussão sobre as questão de gêneros e interação entre eles, dois meninos se abraçaram e disseram para os colegas: "Vamos, não dá nada". A partir disso, os alunos lentamente superaram o preconceito e realizaram a atividade proposta, criando novas regras frente às dificuldades que surgiam, dando motivação para continuar o jogo. É importante ressaltar que durante o jogo, eles se perguntavam quem estava ganhando, e não havia ninguém contando os gols, sendo que a aula terminou, e eles discutiam sobre quem tinha ganhado: "Não sei quanto deu, mas nós ganhamos", e uma menina responde: "Eu acho que nós ganhamos ou empatou, porque no fim nós estava jogando melhor". Verificamos que as questões que motivaram o jogo perpassaram o nível competitivo a medida em que as atenções estavam voltadas para que o jogo acontecesse através da interação entre os sujeitos e não ao fato da competição em si.

    Em outra situação, foi proposto o "Futebol com gol invertido", onde as goleirinhas foram colocadas a aproximadamente 3 metros da linha de fundo, e para que o gol fosse válido, a bola deveria ser tocada de trás para frente. Os alunos não apresentaram grande resistência no começo da atividade, porém, quando questionamos se era possível jogar daquele jeito eles falaram: "É prof. só que as vezes dá muita confusão", seguido por outros comentários que o futebol normal seria melhor, pois segundo um aluno: "É que daí a gente sabe e não precisa ficar inventando regras".

    Nessa atividade um dos maiores obstáculos encontrados foi o fato de que, em times mistos, as meninas não recebiam a bola. A partir dessa reclamação, observamos os alunos conversando e justificando a situação: "Vocês ficam plantadas, como é que é para passar a bola", "E ainda erram o pé quando a gente passa", e outro conclui dizendo: "É verdade, vocês tem que se mexer". A situação foi resolvida através do diálogo, que configura-se conforme Baecker (1996) é "[...] uma condição para a interação social [...]". Assim, uma menina dá a sugestão de que os meninos só poderiam tocar a bola para as meninas e vice-versa, resolvendo momentaneamente este problema.

    Uma nova proposta foi a do "Futebol Pebolim humano", semelhante ao jogo de mesa praticado por muitos deles em bares, porém, os jogadores seriam eles. Foram dispostas algumas cordas de referencia, e cada uma delas ficou um dado número de alunos, alternando as colunas, uma de um time e outra do outro. No começo da aula quando a proposta foi apresentada, eles entenderam, mas não sabiam como o jogo iria transcorrer, dizendo: "Prof. isso não tem como fazer aqui", ou então "Prof. não dá como que a bola vai chegar do outro lado para fazer gol", até que começaram a praticar e acabaram envolvendo-se com a atividade, incluindo novas regras, com ao movimentação de alguns alunos, com a inclusão de um jogador neutro que ajudou os dois times. O jogo terminou com todos os jogadores em movimento dentro de sua área, delimitada pela corda.

    Em uma aula seguinte, e dando continuidade a atividade que terminou a aula anterior, foi proposto o "Futebol com três zonas", utilizando a metade do campo, dividimos em três zonas, ataque, meio e defesa. No início da atividade, ninguém queria ficar na defesa, quando eles começaram a dialogar e organizar-se: "Vai quatro cada campo", "Não dá vai ficar pouca gente atrás", e ainda "Eu vou lá na frente", dando possibilidade do jogo acontecer. Assim, através do diálogo tratado por Kunz (2001) como "[...] elemento essencial no processo de educação, e nas aulas de Educação Física", os alunos atribuíram e mudaram os sentidos/significados, buscando (re)significar suas ações.

    No final das nossas intervenções pedagógicas realizamos uma discussão, questionando o posicionamento dos alunos a respeito, buscando identificar se tinham modificado suas compreensões prévias e elaborado outras a partir de nossa intervenção. Nesse sentido eles expressaram seus posicionamentos, o que ilustramos com as falas: "Eu não gostei muito, a prof. vem inventando cada coisa e ainda por cima diz que é futebol", "Foi legal o pebolim, porque a gente nunca tinha jogado e nem pensado que dava", "O caranguejo também era legal, só que no outro dia doía tudo os braços", "Pelo menos algumas vezes nós pudemos jogar de igual pra igual com os piás", "Eram todas legais, só que nós gostamos mais de jogar o futebol normal", e quando questionados porque o aluno conclui: "Porque nós somos brasileiros e futebol aqui é assim".

    Assim, notamos que os alunos apresentam uma tendência em resistir a novidade, influenciados pela cultura ao qual estão inseridos e da qual acabam incorporando seus signos, símbolos e significados e elaborando os sentidos para suas ações. Esse fator aparece claramente explicito nas falas acima, no entanto, acreditamos que é necessário levar propostas de trabalho diferenciadas, para que os alunos caminhem em direção a uma mudança de atitude com relação as práticas da Educação Física escolar, ampliando a concepção de aula dos professores e alunos.


Considerações finais

    Enquanto educadores precisamos fomentar nos alunos a capacidade comunicativa, visto que a mesma não é dada como simples produto da natureza, mas deve ser desenvolvida (KUNZ, 2001: 31). Precisamos acreditar nas possibilidades de mudanças e tentar buscar espaço para uma nova racionalidade, e construirmos dentro de um referencial teórico consistente, uma possibilidade que objetive contribuir para a superação dos apriorismos condicionantes e determinantes das ações e das estruturas das práticas educativas, caminhando para uma (re)construção das práticas da educação, e mais especificamente da Educação Física.

    A partir da realização desta investigação-ação pudemos observar que a escola tem sim, condições de produzir uma cultura escolar do esporte, através de seus próprios critérios, porém o que nos falta é essa mudança na compreensão de aula, e da Educação Física como um todo, para que seus valores sejam questionados criticamente e a partir de então, ampliando para sua função social, estabelecendo uma identidade que seja capaz de distinguir o educativo do alienante.

    Essa tendência a esportivização das aulas de Educação Física, acreditamos estar ligada a maior facilidade e praticidade para o professor 'planejar' seu trabalho através da prática de alguma modalidade esportiva, incentivando a reprodução mecânica de gestos técnicos, dentro de um jogo que possui regras prontas e, normalmente conhecida pelos alunos, do que estruturar suas aulas numa concepção dialógica de movimento e dar um sentido para o que está sendo realizado de acordo com o contexto sócio-histórico-cultural no qual cada sujeito ali presente está inserido, como construído e construtor dele.

    Além disso, outro argumento para justificar essa escolha poderia ser a aceitação dos alunos, os quais praticam, ou melhor, tentam praticar, porque na verdade as condições não permitem, o esporte nas aulas de Educação Física, tal qual está posto em outros âmbitos sociais, reproduzindo os valores da sociedade vigente dentro do contexto escolar. Dessa forma se não apresentarmos uma proposta que coloque em discussão essas práticas, nossos alunos vão continuar gostando e jogando futebol, no caso, simplesmente porque não conhecem ou não são estimulados a praticar outras atividades, e não pelo fato de serem resistentes as transformações.

    Apesar de algumas resistências encontradas, percebemos que através da realização das atividades os alunos participaram mais das aulas, de maneira que meninos e meninas realizaram atividades juntos, o que até então não acontecia. Isso teve como fator determinante o estimulo ao diálogo, a capacidade comunicativa e argumentativa entre eles durante a realização das atividades, principalmente na resolução dos problemas que surgiam.

    Observamos também, o caráter lúdico na realização das atividades, onde em algumas situações, os alunos demonstraram esquecer o objetivo principal do jogo, o gol, devido o envolvimento com o mesmo, e nas situações de movimento que os alunos demonstravam estar no jogo de forma prazerosa, e não apenas realizando um ato mecânico em busca do resultado.

    Portanto, como ponto de chegada dessa investigação, mencionamos a necessidade de orientar as práticas educativas tomando como base alguns princípios pedagógicos fundamentais para práticas baseadas em teorias críticas, na medida em que constituem-se no eixo orientador, auxiliando desde o planejamento até o desenvolvimento e reflexão das ações realizadas. Através da adoção de princípios pedagógicos como a criticidade, dialogicidade, continuidade-e-ruptura, ludicidade, cooperação é possível tratar dos significados das atividades que estão se realizando e dos sentidos que os alunos poderão atribuir as mesmas, de acordo com suas vivências e experiências de movimento, e também (re)significar suas concepções sobre o futebol, localizando-o em um contexto histórico e cultural.


Referências

  • BAECKER, Ingrid Marianne. Identitätsfördrung im Bewegungsunterricht Brasilianischer Grundschulen, Universidade de Hamburgo. República Federal da Alemanha, 1996. (Tese de Doutorado - Tradução Autora).

  • BASEI, A. P.; BOSCATTO, J. D.; VIEIRA, M. A. Possibilidades de emancipação humana nas aulas de educação física. In: 2º Congresso Sulbrasileiro de Ciências do Esporte. Criciúma/SC, 2004.

  • GONÇALVES, M. A S. Sentir, pensar e agir - Corporeidade e educação. Campinas, Papyrus, 1994.

  • HABERMAS, J. Consciência Moral e Agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

  • _________. Para reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense, 1987.

  • HILDEBRANDT- STRAMANN, R. Textos pedagógicos sobre o ensino da educação física. Ijuí: Unijuí, 2001.

  • KUNZ, Elenor. Didática da educação física 1. 2ª ed. Ijuí: Unijuí, 2001.

  • _________. Didática da educação Física 2. Ijuí: Unijuí, 2002.

  • _________. Educação Física - Ensino e Mudança. Ijuí; Unijuí, 1991.

  • _________. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí, 1994.

  • _________. Esclarecimento e emancipação: pressupostos de uma teoria educacional crítica para a educação física. In: Revista Movimento. Escola de Educação Física. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ano V, nº 10, 1999/1.

  • _________. O esporte na perspectiva do rendimento. In: Grupo de Estudos Ampliado de Educação Física. Diretrizes curriculares para a educação física no ensino fundamental e na educação infantil da rede municipal de Florianópolis/SC. Florianópolis: O grupo, 1996.

  • SEIBENEICHLER, F.B. Jürgen Habermas: Razão Comunicativa e emancipação. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

  • THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-ação. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1985.

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