O DESAFIO DE CLIO: o esporte como objeto de estudo da História

Patrícia Falco Genovez
Mestre em História Social das Idéias, UFF; Membro do Núcleo de História Regional da UFJF (Brasil)

Resumo
O artigo trabalha o esporte como objeto da História, separado da Educação Física, colocando os espaços e possibilidades de análise de um objeto ainda pouco explorado pela historiografia.
Unitermos: esporte, História, historiografia.


"Milhares de pessoas, enfrentando o mau tempo, se dirigiram ao caes Mauá para dizer o seu adeus aos 'azes' patrícios, dando-lhes um grande conforto na hora em que partiam para terra estranha em busca de maiores gloria para o Brasil esportivo.
Desde meio-dia, portanto duas horas antes do 'larga' do 'Arlanza', o povo começou a afluir ao caes, que cerca das 14 horas apresentava um aspecto grandioso e um ambiente de intensa vibração. A multidão se comprimia na praça Mauá, ocupando todos os pontos de onde fosse possível vêr melhor a chegada dos 'azes'. Estes, à medida que iam aparecendo, tornavam-se alvo de enthusiasticas aclamações que partiam sinceras daquela multidão. Um extenso cordão de isolamento foi instalado sob a vigilancia de grande contingente da Guarda Municipal afim de evitar que o povo, levado pelo seu enorme enthusiamo, opuzesse qualquer dificuldade ao embarque da delegação. (...)
O 'Arlanza' fez-se ao largo às 14,40 horas. E ao se afastar o navio, a multidão, em delírio, ovacionava freneticamente os 'azes' brasileiros que, postados no convez, retribuiam as aclamações com o agitar de lenços. Só quando o 'Arlanza' desaparecia ao longe a mole humana deixou o caes, certa de que, em terras longínquas, os 'azes' patrícios jogarão com o pensamento na pátria distante, ouvindo, sempre, o grito de enthusiasmo e de incintamento que partiu de milhares de brasileiros na hora do embarque e que é o grito unisono do paiz inteiro."
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Atento à leitura do texto acima, magnificamente escolhido por Fábio Franzini, para descrever a partida da delegação brasileira de futebol para a Copa do Mundo realizada na França, em 19382 , nenhum brasileiro teria qualquer dúvida sobre a importância do esporte no seu cotidiano. Contudo, tal objeto não parece receber, por parte de historiadores brasileiros, a atenção devida. Vale ressaltar que o recorte no presente artigo, trabalhando o esporte como objeto da História, separado da educação física, ocorre no sentido de que os mesmos nos pareça objetos distintos. Compreendemos que educação física e esporte são objetos diferenciados que vão solicitar caminhos metodológicos e preocupações teóricas diferenciadas. 3 Acredito que no momento atual da produção historiográfico acerca de tais objetos, o esporte, encontre uma maior abertura na História do que a educação física. Não por ser esta última considerada menos importante mas, por ser entendida como um campo específico de conhecimento, talvez mais técnico. Contudo, é inegável que seu estudo, também, apresente questões pertinentes.

"Conocer la historia de la Educación Física y desarrollar con esos datos la conciencia histórica de los profesores de E.F. (en tanto competencia que se apoya en las operaciones mentales: percibir, interpretar y orientar) puede colaborar en el análisis y comprensión de nuestro hábitus profesional (en tanto sentido práctico que dirige nuestras acciones). La investigación en Historia y la circulación de la información histórica puede ser parte del proceso de construcción y desarrollo de la conciencia histórica de los profesores de E. F. como perspectiva para interpretar la coyuntura y lo estructural en la E. F. escolar hoy." 4

O passo mais adequado, no momento, é nos valer cada vez mais de trocas interdisciplinares levando a História até a educação física e trazendo a educação física para mais próxima dos historiadores.

Nesse sentido, o esporte pode ser apenas o elemento inicial deste processo. Um objeto que tem sido trabalhado por alguns historiadores renomados ao nível internacional5 mas, que aqui no Brasil ainda não encontrou abrigo nos meios acadêmicos. 6 Por quê? Acredito que a resposta a esta pergunta nos levará, inevitavelmente, a um breve retrospecto da produção e das preocupações inerentes à historiografia brasileira.

Não pretendo com isto, conduzir o texto para um debate sobre a historiografia, analisada em si mesma. Mas, tentar colocar os espaços e a possibilidade de trabalhar com um objeto tão pouco explorado. Aliás, não apenas pouco explorado como, às vezes, menosprezado no meio intelectual, tanto por aqueles que se dedicam a estudar a prática esportiva, como é o caso da educação física7 , como por aqueles que se propõem a estudar o homem no espaço e no tempo, em suas mais variadas atividades, como é o caso da História.

Nesse sentido, delimito meu escopo de observação aos historiadores brasileiros de formação, buscando trabalhos que procurem pensar metodológica e teoricamente o esporte como objeto de estudo da História. Exercício que se faz urgente num momento em que, recentemente, foi lançado, no país, um livro de grande importância e magnitude, Os Domínios da História, organizado por dois grandes historiadores, Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas. 8 Uma obra coletiva, com o objetivo de traçar um panorama atualizado dos vários campos de investigação da História. Curiosamente, nos capítulos referentes à História social e à História cultural, áreas que apresentam possibilidades teóricas e metodológicas para tratarem de um vasto leque de objetos, sequer citam o esporte.

Mesmo reconhecendo os limites de um livro que, evidentemente, encontra-se submetido a uma série de imposições editoriais, o esporte como objeto da História, não tem conquistado o espaço que lhe é devido nem mesmo no simpósio de historiadores (ANPUH) realizado a cada dois anos. Por incrível que possa parecer os historiadores que se dedicam ao esporte tem motivos para festejarem os quatro trabalhos inscritos e apresentados na ANPUH9 , num universo de aproximadamente 1400 comunicações (somando livres e coordenadas), 22 conferências, 57 mesas redondas e 30 cursos10 em comparação à ANPUH de 1995, quando apenas um trabalho foi inscrito e apresentado. 11 Aliás, vale chamar a atenção para o fato de todos os trabalhos centrarem-se no futebol. Não havendo, portanto, apresentação de trabalhos tratando de outros esportes ou discutindo questões metodológicas, teóricas ou empíricas acerca do esporte como objeto de estudo. Esta ênfase no futebol não deve ser analisada apenas como o reflexo da paixão de alguns historiadores que resolveram "unir o útil ao agradável", ou seja, fazer História ao falar de futebol. Na verdade, encaro tal processo, como parte de um outro, mais amplo, tratado adiante, que vem ocorrendo na historiografia brasileira. Do outro lado da moeda, estudantes e professores de educação física organizam, neste ano, o V Encontro Nacional de História da Educação Física e do esporte, realizado em outubro do ano de 1997. Um esforço que merece respeito e, mais do que isto, exige que se abra um diálogo cada vez mais estreito entre as duas disciplinas: História e Educação Física.

Para explicar tamanho ostracismo é preciso voltar ao início do século, quando a historiografia brasileira desenvolvia-se em base rankiana, mostrando-se, nos anos 30, voltada para as abordagens clássicas. Diferentemente do que ocorria na Europa, no Brasil, a profissionalização do historiador se fez fortemente marcada pela influência das abordagens econômicas e sociológicas, predominantes na década de 60. 12 Tal influência garantiu trabalhos acadêmicos voltados, primeiramente, para o negro e a escravidão, e, nos últimos anos, áreas que privilegiam a História social da família, a História social do trabalho e a História social do Brasil Colonial e da escravidão. Numa outra perspectiva, a defasagem da historiografia brasileira, já na década de 70, tinha relação direta com o contexto histórico no qual encontrava-se inserida.

"O fato de a universidade ter sido confinada como uma espécie de "gueto" de resistência ao regime (resistência pelo menos intelectual), fê-la apegar-se aos diversos "marxismos" disponíveis, sobretudo nos cursos de História. Não por acaso, aliás, as principais temáticas de pesquisa e publicação de fins da década de 1970 foram, grosso modo, as do "movimento operário" e da "revolução" (...) sem falar nas pesquisas de temas socioeconômicos, matéria que despertava enorme interesse naquele tempo." 13

Neste contexto, os poucos trabalhos com uma perspectiva histórica do esporte já nasciam comprometidos pela influência, primeiramente, da História tradicional, positivista e, em segundo lugar, por ser considerado assunto secundário em meio a temas como revolução, classe operária, marxismo e tantos outros. Conforme Victor de Melo, podemos pensar tais trabalhos dirigidos ao estudo dos desportos e da educação física dividindo-os em três fases: na primeira, predominam os livros importados voltados para os aspectos históricos da ginástica; na segunda, embora apresentando semelhanças com a fase anterior, já demonstram certo desenvolvimento no uso documental; na terceira, buscam ressaltar os aspectos ideológicos da educação física, contudo, apresentam-se metodologicamente confusos em relação à História. 14 Tendo em vista o levantamento bibliográfico, já realizado pelo autor, não nos deteremos em avaliar tal produção. De um modo geral, as obras relacionadas a estas três fases, apontam para uma bibliografia em que poucos são os autores que possuem formação em História.

É, exatamente, pelas dificuldades inerentes à historiografia brasileira e, principalmente, pela afinidade desta para com a sociologia que teremos que compreender o menosprezo da História para com o esporte. Para Eric Dunning,

"... no quadro da tendência que orienta o pensamento reducionista e dualista ocidental, o desporto é entendido como uma coisa vulgar, uma atividade de lazer orientada para o prazer, que envolve o corpo mais do que a mente, e sem valor econômico. Em consequência disso, o desporto não é considerado como um fenômeno que levante problemas sociológicos de significado equivalente aos que habitualmente estão associados com os negócios "sérios" da vida econômica e política." 15

Sem valor econômico e considerado vulgar, os historiadores, tal qual os sociólogos, insistem em não perceberem o esporte como um objeto de estudo capaz de mostrar as mais tênues nuances das relações sociais que, fora da lógica esportiva, parecem excludentes, como a competição e a cooperação ou o conflito e a harmonia. 16 É, justamente, por abrir esta possibilidade de análise que podemos pensar no esporte como um objeto da História social ou da História cultural. Passemos, portanto, a avaliar mais detidamente tais possibilidades teóricas e metodológicas.


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