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Espaço, lazer e política: desigualdades na distribuição
de equipamentos culturais na cidade do Rio de Janeiro

   
*Coordenador do Grupo de Pesquisa Lazer e Minorias Sociais
Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestre em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz)
**Coordenador do Grupo de Pesquisa Lazer e Minorias Sociais
Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Pós-Doutorado em Estudos Culturais (PACC/UFRJ);
Doutor em Educação Física e Cultura (UGF)
 
 
Fabio de Faria Peres*
peres@ensp.fiocruz.br  
Victor Andrade de Melo**
victor@bighost.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    Este artigo tem por objetivo apresentar um panorama da distribuição de equipamentos culturais (cinemas, museus, centros culturais, parques e florestas, bibliotecas e teatros) na cidade do Rio de Janeiro. Para tal, utilizamos dois parâmetros por nós desenvolvidos: o Indicador de Desenvolvimento e Acesso Cultural absoluto (IDAC-absoluto) e o Indicador de Desenvolvimento e Acesso Cultural relativo (IDAC-relativo e por unidade). Preocupamo-nos também em estabelecer a correlação entre a distribuição de equipamentos e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a fim de verificar em que intensidade as desigualdades nestes parâmetros estão relacionadas. Acreditamos que o reconhecimento deste panorama municipal pode ser de grande utilidade na elaboração de políticas públicas mais efetivas e justas.
    Unitermos: Cultura. Lazer. Desenvolvimento urbano.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 93 - Febrero de 2006

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Introdução

    Como pensar a cidade como espaço múltiplo de lazer? Considerando os equipamentos culturais como possibilidades de lazer, como pensar no acesso a tais bens no âmbito municipal? Que relação tais aspectos teriam com a ordem sócio-econômica e com a atual situação das cidades, notadamente as metrópoles?

    De início somos instados a reconhecer que o futuro das cidades parece preocupante em um momento onde se percebe um certo esvaziamento da esfera pública, um desgaste pronunciado do tecido urbano, uma decomposição das relações sociais (Caldeira, 2000)1.

    Para compreender melhor esse processo devemos considerar as articulações entre aspectos econômicos e culturais, não acreditando que se trata exclusivamente de um desdobramento de uma crise financeira. Não devemos aceitar que as discussões acerca da dimensão cultural do problema sejam negligenciadas, como bem alerta Oskar Negt (2002, p.18) 2:

Nunca se produziu tanto e de maneira tão eficaz como hoje em dia. Mesmo assim, as pessoas se preocupam dia e noite com problemas econômicos. Nunca se viu um fenômeno desse na história. O que sempre houve foi uma economia da escassez que dizia: quando formos ricos teremos tempo suficiente para nos preocupar com os problemas da cultura.

    Não por acaso, reflexos de uma tendência a supervalorizar o aspecto econômico, podemos identificar no imaginário da população uma certa hierarquização das necessidades, onde saúde, educação e trabalho (entendidos como fundamentais à "sobrevivência") ocupam espaço de predominante importância, ficando relegados ao segundo plano assuntos como lazer e cultura, entendidos como solicitações para um instante posterior, quando os primeiros problemas estiverem sanados. Assim, nem sempre se entende que lazer e cultura são tão importantes quanto qualquer outra reivindicação e mesmo que podem ocupar importante papel no alcance daquilo que é considerado "necessário".

    Essa compreensão que acomete os indivíduos é de certa forma referendada pelo próprio poder público, sempre mais preocupado com superávites, balanços positivos e ajustes fiscais do que com outras dimensões também fundamentais para o bem estar humano. Perceba-se como as secretarias de esporte, lazer e cultura estão entre as que menor valor recebem nas negociações políticas, por ocasião da montagem da equipe de governo, também estando entre as que são contempladas menor fatia do orçamento. Cultura, lazer e espaço público

     Na verdade, as preocupações com os espaços de lazer não são recentes. No Brasil, já no século XIX, notadamente no seu quartel final e destacadamente na cidade do Rio de Janeiro, podemos encontrar as primeiras iniciativas voltadas à organização e controle das atividades de lazer da população. O contexto de modernização da sociedade brasileira vai contribuir para tornar importante para as cidades em crescimento os momentos de vida festiva.

    Paulatinamente observa-se uma busca do espaço público enquanto locus de vivência social e um crescimento de um mercado de diversões que envolve as festas religiosas (progressivamente mais profanas), o teatro (de grande importância naquele momento) e posteriormente engloba as manifestações esportivas e o cinema (já na transição do século XIX para o XX) 3, em um movimento que futuramente (décadas de 1920/1930) vai abarcar também o rádio (fundamental para o desenvolvimento de um mercado ligado aos espetáculos musicais) e a televisão (décadas de 1950/1960).

    As preocupações com a organização das cidades foram fundamentais para o desenvolvimento das primeiras iniciativas estruturadas de intervenção profissional no âmbito do lazer, observáveis nas décadas de 1920 e 1930, nas cidades de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro4. Mesmo que estas propostas possuíssem claras diferenças na sua concepção e execução, eram explícitos alguns pontos em comum: a) a compreensão de que era necessário controlar os espaços públicos no intuito de evitar "desordens" no tecido urbano; isto é, acreditava-se que as atividades de lazer poderiam funcionar como elementos disciplinadores e de manutenção da ordem; b) o entendimento que estas atividades seriam úteis como forma de manutenção da saúde e da recuperação da força de trabalho, importantes para um país que se industrializava e sentia os impactos desse processo. Enfim, eram em geral compreendidas como atenuadoras das mazelas que a modernidade trazia para a sociedade brasileira.

    Perceptivelmente a noção de ocupação do espaço público sempre esteve mais voltada para os interesses dos grupos sociais ligados às elites econômicas; contudo, ainda assim, havia possibilidades constantes para a participação das camadas populares. O que terá havido nas últimas décadas, uma destruição completa da esfera pública? Nicolau Sevcenko crê que não. Para ele, o que ocorre: "não é uma dissolução dessa esfera pública simultaneamente à esfera privada, mas um processo de circularidade pelo qual as duas tendem a estados de convergência e de diluição das suas fronteiras" (2002, p.39) 5.

    Para este autor, uma das explicações para isto pode ser encontrada no intenso processo de transformação tecnológica, notadamente crescente a partir da década de 1970. A partir de então, assistimos à construção de eletrodomésticos cada vez menores e mais acessíveis financeiramente, que progressivamente passam a ser considerados como um produto de "necessidade básica", ainda mais aqueles ligados à comunicação. Basta lembrar que no Brasil já temos um número maior de televisões do que de geladeiras.

    Com isso tende-se a uma privatização das vivências cotidianas, onde pode-se observar que as pessoas se restringem cada vez mais a seu espaço doméstico, utilizando os equipamentos tecnológicos (televisão, vídeo, DVD, internet) como mediadores de seu contato com a realidade, o que acaba por reduzir sensivelmente as expressões humanas e afetivas. Para tentar atrair a atenção do público e fundamentalmente garantir a rentabilidade da atividade, vendem-se fantasias irrealizáveis, simulacros do real, difundidos por uma mídia e por uma indústria cultural poderosas.

    Se antes os valores sociais eram prioritariamente construídos no contato pessoal na esfera pública, hoje assistimos um processo oposto, onde:

Nossa percepção do real passa a ser a de que o espaço público é cada vez mais mediado por uma burocracia que impregna todos os seus poros e que é intransponível. As decisões são todas elas controladas por uma elite tecnocrática, cujo jargão tecnocientífico é impenetrável. E a política foi monopolizada por grupos e mecanismos de "lobyzação" que esvaziaram completamente tanto a capacidade de expressão quanto as aspirações locais, comunitárias ou coletivas (Sevcenko, op.cit., p.40).

    Mesmo que devamos considerar a força desse processo de privatização, não podemos investir na compreensão de que é uniforme ou monolítica essa forma de controle. Existem sim resistências e saídas, basta que as procuremos com calma, cuidado, ênfase e realismo, sem pessimismos ou otimismos exacerbados. Lembremos que a palavra "privatização" deriva de "privare", cujo significado é roubar. E ninguém é roubado de forma absolutamente passiva; há sempre alguma forma de contraposição.

    As camadas populares buscam alternativas de organização no âmbito do lazer e da cultura. Os estudos de Jesus (2002) 6, Pítaro e Barbosa (2003) 7 e Peres (2004) 8 demonstram que existem tais iniciativas e muitos indivíduos preocupados e envolvidos com projetos desta natureza. Contudo, em função do quadro social, encontram muitas dificuldades de execução, inclusive de continuidade e de organização. De qualquer maneira, devemos reconhecer que o avanço tecnológico ampliou o alcance da cultura de massas, fazendo mesmo que a produção cultural muitas vezes se confunda com o consumo de mega-eventos, distribuídos e oferecidos a partir de um modelo global. As próprias leis brasileiras de incentivo à cultura, em vigor nos últimos anos, de alguma forma têm reforçado essa compreensão, que, aliás, somente bem recentemente tem recebido críticas mais contundentes9.

    A cultura é assim entendida, de forma limitada e equivocada, como:

um conjunto de expressões que pode ser resumido no âmbito do entretenimento, do consumo e do agenciamento físico (...). Um contexto, portanto, onde o reflexo prevalece sobre a reflexão, o signo prevalece sobre o símbolo e a virtualidade prevalece sobre a representação"(Sevcenko, op.cit., p.42).

    As palavras de Walter Prigge (op.cit.) nos indica desdobramentos desse processo que têm impacto direto sobre a cidade: "Essa midialização estimula a tendência de privatizar os eventos culturais originalmente públicos e sua percepção estética. Com isso reforça ainda mais a erosão progressiva dos ambientes públicos urbanos" (p.55). Como ficam os espaços de lazer nesse contexto?

    Na cidade do Rio de Janeiro podemos observar alguns aspectos desse desmantelamento das formas públicas de lazer, como, por exemplo, a queda do prestígio e a falência dos antigos clubes de bairro. Até a década de 1980, era comum que muitas comunidades locais possuíssem seu clube, sempre ativo e possibilitando oportunidades múltiplas de diversão e convívio social.

    Hoje em dia um grande número de associações dessa natureza já não mais existem ou se encontram em mau estado de conservação. Podemos citar alguns exemplos: Cassino Bangú (Bangu), Sepetiba Esporte Clube (Sepetiba), Esporte Clube São José (Magalhães Bastos), Lins Tênis Clube e Vitória Esporte Clube (Lins), Esporte Clube Mackenzie (Méier), Jabour Social Clube (Senador Camará), Maxwell Esporte Clube (Vila Isabel), entre muitos outros.

    Tal processo certamente trás repercussões negativas para as perspectivas de organização e construção de redes sociabilidade e solidariedade, sobretudo das camadas populares, já que os clubes ligados às elites econômicas, ainda que também com dificuldades, de alguma forma permanecem ativos, até mesmo como forma de status e distinção.

     Outro exemplo notável é o declínio dos cinemas de rua. Em 1955, o Rio de Janeiro atingiu o número máximo de cinemas em sua história, cerca de 190, espalhados por quase 50 bairros. Eram cinemas com uma só sala de exibição (alguns com grande disponibilidade de lugares) e que tinham como público-alvo a população da comunidade ao redor.

    Hoje temos cerca de 150 salas de cinema, mas estas se distribuem somente por cerca de 20 bairros, normalmente organizadas no modelo de complexos cinematográficos (várias salas em um só cinema), se localizando, na maior parte dos casos, em shoppings-centers. Os antigos cinemas, em sua grande maioria, viraram igrejas evangélicas e supermercados, ou foram divididos em várias pequenas salas.

    Ampliam-se os complexos de diversão (com o surgimento de shoppings, parques temáticos, casas de shows, entre outros), entretanto, aparentemente cada vez mais se organizam locais públicos para privilegiados, onde, implícita ou explicitamente (por motivos diversos, entre os quais o preço e a distância), definem-se as possibilidades (restritas) de acesso. Hierarquiza-se (e privatiza-se) o espaço urbano.

    Constroem-se "opções" que podem conceder "condições de urbanidade" e "segurança" (bastante relativa, aliás, na medida em que em algum momento todos precisam procurar o espaço público), como é o caso dos condomínios, que oferecem todas as benesses para quem pode pagar, supostamente mantendo os ricos longe dos problemas sociais, a não ser quando deixam seus "mundos de sonhos" por algum motivo (trabalho, outra forma de lazer etc.)10.

    Esses locais, protegidos por muros e tecnologias, chamados por Caldeira (op. cit.) de "enclaves fortificados", são ocupados por aqueles que estão abandonando a esfera pública tradicional, o que acaba por transformar a dinâmica da vida em sociedade. Caldeira destaca que os princípios do espaço público moderno (como a acessibilidade, a abertura e a livre circulação, que possibilitam o encontro e a interação dos "diferentes" e das "diferenças", que deveria ser caracterizado como âmbito privilegiado da liberdade, no qual se expressa a vontade e o agir coletivo, fruto do debate público, democrático e da reunião de diversos atores), estariam desaparecendo e sendo desvalorizados (mesmo que, façamos uma ressalva, nunca tenham se realizado completamente).

    Contemporaneamente, observam-se iniciativas de delimitação do acesso ao espaço público, na medida em que os "enclaves fortificados" são exclusivamente propriedades que valorizam o que é:

[..] privado e restrito ao mesmo tempo que desvalorizam o que é público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos. São voltados para o interior e não em direção à rua, cuja vida pública rejeitam explicitamente. São controlados por guardas armados e sistemas de segurança, que impõem as regras de inclusão e exclusão. São flexíveis [...] independentes do seu entorno, que podem ser situados praticamente em qualquer lugar. [...] Finalmente, os enclaves tendem a ser ambientes socialmente homogêneos. Aqueles que escolhem habitar esses espaços valorizam viver entre pessoas seletas (ou seja, do mesmo grupo social) e longe das interações indesejadas, movimento heterogeneidade, perigo e imprevisibilidade das ruas. Os enclaves privados e fortificados cultivam um relacionamento de negação e ruptura com o resto da cidade e com o que pode ser chamado de um estilo moderno de espaço público aberto à livre circulação. Eles estão transformando a natureza do espaço público e a qualidade das interações públicas na cidade, que estão se tornando cada vez mais marcadas por suspeita e restrição (Caldeira, op. cit., p.259).

    Esses "enclaves" conferem status, reforçando diferenças, criando, nos termos de Bourdieu (2003) 11, meios e justificativas para o distanciamento, a distinção e a existência de desigualdades sociais. Dessa forma, há uma construção simbólica que transforma o enclasuramento em algo valorizado. Elabora-se, assim, uma nova maneira de estabelecer fronteiras entre grupos sociais.

    Assim sendo, devemos considerar com cuidado o alerta de Prigge:

hoje os estilos de vida urbana se reduzem a uma questão de preço. Por isso, a urbanidade parece ser produzível (...); como marca estética, fica restrita a determinados fragmentos urbanos centrais nos quais "a gente" assume um comportamento urbano adequado: a "urbanidade" transforma-se em estratégia estética hegemônica para a revalorização de espaços centrais" (op.cit., p.54).

    Mesmo que ainda existam muitos fluxos entre o centro e a periferia (e vice-versa), temos que reconhecer que as cidades estão cada vez mais divididas, notadamente as metrópoles. No caso do Rio de Janeiro, para explicitar tal situação, Zuenir Ventura cunhou um termo bastante utilizado: "cidade partida". Preferimos considerar que existe, na verdade, um processo confuso de circularidade e influência. Talvez seja mais adequado falarmos em uma "cidade interrompida".


A cidade como palco

    Obviamente que esse processo não trás problemas somente para os cidadãos das camadas populares, por certo os mais expostos e atingidos por terem menos possibilidades de contrapor e minimizar seus efeitos perversos. Os indivíduos reagem de diferentes maneiras e vemos acentuar-se o desgaste dos valores comunitários: "a individualização leva ao solapamento dos vínculos. Desligados dos contratos do estado social, os indivíduos sentem-se apenas usuários da cidade, sem estarem comprometidos com os problemas urbanos em geral" (Prigge, op.cit., p.53). "Desconsiderados" e fragmentados da cidade, esta acaba também pouco considerada pelos cidadãos (que muita vezes sequer se reconhecem como tal).

    Em função desse afastamento de cidadão e cidade, alguns problemas são bastante visíveis para todos, como a violência crescente e o aumento do desordenamento urbano, que não podem ser reconhecidos somente enquanto conseqüências da ordem econômica.

    Inseridas nas preocupações de minimizar os problemas, e não solucioná-los, podemos identificar uma série de propostas paliativas de intervenção no espaço urbano, que surgem com o argumento a princípio louvável de melhorar a cidade para todos, mas normalmente se estabelecem como maquiagens para tornar mais agradável a vida daqueles que já estão longe das periferias.

    Muitas vezes tais remodelações são vinculadas a eventos internacionais que ocorrem nas cidades, como se fossem um ganho secundário possível. Por exemplo, em 1992, quando a cidade do Rio de Janeiro sediou a Conferência Mundial para Meio Ambiente (ECO-92), promoveu-se um grande processo de intervenção urbana. Mais tarde confirmou-se o que alguns setores críticos já denunciavam naquele momento: a maior parte das mudanças foi promovida nas zonas mais ricas da cidade, para agradar os olhos dos turistas e dos chefes de estados estrangeiros; as reformas foram feitas de forma apressada e com material de baixa qualidade, que logo se desgastou; como não se privilegiou a implantação de projetos sérios de educação, não houve uma modificação nos costumes dos cidadãos, que também pouco contribuíram para preservar as reformas; além do mais, as comunidades não foram mobilizadas e consultadas acerca das modificações promovidas.

    Fatos semelhantes também ocorreram com os projetos da época da candidatura do Rio de Janeiro aos Jogos Olímpicos de 2004 e se não ficarmos atentos situação semelhante acontecerá por ocasião da preparação para os Jogos Panamericanos de 2007.

    Otília Arantes (2002) 12 é uma das autoras críticas a essa concepção de cidade-evento, cujas remodelações poucos ganhos trazem para o cômputo geral da população:

não há paradoxo algum, antes involuntária coerência, num projeto de reestruturação do sentido original do "fazer cidade" (como se diz nos prospectos) movido a "ocasiões" sem significado urbano intrínseco, além da equivalência geral das boas oportunidades, em si mesmo indiferentes, desde que abram uma porta para a globalização, porta estreita por definição. Esse, sem dúvida, um dos traços do urbanismo dito de última geração: vive-se a espreita de ocasiões...para fazer negócios! (p.59).

    Esses "eventos" se articulam coerentemente com a lógica de entendimento da produção cultural como espetáculo de entretenimento, como estratégia de consumo fácil, muitas vezes pela própria televisão e não in loco.

    Se antes já estavam imersas na lógica do acúmulo de capital e as iniciativas de controle da população estavam ligadas ao fortalecimento das estratégias de negócios, o que parece diferenciar este momento é o fato das cidades em si se estabelecerem como formas de negócios, compreendidas como uma mercadoria, muito ligadas à lógica do trabalho, afinal, a cidade não seria concebida para a diversão (para isso há a casa) e sim para "ganhar dinheiro".

    Não parece acaso, então, que o metrô do Rio de Janeiro, até fevereiro de 2004, não funcionava aos domingos, dia de lazer para grande parte da população. Por que pensar em facilitar o acesso aos equipamentos culturais, prioritariamente localizados no Centro e na Zona Sul da cidade, ainda mais quando parte dos moradores dos bairros "nobres" manifesta preocupações, explicitadas pelos jornais, quanto ao fato de que os habitantes da periferia possam vir a "destruir" os "seus" bens?

    Com essas preocupações com a "urbanidade", não surpreende também que muitas atividades de alguma forma ligadas ao ethos e aos desejos das camadas populares sofram diversas formas de preconceito e intervenção. No Rio de Janeiro, vimos isso ocorrer com a Feira de São Cristóvão, que há anos acontecia nas redondezas do Pavilhão localizado no mesmo bairro. A prefeitura resolveu "organizar" tal feira, o que modificou profundamente as suas peculiaridades, originariamente de características comunitárias, que passaram a ter que se submeter a uma lógica tecnocrática13. Processo semelhante aconteceu com o Terreirão do Samba, que se organiza no carnaval, na Praça Onze, zona central da cidade14.


A questão da qualidade do acesso

    Podemos elencar pelo menos três dimensões de grande importância no que se refere ao acesso aos equipamentos e bens da cidade, inclusive os culturais: o aspecto físico (se há equipamento propriamente dito); o aspecto financeiro (se o valor cobrado e os gastos adicionais são acessíveis) e o aspecto relacionado à formação/predisposição (se há estímulo e intervenção pedagógica, mediação, que possibilite a compreensão dos significados das diversas manifestações culturais). Não adianta, a cidade possuir uma infinidade de equipamentos públicos se as pessoas não são estimuladas a freqüentá-los (Melo, Alves, 2003) 15.

    Trata-se, na verdade, de uma questão de educação (e de vontade política). Não podemos concordar com a compreensão de produção cultural como oferecimento de eventos esporádicos. Há que se investir em um projeto pedagógico contínuo e prolongado, que procure despertar em cada indivíduo a compreensão de que mais do que consumidor de cultura é também produtor de cultura. Deve-se criar condições para que as pessoas tenham o direito sine qua non da escolha.

    Como já visto, uma das peculiaridades da intensa midialização da cultura é a restrição de sua compreensão enquanto mercadoria a ser consumida em eventos, o que contribui para obliterar a auto-compreensão dos indivíduos enquanto agentes e não só pacientes do processo cultural, o que bem se presta a um processo de controle social. Como bem afirma Prigge (op.cit.), devemos pensar em um processo de mediação cultural que pressupõe:

uma transformação da situação dos meios de produção cultural interativa, que são programados cada vez mais segundo critérios de empresas privadas; em vez disso deveria existir a possibilidade de fazer do consumidor privado de bens culturais um produtor público de cultura. Para chegar a esse ponto é necessário descobrir (...) interligações criativas entre a mídia virtual "privada" e o espaço "público" urbano que permitam o aproveitamento produtivo dos processos de midialização de ação global na cultura urbana (p.56).

    Büttner (2002) 16 demonstra como desde a década de 1970 têm sido mais constantes preocupações com experiências de despertar, através da arte, grupos diversos para sua capacidade de se entenderem enquanto produtores culturais e não como usuários "passivos". Nessas experiências, não é o aspecto artístico em si que define o sucesso ou não da empreitada, mas sim a capacidade de mobilização e participação. O que se espera é estimular as pessoas a encontrarem novas formas de comunicação e de ocupação do espaço público17.

    Queremos reforçar a idéia de que o conceito de produção cultural não está somente relacionado à confecção de algum objeto, alguma obra. Trata-se também de uma postura crítica perante o que é consumido, o que é assistido. Cremos que há inclusive uma forte articulação entre a possibilidade de acessar o que tem sido socialmente produzido e o estímulo para que cada indivíduo se perceba como capaz de também produzir criativamente.

    Tendo em vista este conjunto de reflexões, nos parece que discutir a distribuição de equipamentos culturais pela cidade pode ser importante para pensarmos as desigualdades e os desafios a serem assumidos. Na realidade nacional, essa perspectiva ganha uma conotação ainda mais relevante. Em linhas gerais, no Brasil pode-se identificar uma grande desigualdade na distribuição de equipamentos culturais. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 73,2% dos municípios brasileiros não possuem sequer um museu e apenas cerca de 7% possuem cinema. Em relação às bibliotecas públicas e às livrarias, a situação não é muito diferente: somente cerca de 10,9% possuem duas ou mais bibliotecas, sendo que apenas 35,3% possuem livraria18.

    Enfim, este estudo se pauta na compreensão de que uma das dimensões de acesso aos bens culturais é a sua espacialidade. Ou seja, a cultura, compreendida de forma ampliada e plural (um conceito que engloba o imaginário, as linguagens, o cotidiano e tantos outros aspectos da vida social), possui uma espacialidade própria, tanto em seu sentido mais restrito (no que se refere ao aspecto físico e geográfico propriamente dito dos equipamentos) quanto em seu sentido mais amplo, considerando sua relação com o contexto social, político e econômico (Fortuna, Silva, 2002) 19.


A distribuição de equipamentos culturais na cidade do Rio de Janeiro

    Considerando o quadro nacional, poder-se-ia a princípio afirmar que o Rio de Janeiro é uma cidade privilegiada por apresentar um espectro muito maior de opções de equipamentos culturais. Encontra-se dentre os 0,4% dos municípios brasileiros que possuem mais de cinco museus, dispõe de mais de 40 cinemas (com cerca de 147 salas) e mais de 100 teatros:. Contudo, um olhar inicial apressado já nos permite perceber a permanência da situação de desigualdade na distribuição de tais bens pelo espaço desta cidade.

    A cidade do Rio de Janeiro possui 159 bairros, divididos em 30 Regiões Administrativas (RA): Portuária, Centro, Rio Comprido, Botafogo, Copacabana, Lagoa, São Cristovão, Tijuca, Vila Isabel, Ramos, Penha, Inhaúma, Méier, Irajá, Madureira, Jacarepaguá, Bangu, Campo Grande, Santa Cruz, Ilha do Governador, Paquetá, Anchieta, Santa Teresa, Barra da Tijuca, Pavuna, Guaratiba, Rocinha, Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré. Por sua vez, tais regiões estão distribuídas em 5 Áreas de Planejamento (AP) (quadro 1 e figura 1).

    Como avaliar e compreender melhor tais diferenças em um município que apresenta características e condições sociais tão díspares? Como obter dados mais seguros que nos permitam identificar com mais clareza tal situação? Com este intuito, elaboramos parâmetros que permitem indicar, mesmo que de forma preliminar, critérios para avaliarmos a distribuição dos equipamentos culturais pelo espaço físico do município.

    Neste artigo será apresentado um panorama da distribuição (absoluta e relativa) dos bens que são habitualmente considerados como equipamentos culturais (cinemas, museus, centros culturais, parques e florestas, bibliotecas e teatros) na cidade do Rio de Janeiro. Para tal, utilizamos dois parâmetros por nós desenvolvidos: o Indicador de Desenvolvimento e Acesso Cultural absoluto (IDAC-absoluto) e o Indicador de Desenvolvimento e Acesso Cultural relativo (IDAC-relativo e por unidade). Por fim, preocupamo-nos também em estabelecer a correlação entre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a distribuição dos equipamentos, a fim de verificar em que intensidade as desigualdades nestes parâmetros estão relacionadas.

    Os dados referentes aos equipamentos culturais foram coletados em seções específicas de dois jornais de grande circulação na cidade20. Tal escolha se deu por dois motivos: a) pela importância e poder de difusão da mídia escrita; o critério por nós adotado foi de que a existência do equipamento cultural deveria estar relacionada com a divulgação pública das suas atividades; b) pela dificuldade de se obter, por parte das instituições públicas no âmbito da cultura, indicadores confiáveis ou adequados ao nosso intuito.

    A prefeitura do Rio de Janeiro até possui muitos dados, contudo verificou-se que não obedeciam ao critério adotado de divulgação pública. Ou seja, quando há iniciativas no sentido de averiguar e contabilizar os equipamentos culturais, na maioria das vezes são também considerados aqueles nos quais a utilização e a divulgação são bastante restritas, como por exemplo, o circuito de cinemas pornográficos. Isto não significa que desconsideramos a importância destes equipamentos para a cidade. Acreditamos inclusive que alguns destes possuem um importante papel na garantia da diversidade cultural. Apenas adotamos um critério que leva em consideração uma condição indispensável para a dinâmica e a ampla participação cultural: a circulação da informação, sobretudo de natureza pública.

    Obviamente não estamos desconsiderando a amplitude e a pluralidade que os conceitos "cultura" e "equipamento cultural" possuem, nem tampouco a relação com outros campos como educação, meio ambiente e saúde. Apenas optamos por analisar inicialmente a distribuição de 6 equipamentos: bibliotecas, museus, centros culturais, parques e florestas, teatros e cinemas, o que não impede que pesquisas futuras considerem, além de outros equipamentos, outras manifestações culturais. Os resultados são apresentados no quadro 1:

Quadro 1: Equipamentos culturais, segundo as Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas

    A cidade, portanto, dispõe de 440 equipamentos, assim distribuídos: museus - 15%; bibliotecas - 10%; centros culturais - 10,9%; parques e florestas - 3,6%; teatros - 27%; salas de cinema - 33,4%. A distribuição destes equipamentos pela cidade revela uma expressiva desigualdade, na medida que 23,9% do total estão localizados na AP1, 42% na AP2 e 15,9% na AP4, enquanto que 13,6% estão situados na AP3 e apenas 4,5% na AP5 (ver gráfico 1).

    A distribuição no plano das Regiões Administrativas também revela desigualdades consideráveis: 23,3% das trinta RA's não possuem nenhum dos equipamentos pesquisados, enquanto que a RA Botafogo e a RA Lagoa possuem respectivamente 17,3% e 12,5%. (ver gráfico 2). Ao comparamos RA's com AP's, a situação parece ainda mais alarmante: percebemos que a RA Botafogo e a RA Centro sozinhas concentram mais equipamentos que as AP3, AP4 e AP5.

Gráfico 1: Distribuição total, segundo Área de Planejamento

Gráfico 2: Distribuição total de equipamentos, segundo Região Administrativa

    Fica clara a diferença na distribuição total das oportunidades de acesso aos equipamentos culturais, observável inclusive se fossemos analisar cada equipamento específico.


Indicador de Desenvolvimento e Acesso Cultural Absoluto (IDAC-absoluto)

    A partir dos dados apresentados, poder-se-ia questionar se a desproporção da distribuição de equipamentos se justificaria pela variação dos habitantes de cada região. Para entender melhor esse impasse, criamos o Indicador de Desenvolvimento e Acesso Cultural. Trata-se de uma parâmetro que considera a variação demográfica e possibilita aperfeiçoar o evidenciar do cenário da distribuição dos equipamentos21.

    Deve-se ter em conta que o IDAC de modo algum expressa se uma determinada população é mais ou menos desenvolvida culturalmente do que outra; inclusive acreditamos que qualquer tentativa nesse sentido partiria de uma perspectiva limitada e etnocêntrica de cultura. O Indicador trata-se apenas de uma tentativa de revelar as desigualdades a que uma determinada população está sujeita no que se refere a facilidade ou não de acesso aos equipamentos culturais (considerando-se nesse caso o local de residência).

    Matematicamente, este indicador consiste em dividir o número de equipamentos pelo número de moradores. Assim, o IDAC-absoluto varia de 0 a 1, onde 0 significaria que não existiria nenhum equipamento para a população e 1 significaria, numa situação utópica, que para cada habitante existiria um equipamento. Ou seja, quanto maior o resultado, maior é a presença de equipamentos culturais por habitante. Neste sentido, o gráfico 3 evidencia o quanto a cidade do Rio de Janeiro é desigual no acesso aos equipamentos.

    Vale destacar que o IDAC, ao incluir o número de habitantes de uma determinada região, revela um panorama diferente da análise da distribuição e concentração dos equipamentos. Basta analisar e comparar os gráficos 1 e 3 para se ter uma idéia das diferenças.

    Por exemplo, a AP2 possui a maior concentração de equipamentos (42%), mas está em segundo lugar se considerarmos o IDAC-absoluto (ver gráfico 3). Isto se explica porque na AP1 se encontra a RA Centro, origem histórica da cidade, local muito importante política e culturalmente no passado, mas hoje pouco habitado. O Centro vem passando por um processo de revitalização cultural, inclusive recebendo uma série de incentivos para tal. Assim, por exemplo, possui o maior número de equipamentos do Rio de Janeiro (19,1%), disparado o maior número de museus e centros culturais (36,4 %), o segundo lugar em número de bibliotecas (13,6 %), entre outros.

    Vejamos outra consideração interessante. Podemos perceber que na análise comparativa da distribuição e da concentração de equipamentos entre as AP3 e AP5, revela-se uma significativa discrepância entre elas (13,6% e 4,5% respectivamente). Elas se aproximam, entretanto, se considerarmos o IDAC-absoluto (ver gráfico 3).

Gráfico 3: IDAC-absoluto, segundo Áreas de Planejamento


Indicador de Desenvolvimento e Acesso Cultural Relativo ou por unidade (IDAC-relativo)

    Assim como o IDAC-absoluto, o IDAC-relativo considera a variação demográfica de cada região. Entretanto, o IDAC-relativo possui o objetivo de evidenciar mais claramente a variação da oferta de equipamentos culturais entre as diversas regiões, ao considerar como referência aquela que está, por assim dizer, em situação mais privilegiada. Este indicador é obtido ao se dividir o IDAC-absoluto de uma determinada região pelo IDAC-absoluto da região referência (aquela que apresenta melhor IDAC-absoluto) e multiplicá-lo por cem.

    Vejamos o caso das AP's como exemplo. A AP1 será a nossa referência, pois apresenta o melhor IDAC-absoluto. Ao calcularmos o IDAC-relativo temos os seguintes dados: a AP2 apresenta 47,6% do IDAC-absoluto da AP1, enquanto a AP3, a AP4 e a AP5 possuem respectivamente 6,5%, 26,2% e 3,3%. Ou seja, se considerássemos a AP1 como a área de planejamento "ideal" para que a distribuição dos equipamentos fosse eqüitativa, no que tange ao número de equipamentos ponderado pelo número de habitantes, as outras AP's estariam significativamente distantes desse "ideal", sobretudo a AP5 que possui uma defasagem de 96,3%. Resumindo: a AP5 está "distante" 96,3% do conjunto de oportunidades de acesso que a AP1 possui.

    Tomemos agora um equipamento específico como exemplo: as salas de cinema. Neste caso, o IDAC-absoluto da AP4 é a referência. Deste modo, temos os seguintes IDAC's-relativo: AP1 - 28,1%; AP2 - 63,3%, AP3 - 16,6% e AP5- 4,9%. Neste caso podemos dizer que a AP2 é a área de planejamento que mais se "aproxima" do nível de oportunidade que a AP4 oferece, enquanto que a AP5 é a área que está mais "distante".


Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a sua relação com a distribuição de equipamentos culturais

    O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), criado pelos economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sen, é calculado a partir de variáveis que englobam três dimensões: saúde, educação e econômia. O IDH varia de 0 a 1, sendo que valores mais altos indicam níveis superiores de desenvolvimento (PNUD, 1998) 22.

    Aplicado a todos os países desde 1990, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, em conjunto com Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), calculou os IDH's de quase todos os bairros da cidade, tendo como base a renda familiar per capita (soma dos rendimentos dividida pelo número de moradores da residência), a expectativa de vida, a taxa de alfabetização de maiores de 15 anos e o número médio de anos de estudo da população.

    Foram identificados os seguintes IDH's (figura 1 e quadro 2):

Figura 1: IDH médio, segundo Áreas de Planejamento

Quadro 2: IDH, segundo Regiões Administrativas

    A partir disso, calculamos o coeficiente de relação linear entre os IDH's23 e a distribuição dos equipamentos (apresentada no quadro 1). No que tange ao total de equipamentos, segundo AP's, obtivemos a surpreendente correlação positiva de 0,906 (ver gráfico 4). Vale destacar que:

O coeficiente de correlação varia entre -1 e +1, inclusive, isto é, -1 < r > +1. Se r assume o valor de 1, diz que as duas variáveis têm correlação perfeita positiva e de r assume o valor -1, diz-se que as duas têm correlação perfeita negativa. Se r assume o valor 0, não existe correlação entre as duas variáveis (a correlação é nula) (Vieira, 1980, p.51) 24.

    Isto significa que há uma forte correlação entre o número de equipamentos culturais e o IDH. Em outras palavras, podemos dizer que nas AP's que possuem maiores IDH's há uma concentração maior de equipamentos culturais. Isto não significa que exista uma relação de causa e efeito entre estas duas variáveis, apenas demonstra a "força" que mantém "unidas" estes dois conjuntos de valores.

    Deste modo, podemos afirmar - utilizando o próprio conceito etimológico da palavra correlação - que estas variáveis possuem uma relação em dois sentidos, isto é: uma em relação a outra (tanto do IDH para a concentração de equipamentos quanto da concentração de equipamentos para o IDH).

Gráfico 4: Diagrama de Dispersão, segundo IDH e Concentração de Equipamentos das AP's

    Já o coeficiente de relação entre o IDH e a concentração de equipamentos culturais das Regiões Administrativas é de 0,656 - evidenciando uma correlação média entre estas duas variáveis (ver gráfico 5). Uma das explicações possíveis para a diferença entre os coeficientes é a dinâmica da população nas proximidades de sua residência, apontando, portanto, que o acesso físico aos equipamentos não é apenas determinado pela presença geográfica do equipamento no bairro de moradia.

Gráfico 5: Diagrama de Dispersão, segundo IDH e Concentração de Equipamentos das RA's


Conclusão

    Obviamente esta análise não pretende se encerrar em si mesma. Poderíamos nos deter e interpretar os muitos indicadores e valores encontrados, mas optamos por apresentar um primeiro cenário da distribuição dos equipamentos culturais na cidade do Rio de Janeiro.

    Identificamos, de fato, uma grande desigualdade na distribuição destes equipamentos, indicando que a diferenciação sócio-cultural se revela também espacialmente. Isto, por sua vez evidencia não apenas os desafios que os agentes/animadores culturais encontram quando pretendem dinamizar sua intervenção pedagógica no âmbito da cultura, como também a necessidade de pensarmos em um processo de redistribuição e desconcentração cultural25 para a cidade do Rio de Janeiro. Acreditamos que o conhecimento dos indicadores apresentados pode ser de grande importância e utilidade para a elaboração de políticas públicas mais efetivas, já que o acesso é condição sine qua non para as vivências dos momentos de lazer e de cultura.

    Por certo os indicadores não podem ser compreendidos como retratos absolutos da realidade. Por exemplo, não conseguem captar a questão da qualidade dos equipamentos nem tampouco da programação oferecida (um assunto sempre polêmico). Devemos considerar também que o fato de uma determinada população possuir equipamentos próximos a sua residência, não determina que vá procurá-los com freqüência. Mais ainda, a questão da proximidade das APs é uma fator de cruzamento interessante. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, a população residente na AP2 tem, na verdade, a sua disposição não só os equipamentos de sua área geográfica, mas também os da AP1.

    Evidentemente não podemos dizer que tal cenário determina linearmente o acesso aos bens culturais. Isto depende de uma série de fatores, como transporte, preço, gosto pessoal, informação, entre outros. Além disso, se considerássemos o panorama apresentado como determinante exclusivo, estaríamos cometendo o equívoco de excluir aquele que tem um papel fundamental na dinâmica cultural: o ator social. Como nos lembra Magnani:

Em algumas análises, a dinâmica da cidade é creditada de forma direta e imediata ao sistema capitalista; mudanças na paisagem urbana, propostas de intervenção, alterações institucionais não passam de adaptações às fases do capitalismo que é erigido, na qualidade de variável independente, como a dimensão explicativa última e total. [...]. [Mas] a simples estratégia de acompanhar um "desses indivíduos" em seus trajetos habituais revelaria um mapa de deslocamentos pontuado por contatos significativos, em contextos tão variados [...] (2002, p.14) 26.

    Imaginemos que existam transporte adequado, preços acessíveis, condições para que a população da periferia acesse com qualidade os equipamentos culturais e um processo de educação constante, estariam resolvidos todos os problemas? Por certo que não. Primeiro porque não se trata somente de levar o povo da periferia para consumir a cultura do centro, mas levar a cultura do centro à periferia também. Depois, porque também se trata de romper qualquer fronteira artificial que exista entre a cultura da periferia e a do centro. Os indivíduos precisam se entender enquanto produtoros de cultura, entendendo-a a partir de uma visão de circularidade e influências múltiplas. Logo, a cultura da periferia também tem que chegar ao centro.

    É também necessário questionar os sentidos de status e distinção que persistem insistentemente entre muitos daqueles responsáveis pela "cultura" na cidade ("produtores e promotores culturais"). A própria maneira como se organizam os equipamentos culturais pode se constituir em constrangimento para quem não pertence àquele "mundo". Aliás, é curioso como os "produtores e promotores culturais" muitas vezes se prestam bem aos papéis esperados pela ordem social, mesmo quando afirmem, somente nos discursos, o contrário. Enfim:

não se trata de constatar a colonização da animação cultural (que aliás já nasceu colonizada, como o próprio nome indica) pela máquina de crescimento, mas, sobretudo, a operação inversa: o novo combustível sem o qual a coalizão não fabrica os consensos de que necessita, pois se trata de uma máquina ideológica acionada pelos que administram tanto a construção física quanto a ideacional dos recursos capazes de impulsionar o desenvolvimento dentro e pelos "lugares" da cidade, apropriadamente denominados urban imaginers (Arantes, op.cit., p.68).

    Apesar destas ponderações, de forma alguma acreditamos que fica reduzida a importância deste panorama sócio-espacial construído a partir dos indicadores. O cenário apresentado, mesmo não sendo totalmente determinante no comportamento dos indivíduos, tem influência e representa a situação de desigualdade e exclusão que a cidade do Rio de Janeiro comporta. As palavras de Molotch (citado por Arantes, op.cit., p.67) ajudam-nos a entender os sentidos dessa diferenciação:

O processo de construção da cidade distribui esculturas, museus e edifícios de alto padrão, atraindo aqueles que têm condições de escolher onde viver, trabalhar, gozar sua afluência. As zonas favorecidas incorporam, como lugares, o capital cultural que forja não somente seu futuro privilegiado, mas reduz o futuro das áreas menos favorecidas.

    Além disso, esta análise tenta criar parâmetros e metodologias para que as iniciativas públicas no âmbito da cultura sejam socialmente mais eficientes e justas. Enfim, o estudo da distribuição dos equipamentos e de sua relação com o desenvolvimento social se insere num contexto mais amplo, na medida que aponta alguns desafios para a construção de uma sociedade mais igualitária e democrática. Afinal, "Torna-se difícil imaginar a transformação da sociedade por meio da cultura se ela não chega ao conjunto da população" (Brant, 2002, p.19) 27. Neste sentido, como afirma Hamilton Faria:

As políticas públicas de cultura devem, urgentemente, estimular o debate, as experiências e as vivências sobre valores e paradigmas, os comportamentos e sociabilidades urbanas, enfim, caminhos da construção do desenvolvimento humano e de uma cultura que tenha no seu horizonte o direito à vida em todas as suas manifestações (2003, p.35) 28.

    Não surpreende, então, que algumas prefeituras já estejam tomando as primeiras iniciativas para criar mecanismos de melhor distribuição, como é o caso do Rio de Janeiro no que se refere às Lonas Culturais, equipamentos de baixo custo distribuídos pelos bairros da periferia (aqueles que possuem a maior carência de bens dessa natureza); ou buscando desenvolver campanhas de popularização com o oferecimento de ingressos a preços mais acessíveis.

    O próprio Ministério da Cultura, não sem encontrar resistências, já desencadeou um processo de rediscussão das leis de incentivo à cultura, de forma a aumentar o seu alcance. Aliás, vale também lembrar que a ONU já apresenta como novidade no cálculo do IDH preocupações com a questão da diversidade cultural29.

    Também se destaca o grande número de projetos desenvolvidos em comunidades de baixa renda que tem a cultura como mote de atuação, mesmo que estes, em grande parte, ainda utilizem como critérios de sucesso a inserção dos jovens na lógica da cultura de massa30. Aliás, já se pode inclusive perceber uma maior valorização da temática lazer/cultura nos discursos de alguns líderes comunitários31.

    Já é um início, mas ainda é muito pouco. Clama-se, então, pela construção/elaboração de uma intervenção política ampla e plural que considere à dinâmica própria da cultura e que respeite, como condição fundamental, o debate público e democrático. Como bem assinala Enrique Saravia:

    A política cultural poderá asfixiar ou proteger, ser eficaz, prejudicial ou inócua: tudo dependerá da sua adequação à comunidade, a seus códigos e afazeres. Ou, mais especificamente, da sua sintonia com a estrutura cultural - perspectiva, crenças e valores - com o processo cultural - comportamento, modos de criação, formas de relacionamento - e à consciência de como os dois elementos - estrutura e processo - se influem e se modificam mutuamente. Essa sintonia, essa busca de harmonia, é o grande desafio da política cultural contemporânea (2001, p.65) 32.


Notas

  1. Caldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Ed.34 / Edusp, 2000.

  2. Negt, Oskar. "Espaço público e experiência". In: Pallamin, Vera (org.). Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

  3. Tal busca pelo espaço público se dava de forma similar ao que ocorrera na Europa no período conhecido como Belle Époque. Maiores informações podem ser obtidas nos estudos: Needell, Jeffrey D. Belle Époque tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Melo, Victor Andrade de. Cidade Sportiva. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2001.

  4. Maiores informações podem ser encontradas no estudo: Werneck, Christianne Luce Gomes. Significados de recreação e lazer no Brasil: reflexões a partir da análise de experiências institucionais (1926-1964). Belo Horizonte: UFMG, 2003. Tese (Doutorado em Educação).

  5. Sevcenko, Nicolau. "O desafio das tecnologias à cultura democrática". In: Pallamin, Vera (org.). Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

  6. Jesus, Marcelo Siqueira de. Percorrendo os caminhos culturais do centro da cidade do Rio de Janeiro: um caminho para acessabilidade. Rio de Janeiro: UFRJ/EEFD, 2002. Memória (Bacharelado em Educação Física).

  7. Pitaro, Felipe, Barbosa, Ana Paula. Perfil do freqüentador de espaços de lazer: Piscinão de Ramos e Paineiras. Rio de Janeiro: UFRJ/EEFD, 2003. Memória (Bacharelado em Educação Física).

  8. Peres, Fabio de Faria. Lazer e Cultura Popular na agenda local: mobilização e ação coletiva em Manguinhos. Rio de Janeiro: FioCruz, 2004. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública).

  9. Ver, por exemplo: Brant, Leonardo. Mercado cultural: panorama crítico com dados e pesquisas e guia prático para gestão e venda de projetos. São Paulo: Escrituras, 2002.

  10. Uma reflexão interessante sobre o assunto pode ser observada no estudo: Freitas, Ricardo Ferreira, Piza, Rafael Nacif de Toledo. "Sobre condomínios fechados: as fronteiras do lazer nos espaços contemporâneos". In: Villaça, Nízia, Góes, Fred (orgs.). Nas fronteiras do contemporâneo. Rio de Janeiro: Maud, 2001.

  11. Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

  12. Arantes, Otília Beatriz Fiori. "Cultura e transformação urbana". In: Pallamin, Vera (org.). Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

  13. As mudanças na dinâmica da Feira de São Cristóvão têm sido abordadas no estudo: Gawryszewski, Bruno. Uma análise das transformações ocorridas na Feira de São Cristóvão a partir da opinião dos feirantes. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Memória (Bacharelado em Educação Física).

  14. Para maiores informações, ver o estudo: Melo, Victor Andrade de. "Terreirão do samba: resistência e contra-resistência no carnaval do Rio de Janeiro". In: Melo, Victor Andrade de. Lazer e minorias sociais. São Paulo: Ibrasa, 2003.

  15. Melo, Victor Andrade, Alves, Junior, Edmundo de Drummond. Introdução ao lazer. São Paulo: Manole, 2003.

  16. Buttner, Cláudia. "Projetos artísticos nos espaços não-institucionais de hoje". In: Pallamin, Vera (org.). Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

  17. Entre as experiências, a autora cita as do grupo Wochenklausur, de Viena, e do grupo Ha Ha, de Chicago. Vale também lembrar das reflexões dos situacionistas. Maiores informações podem ser obtidas em: Jacques, Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

  18. IPEA. Políticas sociais: acompanhamento e análise. ano 3, n.4. Brasília: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2002.

  19. Fortuna, Carlos; Silva, Augusto Santos. "A cidade do lado da cultura: espacialidade sociais e modalidades de intermediação cultural". In: Santos, Boaventura de Sousa (org.). A Globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002.

  20. No cadernos "Rio Show", "Cultura" e "Segundo Caderno", do Jornal O Globo, e no "Caderno B" e na "Revista Programa", do Jornal do Brasil.

  21. Todos os dados relativos ao número de habitantes foram obtidos em: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Novas tendências demográficas na cidade do Rio de Janeiro: resultados preliminares do censo 2000. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/Secretaria Municipal de Urbanismo/ Instituto Pereira Passos, 2001.

  22. PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Desenvolvimento Humano e condições de vida: indicadores brasileiros. Brasília, 1998.

  23. Para o fim deste estudo tivemos que adaptar estatisticamente (através de média aritmética) alguns dos dados apresentados, já que os IDH's correspondem a cada bairro e não às AP's.

  24. Vieira, Sonia. Introdução à bioestatística. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

  25. A analogia entre os termos redistribuição cultural e redistribuição de renda não é mera coincidência: tem sentido e implicações similares, na medida em que as políticas públicas devem ter em vista a preocupação com uma distribuição mais eqüitativa dos bens.

  26. Magnani, José Guilherme Cantor. "De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana". Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol.17, n.49, 2002.

  27. Brant, Leonardo. Mercado cultural: panorama crítico com dados e pesquisas e guia prático para gestão e venda de projetos. São Paulo: Escrituras, 2002.

  28. Faria, Hamilton. "Políticas públicas de cultura e desenvolvimento humano nas cidades". In: Brant, Leonardo (org.). Políticas culturais. São Paulo: Manole, 2003.

  29. Um comentário interessante pode ser encontrado no artigo: Sader, Emir. "Força maior é ideológica". Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 de julho de 2004.

  30. Para maiores informações, ver o estudo: Vieira, Bianca Castro. Uma análise dos projetos sociais de dança no município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Memória (Bacharelado em Educação Física).

  31. Para maiores informações, ver o estudo de Fabio de Faria Peres (op.cit.).

  32. Saravia, Enrique. "Política e estrutura institucional do setor cultural na Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai". In: Cultura e democracia. Cadernos do nosso tempo, Rio de Janeiro, vol.1, n.5, 2001.

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