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As relações de gênero no espaço cultural do recreio

   
*Mestranda em Ciências do Movimento Humano ESEF.UFRGS.
Particioante do GESEF (Grupo de Estudos Sócioculturais em Educação Física)
**ESEF.UFRGS.
***FACED. UFRGS, Porto Alegre
(Brasil)
 
 
Ileana Wenetz*
ilewenetz@gmail.com  
Dr. Marco Paulo Stigger**
Dra. Dagmar Estermann Meyer***

 

 

 

 

 
Resumo
    Parece que na cultura contemporânea, está dada uma grande centralidade e importância ao corpo: ele tornou-se lugar de identificação, transformação e construção dos sujeitos. Isto pode ser observado em diferentes momentos da vida cotidiana. Assim, observando os recreios de uma escola pública, procuro identificar e discutir que significados são atribuídos ao corpo e ao gênero nas práticas corporais que acontecem naquele ambiente. Mais especificamente, pensar como, o corpo torna-se alvo de determinados discursos e como as práticas corporais vivenciadas no recreio disciplinam corpos de meninos e meninas.
    Unitermos: Gênero. Recreio. Práticas corporais.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 90 - Noviembre de 2005

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1. Algumas considerações, para iniciar...

    Este artigo é parte de um estudo em desenvolvimento que vem sendo realizado a partir da Escola de Educação Física da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS)1, busco, neste trabalho, refletir sobre como algumas práticas corporais se tornam possíveis e que articulações sociais elas proporcionam. Entendo que, na cultura contemporânea, é dada uma grande centralidade e importância ao corpo já que o corpo tornou-se lugar de identificação, transformação e construção dos sujeitos, e essas características podem ser observadas em diferentes momentos da vida cotidiana.

     A minha reflexão se dá a partir dos Estudos de Gênero e dos Estudos Culturais que se aproximam do pós-estruturalismo e visa entender como os indivíduos se tornam sujeitos de determinados discursos ou fragmentos de discursos, estes que não possuem um caráter de neutralidade, já que sempre estão inseridos em formações culturais que se configuram como um campo de lutas de poder. Nesse contexto, procuro identificar e discutir que significados são atribuídos ao corpo e ao gênero nas práticas corporais passíveis de serem observadas no espaço do recreio. Mais especificamente, pensar como, o corpo torna-se alvo de determinados discursos e como as práticas corporais vivenciadas no recreio disciplinam ou não corpos de meninas e de meninos, refletindo, como as crianças aprendem no recreio a ser femininas e a ser masculinas.

    O estudo foi realizado por meio de uma metodologia de tipo etnográfica, no qual foram observadas turmas de primeira à quarta série do ensino fundamental durante o tempo do recreio numa escola pública de Porto Alegre. A escolha do recreio como locus da investigação se deu por considerar que nesses momentos, os jogos e as brincadeiras possuem um caráter mais espontâneo e permitem refletir sobre os significados que as crianças atribuem (ou reproduzem) às suas práticas corporais a partir do meio cultural onde se encontram inseridas.

    Com esse fim, divido o artigo em dois tópicos. No primeiro, trarei à tona o recreio, entendido como um espaço de aprendizagem não-oficial e não-intencional, depois procurarei tematizar alguns conceitos teóricos que permitem refletir sobre como algumas brincadeiras e o movimento podem ser não só elementos que reproduzem práticas corporais generificadas mas também como podem constituí-las.


2. O recreio: um espaço de aprendizagem...

    Dentro do contexto escolar e se compreendemos a instituição escolar como um espaço cultural, como poderíamos entender o recreio como um espaço de simples dispersão ou como um espaço de aprendizagem de gestos corporais naturalizados? Enfim, como poderíamos problematizar esse momento?

    Refletindo sobre qual seria a relevância de se questionar, indagar, problematizar os gestos naturalizados, Denise Sant'Anna (1995, p. 12) enuncia que colocar em questão os gestos e atitudes que, com o transcorrer do tempo, nos podem parecer tanto estranhos quanto familiares deve-se à constatação de que o corpo é em si resultado de um processo em que se articulam "técnicas e sociedade, sentimentos e objetos". O corpo, segundo a autora, corresponde menos á natureza do que à historia. Por esse motivo, torna-se inadequado tentar voltar a um nível básico ou nulo das sociedades para procurar um corpo sem marcas da cultura.

    O corpo encontra-se dentro da cultura e também dentro da cultura da escola. Conforme as idéias de Elizabeth Grugeon, inspiradas em Geertz (1995), no pátio da escola e durante o espaço do recreio existe uma negociação cultural que a pesar de diferente da sala de aula não deixa de ser complexa e regrada. O ingresso nessa cultura precisa de aprendizagens e rituais específicos e arbitrários que são similares aos que podemos encontrar na estrutura educacional, já que a própria cultura infantil é conformada pelos adultos, e nesse espaço os sujeitos se socializarão entre si. Essa cultura específica do recreio poderia ser denominada de cultura oral do recreio, já que o ingresso a essa cultura "requer aprender um conjunto de regras e rituais [...] que podem ser diferentes para meninas e meninos" (GRUGEON, 1995, p. 24).

    Mas o que seria entendido por recreio? A palavra recreio parece surgir como algo dado mas o próprio recreio pode ser encarado como uma prática suscetível a diferentes significados atribuídos a ele. Segundo Ferreira (1999), o recreio é uma palavra derivada do recrear, significando divertimento, prazer. Ainda faz referência ao lugar ou período destinados a se recrear como um espaço nas escolas ou intervalo livre entre as aulas. Recrear vem de latin (recreare) parece indicar a possibilidade de proporcionar recreio, de divertir, causar alegria, prazer ou brincar.

    Na distribuição do tempo escolar, temos, por um lado, quatro horas de trabalho intelectual que implica, na maioria das situações, que a criança fique sentada realizando as tarefas. Por outro lado, temos um período de vinte minutos destinado para as crianças brincarem e se expressarem livremente: o recreio. Ao pensarmos no espaço escolar como um lugar de varias situações podem ser analisadas, pode-se considerar o recreio como um período em que as crianças vão se divertir e se distrair para depois voltarem à sala de aula.

    Não há muitos trabalhos desenvolvidos com o objetivo de problematizar o recreio escolar, o qual, se comparado com outras temáticas pedagógicas, institucionais ou curriculares da escola, parece ter sido menosprezado. Parece também que esse espaço é entendido como um momento que serve de intervalo para a rotina escolar entre as horas de aulas disciplinares, um período que as crianças não estão sob o controle dos adultos.

    Mas será que não estão sob controle? Será que as crianças brincam livremente? Ainda, parece-me que, para cada observador/a ou participante do recreio, há a atribuição de um significado diferente. Para mim o recreio representa um corpus investigativo, mas para outros? Ou que será que representa o recreio para as crianças, para os/as professores/as, para os estagiários/as, para os funcionários/as e para a direção da escola? Parece-me que o recreio possibilita que se assumam diferentes posições de sujeito em relação a ele.


3. Algumas considerações teóricas

    Se considerarmos o conhecimento difundido pelo senso comum, entendemos o sexo anatômico como características diferenciadoras da identidade sexual de uma pessoa. Portanto, se um sujeito tem um pênis será considerado como um homem e, se tem seios e vulva, será considerada mulher. Esse conhecimento opera com a diferenciação do sexo anatômico como justificação da diferença, parâmetro a partir do qual se determina a natureza de homem e de mulher. Esse tipo de raciocínio leva-nos a um entendimento muito reducionista da constituição de homens e mulheres, entendendo também que se identifica um único modo de ser homem e um único modo de ser mulher.

     Os primeiros estudos desenvolvidos no campo do Feminismo, apesar de seus esforços por reivindicar os direitos das mulheres, também trabalharam com a noção de uma única identidade de mulher, sem distinções, sendo essa categoria definida sempre no singular e não no plural. Através da sua história, podemos observar como as próprias feministas percebem essa dificuldade, na medida em que ativistas negras pobres ou simplesmente de outros pontos do planeta não se identificavam com os princípios colocados (GUACIRA LOURO, 2001, e DAGMAR MEYER, 2003)2.

    Surge, então, a necessidade de um termo que tivesse uma maior abrangência como categoria de análise: o gênero (JOAN SCOTT, 1995). Essa noção de gênero que se aproxima do pós-estruturalismo e que trabalha com os aportes de Foucault e Derrida. Mas a articulação destas áreas não se processa de modo automático. Ainda, os Estudos Culturais e Estudos Feministas compartilham algumas características interessantes, como, por exemplo, a intensa crítica interna e o fato de serem campos em contínua construção em relação tanto ao objeto quanto à metodologia de pesquisa.

    Em relação a este ponto Meyer (2000, p.21) destaca, "são estudos engajados, os quais, mais de que buscar a verdade, preocupam-se com a produção de conhecimentos para compreender o mundo cotidiano e as relações de poder que o constituem e atravessam". Nesse sentido, essa relação permite ou possibilita alguns desdobramentos teóricos que apresento, resumidamente, em cinco pressupostos teóricos gerais, numerados com o único fim de auxiliar o leitor.

    O primeiro deles permite o afastamento de todos os universalismos, centralizando uma maior importância na linguagem a partir do momento da "virada lingüística", entendendo que a linguagem atribui sentido ao mundo e, dessa forma, constrói a realidade na qual vivemos e nos inserimos. Nesse contexto, os elementos de nossa vida social são conformados discursiva e lingüisticamente. A linguagem não só expressa as características dos elementos de sentido mas também os constitui (HALL,1997)3.

    Outro aspecto da linguagem diz respeito aos seus aspectos de "indeterminação, ambigüidade e instabilidade" (2000b, p. 91). Isto significa que ela não descreve a realidade, mas antes a constrói. É pelo caráter indeterminado, fragmentado, ambíguo e instável da linguagem que se torna possível desterritorializar sentidos que muitas vezes se busca fixar. Ou seja, isso significa que é justamente pela impossibilidade da linguagem ter um único sentido que se possibilita a disputa pelos significados sociais através das relações de poder.

    O segundo conceito é o de representação, entendida como um sistema de significação que permite dar sentido ao nosso mundo. Esses sistemas de significação constroem lingüística e culturalmente os sentidos que são atribuídos aos modos de pensar e agir sobre a própria masculinidade e feminilidade (WOODWARD, 2002; SILVA, 2000b).3

     É por isso que os conceitos de linguagem e de representação adquirem, neste estudo, um elevado grau de importância, porque se passa a considerar que a linguagem constitui nossas práticas discursivas e não discursivas4 e que a representação as coloca em circulação, produzindo sentidos e construindo realidades (LOURO,2001, p.65 e 98). Ainda Louro (2001, p. 99) entende que nesta perspectiva não cabe perguntar se uma representação corresponde ou não ao real, mas, ao invés disso, como as representações produzem sentidos, quais seus efeitos sobre os sujeitos, como elas constróem o real.

    Deste modo, a observação de práticas discursivas e não-discursivas em locais ou instituições determinadas possibilita analisar a constituição do sujeito feminino e masculino. Ainda permite não só a oportunidade de identificar, mas de refletir criticamente sobre essa construção e problematizar aqueles significados atribuídos ao corpo e ao gênero que determinam ou favorecem determinadas formas de ser, estabelecendo hierarquias entre os corpos.

    Outro pressuposto possível é a articulação do gênero com a educação, ampliando também a noção de educação, antes limitada à família e à escola, para passar a ser entendida como algo que abrange não só os âmbitos escolares e familiares, como também os meios de comunicação, as artes, a música de diferentes tipos, a informática, os brinquedos, os filmes, as revistas, etc. Estes artefatos culturais atuam como modos de ensinar um jeito de ser (HALL,1997). Isso permite-nos ampliar o entendimento dos espaços que são educativos, bem como das pedagogias e das aprendizagens, agora não se limitando aos espaços determinados previamente e fixados formalmente para terem essas características. Assim, é possível entender o recreio como um espaço de aprendizagem social no qual as características do contexto social não ficam de fora do contexto institucional.

    Nesse sentido, temos o quarto conceito que se refere à cultura, concebida como um campo de constantes lutas, ações, contestações, aceitações e resistências no qual os sujeitos se conformam em grupos diferentes com particularidades específicas. Dentro desses grupos, os sujeitos interagem com outras instancias que possuem seus próprios traços e que são capazes de deixar suas marcas, tais como raça, etnia, nacionalidade, geração e classe. Essas marcas trazem em si uma hierarquia de poder.

    Além disso, os sujeitos vivem em espaços diferentes em que as circunstâncias de cada situação histórica e social promovem maneiras diferentes de ser; portanto, a cultura inscreve particularidades nos sujeitos (SILVA,1999). Ela não só conforma os contextos sociais, como também conforma influências em diferentes estágios da vida de um mesmo sujeito. Assim, é possível observar diferentes modos de viver e de sentir a feminilidade e a masculinidade (MEYER, 2003). Nesse contexto, pretendo problematizar a própria definição de cultura escolar, no ambiente específico da escola e as representações que em torno dela se constroem, já que a cultura tem um papel central na conformação de práticas, saberes e instituições e identidades generificadas.

     O quinto conceito é a própria concepção de gênero que se amplia para além da visão de divisões de papéis e incluindo todas as formas de construção social, culturais e lingüísticas das quais, e dentro das quais, se diferenciam homens e mulheres (LINDA NICHOLSON, 2000; LOURO, 2000 e MEYER, 2003). Também se aplica a uma observação de como o gênero se estrutura em instituições sociais (LOURO, 1999).

    Essa dimensão permite ampliar as análises, possibilitando refletir, indagar e problematizar sobre o modo como determinados papéis correspondentes a mulheres e homens são produzidos como se fossem desígnios naturais. Essas exigências sociais que se estabelecem através de mecanismos de poder se colocam também para meninos e meninas dentro do ambiente escolar, seja no recreio ou em qualquer outro espaço, através dos comportamentos exigidos ou permitidos para cada lugar.

     A partir das discussões anteriores, posso dizer que o conceito de poder articula-se com a noção de gênero. No sentido em que Foucault explora, o poder não é entendido como algo negativo mas também produtivo e positivo. Ele é disperso e descentralizado e penetra na vida cotidiana dos sujeitos atingindo seus corpos, "não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas aprimorá-lo, adestrá-lo" (FOUCAULT, 2002b, p.16). Procura-se através do poder disciplinar, fabricar corpos submissos e "dóceis", já que "a disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas formas de forças (em termos políticos de obediência)" (FOUCAULT, 2002b, p. 119). Aqui podemos perguntar: quais são os processos pelos quais as crianças aprendem a ser femininas ou masculinas? Quais seriam os mecanismos de controle que atuam sobre o corpo nas brincadeiras?


4. O recreio como um espaço generificado

    O recreio configura-se como um espaço com particularidades especificas não só em relação ao momento que possibilita de ser vivenciado mas a aqueles significados/sentidos que configuram a comunidade escolar em particular. Também, em relação entre a escola e a sociedade na qual a instituição se encontra inserida. No espaço escolar onde eu observei, os recreios tinham uma duração de quinze minutos para as séries da quinta a oitava e nos quinze minutos seguintes as turmas da primeira a quarta série. Em cada recreio participavam aproximadamente 364 crianças.5

    Algumas possíveis características do recreio poderiam ser qualquer uma das seguintes palavras e expressões: dez horas, sinal, pátio, barulho, agitação, correria, filas, balas, chutes, brincadeiras, merenda, salgadinhos, brinquedos, lanche, tapas, risadas, batidas, conversa, sanduíches, mordidas, fofocas, abraços, jogos, danças, beijos, curiosidade, respeito, violência, empurrões, bola, cuspidas, música, conversa fora, descanso, roupas coloridas, meninas, botas, jaquetas jeans, mini-saias, brigas, gritaria, machucado, amizade, caminhar, bater, balas, caídas, choros, emoção, brincos, batões, olhares interessados, confidências, olhares desinteressados, passa uma professora, a funcionaria olha de longe. Meninas pulam de lá para cá, sapateiam, dançam, contam um segredinho, xixi, cochicham, cabeça atrás de cabeça, professoras no pátio, corre-corre, fila, deslocamentos, saída, silêncios.

    Num primeiro momento, ao observar essas confluências e todas simultaneamente no espaço aberto do pátio escolar, pode-se ter a sensação do caos. Ainda, o pátio escolar é só limitado pelas paredes dos lados, os espaços de quadras, os bancos, os cestos, os canteiros e os espaços vazios se misturam sem ter um limite exato entre o fim ao qual o espaço é destinado ou os espaços de transição onde qualquer canto pode permitir uma brincadeira, uma fala, uns sentidos. Também as crianças correm de um lado ao outro, lanchando, brincando, conversando, correndo, pulando, etc. Enfim, o que elas fazem? De que elas brincam? Todos brincam as mesmas brincadeiras? Como é a ocupação do espaço? Como tudo isso se relaciona com meninas e meninos?

    No toque da sirene várias crianças aparecem no pátio e muitas delas vão ao quiosque e ficam fazendo fila mais da metade do recreio para comprar seu lanche, depois disso brincam, tomam água, e voltam para a sala. As/os professoras/es se dirigem para a sala de professores para tomar seu café. As/os funcionárias/os ficam observando as crianças brincarem no recreio e controlando o ingresso e saída dos corredores, já que o movimento pelos corredores não é liberado.

    De acordo com minhas observações nesse caos de muitos acontecimentos paralelos existe uma regularidade, a qual tanto se repete quanto muda, ou seja, o fato de que um grupo de crianças faça uma brincadeira no mesmo canto do pátio durante oito meses não implica que necessariamente que isso sempre aconteça desse modo. Por algum motivo que varia em cada grupo em particular eles trocam de lugar ou de brincadeiras dependendo de uma vontade de algum líder, de alguma brincadeira feita em aula e que gostaram muito, ou outras razões.

    Mas estas brincadeiras têm um aspecto que parece ser regular que, é o fato de que meninas e meninos jogam jogos diferentes. Também, as crianças da primeira a quarta série, não só jogam a jogos diferentes como também se distinguem na ocupação dos espaços. Segundo trabalhos já realizados (Altmann 1998; Gonçalves, 2004) é possível observar uma ocupação de gênero em relação ao espaço que se caracteriza por um domínio masculino nas quadras esportivas e das meninas nos cantos. Além disso, é possível observar um domínio técnico por parte dos meninos no jogo do futebol colocando as meninas como menos habilidosas e mais fracas.

     Nesse sentido, se num primeiro momento consideramos tal espaço como um local de espontaneidade e liberdade, depois de minhas observações posso afirmar que essas condições são muito relativas. A seguir, gostaria de apresentar um exemplo de uma situação do dia-a-dia da escola, vivenciada por meninos e meninas da mesma idade.

     A partir desse diálogo, algumas questões podem ser formuladas. Será que isso acontece porque ela é menina? Será que aconteceria o mesmo se fosse um menino? Quem autoriza essa apropriação do espaço? Como respostas a essas questões, poderíamos considerar que, apesar de a menina não saber exatamente o motivo pelo qual ela não pode jogar, ela aprendeu uma regra que não permitia negociação. Essa regra não está explícita em lugar algum. Ela não só não pode jogar futebol, como não pode jogar com os meninos nem pisar na quadra para brincar de outra coisa porque os meninos se apropriam e legitimam esse espaço como próprio para um jogo masculino.

     Conforme já foi observado nos trabalhos de Altmann (1998) e Gonçalves (2004), os meninos, através de sua habilidade técnica do saber jogar futebol, impõem-se no espaço (a quadra) e também no tempo do recreio, supostamente um espaço de liberdade para todas as crianças brincarem. Destaco que as meninas não são vítimas dessa ordem - dependendo do tipo de jogo, em certos momentos, elas a subvertem. No exemplo citado, provavelmente pelo fato de o futebol no Brasil ser um jogo tradicionalmente masculino, Ana parece ter sido excluída tanto pelo fato de ser menina quanto pela sua menor habilidade técnica. Em algumas situações, as meninas têm uma habilidade técnica, mas os meninos não têm interesse em jogar com elas, como acontece nas observações realizadas por Altmann (1998).

    Essa situação empírica mostra como a produção de meninos e de meninas não só é parte de um processo de construção entendido comumente como natural ou biológico, como também é constituído por características sociais, históricas, afetivas, econômicas, etc. Tal processo também configura o recreio escolar como um espaço em que as vivências quotidianas e os sentidos atribuídos a elas fazem diferença ou fazem sentidos que marcam os corpos para distingui-los, pois define o que se deve ou não fazer, de que modos e em que lugar, caracterizando os corpos e gestos de uma maneira em detrimento de outra. Dessa forma, a escola delimita os espaços, separa e institui o que cada um pode e não pode fazer, ela "informa o 'lugar' dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas" (LOURO, 2001 p.58).

    Além de constituir um espaço no qual institui os sujeitos, a escola determina os espaços de liberdade. Os múltiplos sentidos das práticas observadas no recreio permitem refletir que as crianças não são tão livres assim, seja pelo fato de que são objetos de um controle por seus pares, seja porque elas são obrigadas a freqüentar o recreio. Numa das entrevistas realizadas, uma delas uma criança me afirmou que ele só participava do recreio porque a professora fechava a porta da sala durante o período de tempo que lhe era destinado. Isso me levou a perguntar: qual é a liberdade ou prazer que essa criança sente no recreio? Qual a liberdade que ela tem, se não pode escolher em que espaços pode ficar? Será que é natural que seja assim? Problematizar estas e outras práticas corporais que acontecem no recreio, assim como até que ponto este espaço é um espaço de liberdade, permitem refletir sobre as lógicas que constroem estas práticas, entendendo os sentidos, os significados e os próprios sujeitos como parte de um processo sócio-histórico no qual e através do qual se configuram de um determinado modo e não de outro.


5. Considerações Finais

    Conforme o que desenvolvi até esta etapa do estudo, não poderíamos considerar o recreio como algo que está dado, um espaço homogêneo de atividades livres ou um espaço no qual aquelas expressões corporais naturais seriam concretizadas. Visto dessa maneira, o recreio parece ser representado como uma unidade com um único fim: constituir-se como um espaço de divertimento e prazer onde as ações dos sujeitos são livres.

     Não entanto, procuro observar e analisar a multiplicidade de sentidos possíveis de serem atribuídos às práticas corporais no recreio. Faço isto, considerando que este espaço se constitui um espaço cultural e educativo, onde se produz uma cultura especifica, e onde interagem mecanismos de controle da sociedade na qual a escola se encontra inserida, estes que inscrevem particularidades nos sujeitos.

     Nesse sentido, pretendi - neste trabalho - refletir sobre aqueles significados que são atribuídos socialmente às práticas corporais e que se encontram permeadas por relações de gênero. Desenvolvi o estudo com o fim de observar não só a construção e estabelecimento de discursos naturais, mas também a produção de verdades universais e compreender o quanto elas são articuladas, classificadas e veiculadas como significados dados desde sempre. Verdades estas, que conformam sujeitos femininos e masculinos e delimitam as suas possibilidades de intervenção na sociedade

     Deste modo, podemos entender como se espera determinados comportamentos específicos tanto para meninas como para meninos, refletindo acerca de como brincadeiras, brinquedos, vestimentas e gestos podem ser observados para identificar preferências generificadas. Podemos entender, também, que estas preferências, esses corpos e expressões são construídos social e historicamente, conformados por processos cotidianos que atribuem, com naturalidade, características às identidades como se estas fossem fixas e homogêneas.

     Neste sentido, o recreio constitui uma instância educativa não intencional e não oficial, espaço no qual meninas e meninos aprendem sobre feminilidade e masculinidade. Um momento no qual os limites entre o fora-dentro da escola se misturam articulando significados atribuídos ao corpo e ao gênero, construindo modos de ser e configurando uma ocupação de espaços e brincadeiras diferenciadas.

    Um olhar pouco atento concluiria que o recreio é um espaço pleno de liberdade, mas as observações desenvolvidas colocam isto em discussão. Após relacionar os dados obtidos no universo empírico com o contexto teórico dos estudos de gênero, acredito ter sido possível mostrar o quanto as crianças não são tão "livres e espontâneas" dentro dele. Digo isto por considerar que, no recreio, as crianças brincam, falam e silenciam aquilo que aprendem que pode ser brincado, falado ou silenciado dentro de uma instituição social e generificada como é a escola.


Notas

  1. Este artigo é parte de meu trabalho de mestrado que se desenvolve sob a orientação do Prof. Dr. Marco Paulo Stigger da Escola de Educação Física e da Profa. Dra. Dagmar Estermann Meyer da Faculdade de Educação, ambos da UFRGS.

  2. Contrariando as normas da ABNT, destaco nome e sobrenome das autoras feministas na primeira vez que elas aparecem no texto, como forma de reconhecimento a suas produções.

  3. A "virada lingüística" foi conhecida como um processo no qual foi possível observar a mudança do foco da construção social deslocando-se dos atores e eventos para a linguagem. Quando a história passou a ser percebida, não como uma construção dos sujeitos, mas como algo em que os sujeitos são constituídos através dos jogos de linguagem (VEIGA-NETO,1996).

  4. Segundo Silva (1999, p. 32) a representação é entendida como aquela "marca material, visível, palpável, do conhecimento [...] uma inscrição, marca, traço, significativo mas não como um processo mental". Nesse sentido, ela se caracteriza pelo aspecto de exterioridade, ou seja, não se concebem formas de representação internas, mentais ou psicológicas; estas serão sempre "uma marca material [que será expressada] por meio de uma pintura, de uma fotografia, de um filme, de um texto, de uma expressão oral" (SILVA, 2000, p. 90-91).

  5. Para mais detalhes ver Fischer (2001).


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