REVELANDO A DANÇA FUNK...
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A Pesquisa Ação
Percebido algo que não é previsível, que se expressa nos corpos dos alunos, na entonação corporal, nos seus olhares, seus gestos e seus sistemas de comunicação. Ler o não dito. O que se pode apresentar na dança como uma forma de expressão não verbal possibilitou-nos o aprofundamento da compreensão dos diferentes subgrupos presentes na escola, estabelecendo relações com Renê Barbie. No que o autor intitulou o seu texto de escuta sensível:

"O que fica desses trabalhos é a importância do corpo e de seu movimento quando se considera a sensação. O esquema corporal e o movimento do corpo tem papel privilegiado na descoberta e na possibilidade de sentir o mundo".

Tentamos compreender junto aos alunos naquilo que Walter Benjamim citado por Regina Leite Garcia (1996) diz sobre como se conhecer sentindo e sentir conhecendo.

Buscamos conhecer e trabalhar outras versões que não apenas a lógica formal, curricular preponderante e hegemônica da escola. Interessamo-nos pelos etnométodos que são as outras versões construídas através de outros campos da comunicação que não apenas o racional. Encontramos o interacionismo na linha 'subjetiva' dos atores sociais, isto é, pela maneira que estes atores descrevem suas relações com a dança, o que permite a produção de sentidos, por um lado, da identidade que tem deles mesmos e, por outro o seu contrato lúdico, razão de seu 'accountability'.

"(...) O bonde dos Play Boys
Que só andam em marcados
Por causa do Tom Cawtray
É boné importado
Bermuda da Ciclone
Ou então da TCK
De Nick ou Rebock
Camisa do KSK
Mizumo e Abutre
Celcar, Brilho e HD
Redley, Miami, Gilt
Glicose e o Pepê
Pra ficar bonito
E abalar geral

Funkeiro que se preza
Tem que andar original
Não importa a marca
Se é dólar ou Real
Se liga meu amigo
Eu ando sempre na moral"

(Rap do Bonde do aluno Carlos Eduardo; Turma 1002)

Essas outras versões que dão sentido aos estudos etnometodológicos se realizam na descrição de vidas cotidianas, mas se realizam também nos atos práticos da Comunicação Corporal, pois se valem da intuição, da criatividade, da fantasia, da sensibilidade, da sensualidade, enfim dos diferentes sentidos, cujos movimentos corporais na dança e a linguagem corporal, tornam-se constituintes das propriedades indiciais do discurso prático e da linguagem ordinária constituinte desse discurso. Pode ser compreendida e explicada nas circunstâncias do enunciado que nos permitirá dar suporte à dança como um fenômeno da expressão não verbal.

Deixando o modelo formal de ensino escolar para uma etnometodologia em Educação Física
No movimento exploratório, observamos de forma sensível, o espaço escolar com suas regras rigorosamente moldadas e estabelecidas como limitadora das expressões culturais dos alunos e a Educação Física, como ensino formalizado, não pode oferecer condições para um trabalho corporal que valorize as expressões corporais na forma de uma dança popular enquanto linguagem, como uma atividade metodicamente expressa na inteligibilidade dos alunos, seu modo de agir, de sentir e descrever as suas práticas sociais. Buscamos no processo de desenvolvimento do nosso estudo acreditar na linguagem corporal manifestada na dança Funk, como um motivo instrumental para a abertura de caminhos metodológicos, onde os alunos pudessem manifestar todos os tipos de linguagem com profundidade e suas compreensões sobre o tema por nós proposto.

O próprio processo vivido por nós e pelos alunos nos levou a uma pesquisa-ação ao trabalharmos a dança Funk e a sua linguagem nas aulas de Educação Física com a finalidade de mergulhar nas manifestações subjetivas dos atores-sociais no intuito de uma nova concepção do seu universo social. O nosso propósito durante as aulas era a investigação da dança Funk e a sua interligação com o movimento exploratório, para que os alunos interpretassem o que fizeram, produziram, e, descobrissem suas próprias construções e significações sobre o tema, suas capacidades de partilhar com outros, os mesmos símbolos. Tal definição é constatada em Becker resumindo a pesquisa de campo e inspirada no interacionismo simbólico.

"Pega carona com o bonde do Salgueiro,
Chumbada, Mutuá, Fazenda dos Mineiros
O nosso baile vai ficar mais divertido
Se pararmos com brigas
E ficarmos mais unidos
Salgueiro sempre está com alegria
Fazendo suas festas com muita harmonia
Salgueiro Shoock
Chumbada Sangue Bom
Mutuá sensacional
Fazenda sem alemão (...)"

(Rap do Quarteto maneiro dos alunos Jovand e Juliano; Turma 1005)

Com esta exposição fundamentada em dança funk viemos confirmar, com a certeza demonstrada, de que o saber e a compreensão da dança funk, sua linguagem corporal comum das classes populares, tornam-se o código restrito desses atores sociais.

"O código não é uma coisa exterior à situação. Sendo algo prático, com enunciados indiciais. A interação diz o código. Não se pode separar daquilo que está codificado, isto é, o interdito constantemente ativado nas ações (...). O código não é objeto de conversações, de comentários (...) ele é vivido. O código é geralmente tácito, mas ao mesmo tempo estrutura a situação. Pode aflorar à linguagem" (COULON, 1995, p. 40).

Com esse entendimento chegamos à descoberta de um caminho significativo na Educação Física pelas atividades corporais em dança com a qual nossos alunos e membros de grupos Funk produzem e desenvolvem uma prática de cultura popular como veículo de interação e organização imprescindíveis para a expressão de um grupo social real, motivadas por sujeitos sociais capazes de se comunicar com toda sociedade através dos seus movimentos corporais englobando seus sentimentos, emoções, pensamentos e ações, propiciando as devidas interações e a produção da auto estima dos membros de uma classe social.

Entre os nossos encontros em aulas ocorridos, destacávamos a possibilidade de ler as questões elaboradas no formulário de perguntas e remetê-las para as nossas aulas de Educação Física. Olhando para uma realidade dentro da escola, pode-se compreender um melhor sentido para as aulas de Educação Física, não com a visão unilateral da Educação Física baseada restritamente na fixação, na capacidade dos alunos reproduzirem motoramente em suas respostas ao modelo oficial de Educação Física curricular. Ao priorizar o modelo de ensino formal a Educação Física nega uma fonte de sabedoria, a linguagem corporal do jovem, com suas mensagens manifestadas por suas representações simbólicas. Nessa perspectiva essencialmente dialógica, as nossas aulas assumem um compromisso com os alunos, diante de sua realidade, da realidade social do aluno, dentro da escola no sentido de possibilitar ao professor de Educação Física um enriquecimento sociocultural, e de aquisição de outros conhecimentos significativos para sua ação pedagógica.

De modo semelhante pensamos num trabalho etnográfico, junto aos alunos, que decifre uma cultura popular que cria e recria conhecimentos considerados opostos à lógica formal da Educação Física. A dança funk revelou-se como linguagem corporal, que mesmo ainda não verbalmente manifestada, tem seu significado emancipador. Tem no seu conteúdo de dança os derivados expressivos da libertação dos jovens das classes populares, de suas capacidades de se organizarem em grupos com o domínio de uma linguagem comum dotada de identidade, o que contribui efetivamente para produzirmos uma representação descritível sobre como esses atores sociais reconstituem permanentemente um saber importante que não é do poder das classes dominantes, que poderiam invalidar suas expressões comunicativas, mas na sua capacidade de tornar suas ações visíveis, revelando o seu sentido de luta, pois entendemos os estudos etnometodológicos nas ações práticas dos atores sociais, definidas por Karl Marx:

"E ao se tornar consciente de sua existência individual percebe também sua existência social (...) Não o faz sozinho, mas age juntamente com outros homens, com os quais convive, esse convívio será também a única forma de transmissão do modo de agir do grupo, ou seja, a forma de produção, a organização política e social, enquanto assimila costumes, atitudes, formas de pensar (...) Assim o homem não só se distingue de sua atividade, como se percebe agindo, tanto sua atividade quanto ele mesmo, o mundo e os outros homens são objetos de sua consciência" (apud. AQUINO, 1984).

"Por conseqüência desse rap
Estou aqui para cantar
Na verdade eu sou funkeiro
D.J. esculachar
O D.J. solta e pode soltar
D.J. solta um pancadão

Como pode sua beleza
Levar tantos a loucura
Com seu corpo de sereia
E seus olhos de Medusa
Que com uma só piscada
Petrifica qualquer um
Mas não corro esse perigo
Pois também não sou comum (...)

Não sei que caminho tomar
Não sei que caminho seguir
Na poesia do Funk agora vou decidir

Não sei que caminho tomar
Não sei que caminho seguir
Eu sou M.C. Falcão eu sou Shock M.C"
(Rap: Poesia do Funk, do aluno: André de Araújo Martins; Turma: 1006)

Entendemos essa maneira de expressão do autor, procurando no decorrer do seu discurso as devidas expressões indiciais, motivadas como por exemplo no "eu" que valoriza sua atitude frente a um grupo, conjugam-se fatores sócio-contextuais como sua biografia assumida de membro, sua linguagem imediata, uma relação de adesão obrigatória com os atores sociais que usam dessa linguagem, são os indicadores culturais dos atores que instituem palavras tipos: D.J., esculachar, pancadão, M.C.. Tem uma grande significação manifesta na idéia de existir um saber comum socialmente construído pelo grupo.

Seria um momento de entender os elementos constitutivos deste discurso, que os atores que usam dele não sentem dificuldades para compreender. A inteligibilidade dentre os seus diálogos se constituem das circunstâncias do enunciado que lhes permitam atribuir as suas falas um sentido.

Alain Coulon discorre sobre significações contextuais e os princípios etnometodológicos de possíveis índices:

"Falar de indicialidade significa igualmente que o sentido é sempre local e não tem generalização possível. Isto quer dizer que uma palavra, por suas condições de enunciação, uma instituição, por suas condições de existência, só podem ser analisadas tomando em conta as suas situações" (COULON, 1995, p. 37).

Para compreender a conduta de um indivíduo, devemos saber como percebia a realidade, os obstáculos que julgava de enfrentar, as alternativas que via abrirem-se a sua frente; não é possível compreender os efeitos do campo de possibilidades, das subculturas da delinqüência, das normas sociais e outras explicações do comportamento comumente invocadas a não ser que todas essas circunstâncias sejam consideradas do ponto de vista do autor (COULON, 1995).

Finais e recomeços...
Para transpor-nos no Universo da pesquisa etnometodológica, em primeiro lugar, foi preciso prestar a atenção às questões partilhadas entre idéias e conceitos com abordagem diferenciada que os próprios etnométodos usam para o estudo das atividades práticas de todo comportamento social organizado. Esta constatação trouxe-nos duas questões a desvendar: como conduzir o processo etnometodológico. Que estratégias ou métodos de ação etnometodológicas usaríamos para tornar nossa pesquisa observável e descritível.

Partindo desta realidade, passamos a pensar num etnométodo que pode ser desenvolvido nas nossas aulas pelas 'realizações contínuas dos atores sociais' entendidas por Alain Coulon como 'processo', de modo que todos os alunos pudessem participar e perceber os processos aplicados por um vocabulário particular da etnometodologia como necessários para a construção da pesquisa, pois a elaboração deste estudo em interação, se deu pelo registro e a análise dos tais alunos – atores-sociais, que selecionamos com o significado para o nosso trabalho que recuperamos no decorrer do texto.


BIBLIOGRAFIA

  • AQUINO, R.S.L. de et alii. História das Sociedades: das Sociedades Primitivas as Sociedades Medievais. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1984.
  • BARBIER, René. A Pesquisa Ação na Instituição Educativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 198? .
  • BRANDÃO, Antônio Carlos. Movimentos Culturais da Juventude. São Paulo: Moderna, 1990.
  • COULON, Alain. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 1995.
  • --------. Etnometodologia e Educação. Petrópolis: Vozes, 1995.
  • GARCIA, Regina Leite. A Formação da Professora Alfabetizadora: Reflexões sobre o prático. São Paulo: Cortez, 1996.
  • GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
  • MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
  • PARLEBAS, Pierre. O Significado do Esporte na Sociedade Contemporânea. In: CONGRESSO LATINO AMERICANO DE ESPORTE PARA TODOS, 1, Santos, 1996. Anais.
  • THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-ação. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1988.



Lecturas: Educación Física y Deportes.
Año 3, Nº 9. Buenos Aires. Marzo 1998
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