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Educação física nos primeiros anos
do ensino fundamental brasileiro

   
ESEF/UFRGS, Porto Alegre
(Brasil)
 
 
Prof. Dr. Alex Branco Fraga
alexbf@esef.ufrgs.br
 

 

 

 

 
Resumo
     Neste trabalho procuro situar o lugar da educação física nos primeiros anos do ensino fundamental brasileiro a partir da discussão sobre a presença/ausência de um educador físico neste período escolar. Procuro analisar os argumentos utilizados em defesa da atuação de um professor especialista nas séries iniciais e, por contraste, a desqualificação do trabalho unidocente em nome de uma hierarquização de saberes e competências estreita e fragmentada. Teço considerações acerca da importância de se entender a educação física na escola como área de conhecimento, fato este sublinhado pelo parecer 16/2001 do Conselho Nacional de Educação (CNE) a respeito do tema (BRASIL, 2001), e não apenas como uma disciplina específica do currículo. Saliento, por fim, que o conhecimento produzido em educação física precisa ser incorporado ao currículo e efetivamente ofertado nos anos fundamentais da vida de qualquer criança, antes de discutir quem deve ou não ministrar as aulas nesse período escolar.
    Palabras clave: Educação Física. Escola. Unidocência. Ensino fundamental.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 90 - Noviembre de 2005

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    Analisar o lugar da educação física nos primeiros anos do ensino fundamental implica apontar, mesmo que brevemente, seu processo de inserção no espaço escolar. Principalmente, como é o caso aqui, quando se pretende pensá-la dentro de um projeto político-pedagógico para escolas da rede pública de ensino. Consistência para tal tarefa não falta à área, há pelo menos duzentos anos de história da educação física, levando-se em conta apenas sua sistematização mais moderna, que precisam ser considerados quando temos como meta a efetiva integração de saberes na escola.

    A educação física se escolariza por intermédio da "ginástica científica"1, baseava-se nos pressupostos higienistas/eugenistas emergentes no final do século XIX, que a legitimavam como um dos mais importantes instrumentos de controle dos corpos considerados indolentes e promíscuos naquela época. Tinha como propósito principal a formação física e moral de uma geração futura mais "robusta". Para atingi-lo, era preciso estar dentro da escola, independentemente das prerrogativas pedagógicas que norteavam os demais componentes curriculares. Neste cenário, a figura do "professor-instrutor", detentor de uma formação profissional completamente distinta do licenciado2, vai povoar o imaginário social da época.

    Pouco antes da metade do século XX, com o declínio da ginástica, o esporte na escola começa a ser percebido não só como conteúdo fundamental, mas também como elemento condicionante da estrutura organizacional mais ampla da educação física escolar, presente até mesmo na concepção predominantemente poliesportiva dos espaços físicos (quadras de aula). Aqui, a figura do "professor-instrutor" vai paulatinamente cedendo espaço para a do "professor-treinador", representação preponderante na escola até final da década de 703.

    Para a efetiva legitimação do campo acadêmico, e de sua prática docente, é preciso analisar os critérios utilizados ao longo da história para abandonarmos algumas práticas corporais e apostarmos noutras. É preciso analisar quais os mecanismos que permitiram considerar uma determinada forma de conduzir as aulas de educação física modelar e outras inadequadas. Por exemplo, deixar em segundo plano a organização das aulas em pequenos grupos que realizam diferentes tarefas simultaneamente em favor da distribuição em equipes para facilitar a organização de partidas de voleibol, futebol, basquetebol e handebol no tempo de aula. Normalmente se considera a primeira forma, que foi um importante procedimento das antigas lições4 de educação física, mais complexa do que a segunda em função das condições materiais das aulas de hoje, mas pouco se percebe que tal consideração está intimamente ligada às disputas de poder que ao longo do tempo tornaram tais procedimentos "naturais" no campo (FOUCAULT, 1992).

    A adoção em grande escala da subdivisão das turmas majoritariamente em equipes não se resume a uma simples opção por parte dos/as professores/as, mas se insere em uma forma hegemônica de aprender a lecionar, que vai sendo reafirmada em vários cantos onde um/a professor/a se constitui como tal: universidades, escolas, livros, encontros pedagógicos. Essa uniformidade produz uma idéia de que há um jeito mais adequado de se organizar as aulas de educação física e de motivar os alunos/as a participarem das mesmas, que geralmente acaba correspondendo a uma visão mais competitiva do que pedagógica do esporte, além de se preterir o ensino da ginástica, dança, lutas e jogos. Reforça-se a lógica de que basta um professor com domínio específico das variáveis técnico-táticas da modalidade esportiva em questão para se garantir uma aula de qualidade.

    Essas concepções permeiam também a organização das aulas e dos conteúdos da educação física nas séries iniciais alimentando a antiga discussão sobre quem está mais habilitado a conduzir as aulas nessa fase do ensino fundamental: professor/a licenciado/a na área específica ou "unidocente"5? A questão posta dessa forma acaba deixando em segundo plano um elemento fundamental para a sobrevivência dessa área no currículo6, ou seja, a dimensão pedagógica e cultural das práticas corporais nos projetos político-pedagógicos das escolas.

    Nélio Marco Vincenzo Bizzo, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), ofereceu importantes contribuições no parecer 16/2001 (BRASIL, 2001) sobre o significado e as relações existentes entre um componente curricular obrigatório e uma disciplina escolar específica do ensino básico. Ele toma como base a discussão estabelecida no âmbito da educação física, mas que, sem dúvida, também auxilia no debate sobre a concepção mais ampla de ensino e currículo. Esse parecer reafirma que a educação física é um componente curricular obrigatório e que deverá constar nas séries iniciais do ensino fundamental de forma integrada. A docência, nessa fase escolar, deve ter um caráter interdisciplinar e abrangente, ou seja, não pode ser confundida com uma disciplina específica, e muito menos se configura em uma atribuição exclusiva de um profissional especializado.

    O referido parecer foi analisado e aprovado pelo CNE em julho de 2001, em função de consulta solicitada pelo Ministério do Esporte e Turismo/Secretaria Nacional de Esporte e Ministério Público da União/Promotoria de Justiça de Defesa da Educação - Brasília/DF. De certa forma, tal solicitação está relacionada à crescente movimentação política de uma parcela significativa de entidades profissionais da educação física brasileira em uma defesa predominantemente corporativa da área, o que é perfeitamente legítimo. No entanto, ao centrarem suas ações mais na construção de barreiras jurídicas ao exercício docente de professores/as que não têm habilitação específica em educação física, procuram criar uma espécie de "reserva de mercado disciplinar" no interior da escola e, assim, acabam gerando distorções no trabalho pedagógico desenvolvido nos primeiros anos do ensino fundamental.

    Trata-se de um movimento de certo modo discriminatório, pois desvaloriza o trabalho unidocente em nome de uma hierarquização de saberes e competências muito estreita. Nessa disputa, parte dos/as professores/as unidocentes passa a entender a educação física como tarefa alheia ao seu universo de ações pedagógicas e, quando não se tem a presença de um professor de educação física na escola (e a rede pública estadual do Rio Grande do Sul, por exemplo, não tem), deixam de ministrar os conteúdos deste componente curricular obrigatório. O efeito dessa movimentação é uma separação ainda maior entre educação física e as demais áreas de conhecimento na escola, algo que segue na contramão das Diretrizes Curriculares Nacionais e da construção de propostas político-pedagógicas integradas.

    Por outro lado, há também professores/as de educação física que defendem a presença de colegas da área nessa fase da vida escolar sem, no entanto, se basearem na mesma lógica corporativa. Algumas propostas de inserção professores/as de educação física nas séries iniciais do ensino fundamental estão centradas na participação sob forma de assessoria, atuando na elaboração de planejamentos e oferecendo subsídios teórico-metodológicos para lidar com a relação de ensino-aprendizagem através das práticas corporais, perspectiva também defendida por boa parte dos/as professores/as unidocentes.

    Diante de tal quadro, creio que seria muito mais produtivo pensar a inserção da educação física escolar nas séries iniciais a partir de outras bases. Antes de discutirmos quem deve ou não ministrar as aulas nesta fase é preciso reivindicar um lugar compatível com os demais componentes curriculares obrigatórios no trabalho escolar cotidiano. As crianças, por exemplo, aprendem língua portuguesa e matemática não com lingüistas ou matemáticos, e sim com professores/as unidocentes que se apropriam do conhecimento pertinente a cada uma dessas áreas para melhor ensinarem seus alunos e alunas. Ou seja, o valor de ambas não está na presença física de docentes especialistas nos primeiros anos do ensino fundamental, mas no fato de serem vistas como duas importantes áreas do conhecimento humano.

    Deve-se ressaltar o emprego do termo "área de conhecimento" e não "disciplina". Isso não deve ser visto como acidental, uma vez que o espírito da própria LDB é o de conferir autonomia pedagógica às escolas, de maneira a induzi-las a elaborar projetos pedagógicos que estejam adequados a sua própria realidade (...) conclui-se, portanto, que não existe vinculação direta entre componente curricular, mesmo obrigatório e disciplina específica no currículo de ensino (BRASIL, 2001).

    Para quem defende a presença pura e simples do profissional de educação física em todos os âmbitos de ensino, o conteúdo deste parecer pode até mesmo representar um retrocesso. No entanto, vejo na passagem em destaque um extraordinário avanço para a educação física escolar: receber tratamento curricular equivalente às demais áreas do conhecimento, mesmo que ainda esteja mais visível nas leis do que na prática docente. Retrocesso, no meu entender, é centrar a discussão somente na presença/ausência de um profissional de educação física nas séries iniciais, algo que pode criar obstáculos ao reconhecimento de sua importância pedagógica no âmbito escolar. Em vez de se restringir a atuação unidocente nas séries iniciais, penso que seria muito mais produtivo para a educação física incentivar cada vez mais a apropriação do conhecimento específico produzido no campo, pleitear a inclusão da área na elaboração de planejamentos e incentivar intervenções pedagógicas cada vez mais articuladas aos demais componentes curriculares obrigatórios.

    Isso não significa dizer que o professor licenciado em educação física vá ter seu acesso negado ao ensino nas séries inicias, muito pelo contrário. Além de ser fundamental sua participação efetiva na organização nos diferentes níveis de planejamento, a condução das aulas nos primeiros anos do ensino fundamental também pode ser uma de suas atribuições na escola. O importante é que esta participação não seja vista como uma atividade meramente recreativa ou como "hora-do-descanso" do/a professor/a unidocente, e sim como uma forma de fazer acontecer o plano político-pedagógico elaborado pelos diferentes setores da escola.

    É importante salientar, por fim, que os mais de duzentos anos de produção de conhecimento em educação física precisam ser incorporados ao currículo e efetivamente ofertados nos anos fundamentais da vida de qualquer criança. Há, portanto, muita coisa a aprender e ensinar nessa área, antes de discutir quem deve ou não ministrar as aulas nesse período escolar.

Notas

  1. Aqui é necessário ressaltar que os métodos ginásticos europeus, oriundos dos exercícios físicos implementados nos exércitos, constituíram-se em uma das primeiras sistematizações da educação física escolar (SOARES, 2001).

  2. No Brasil, o primeiro curso superior civil de formação em educação física data de 1939, mesmo sendo civil, ainda permaneceu muito influenciado pela instituição militar, única responsável pela formação dos instrutores até então. Em 1945 ocorre a primeira grande mudança nos currículos com o objetivo de aproximar os professores de educação física das demais licenciaturas. Somente em 1950 passa a ser obrigatório, para prestação de exames de ingresso, o certificado de conclusão do curso clássico ou científico (BORGES, 1998).

  3. As datas arroladas no texto não correspondem a uma seqüência cronológica rígida, nem as representações sociais em torno de uma determinada figura ou concepção teórica indicam a inexistência de outras, pelo contrário, algo só se torna preponderante socialmente em meio a uma longa disputa de significados em uma determinada época, ou seja, salientam-se na relação com outras representações sociais ou concepções teóricas não tão evidentes. Devido aos limites desse texto, não serão abordados em detalhe movimentos teóricos que também influenciaram o pensamento da educação física escolar brasileira, como a psicomotricidade, aprendizagem motora, concepção aberta de ensino, teoria crítico-social dos conteúdos, construtivismo pedagógico (SOARES, 1996, CAPARROZ, 1997).

  4. A lição de educação física era uma espécie de plano de aula dos métodos ginásticos europeus no final do século XIX. Os responsáveis pela elaboração pormenorizada de cada momento da aula eram exclusivamente os especialistas dos órgãos gestores do ensino, aos professores cabia simplesmente a execução do que havia sido estipulado. A clássica divisão "aquecimento, lição propriamente dita e volta à calma" compunha a lição proposta pelo método ginástico francês, considerado obrigatório no ensino da educação física brasileira em 1921 (MAZZEI; TEIXEIRA, 1967, GOELLNER, 1992).

  5. No Estado do Rio Grande do Sul, unidocente é o termo usado para identificar que um/a único/a professor/a leciona todas as disciplinas arroladas no currículo de 1ª à 4ª série.

  6. Aqui é importante lembrar que em um dado momento do processo de discussão da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) n. 9.394/96 em 1996, a educação física foi considerada disciplina facultativa, algo que foi revertido, depois de muita disputa política, com a inclusão do parágrafo 3°, que atrela a obrigatoriedade da educação física no currículo à integração da mesma aos projetos pedagógicos das escolas (CBCE, 1997, CASTELLANI FILHO, 1998).

Referências

  • BORGES, Cecília M. F. O professor de educação física e a construção do saber. Campinas: Papirus, 1998.

  • BRASIL. Conselho Nacional de Educação/CEB. Parecer n° 16/2001. Brasília, de 03 de julho de 2001.

  • CAPARROZ, Francisco Eduardo. Entre a educação física na escola e a educação física da escola: a educação física como componente curricular. Vitória: CEFD/UFES, 1997.

  • CASTELLANI FILHO, Lino. Política educacional e educação física. Campinas: Autores Associados, 1998.

  • COLÉGIO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE - CBCE (Org.). Educação Física escolar frente à LDB e aos PCNs: profissionais analisam renovações, modismos e interesses. Ijuí: Sedigraf, 1997.

  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

  • GOELLNER, Silvana Vilodre. O método francês e a educação física no Brasil: da caserna à escola. Porto Alegre: UFRGS/PPGCMH, 1992 (Dissertação de mestrado);

  • SOARES, Carmen Lúcia. Educação física escolar: conhecimento e especificidade. In: Revista Paulista de Educação Física. São Paulo, suplemento 2, p. 6-12, 1996.

  • __________. Educação física: raízes européias e Brasil. 2 ed. rev. Campinas/SP: Autores Associados, 2001.

  • TEIXEIRA, Mauro S.; MAZZEI, Julio. Manual de educação física, jogos e recreação. 4 ed. São Paulo: Obelisco, 1967.

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