efdeportes.com
Racismo para dentro e para fora:
o caso Grafite-Desábato

   
Centro Universitario Augusto Motta
(Brasil)
 
 
Carlos Alberto Figueiredo da Silva
cafs@suam.edu.br
 

 

 

 

 
Resumo
    O ritual de sacrifício empreendido pela comunidade, no campo do esporte, particularmente, no futebol, é o foco deste trabalho. A intenção é discutir a violência simbólica no futebol a partir da análise de representações da mídia. Defende-se a tese de que em momentos de tensão social, verifica-se uma re-atualização do ritual de sacrifício. Com o objetivo de aplacar a ira da multidão enfurecida, elege-se um bode expiatório. Assim, com esse ritual, restabelece-se a unidade social, pelo menos por algum tempo.
    Unitermos: Futebol. Racismo. Violência simbólica. Sacrifício. Ritual.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 84 - Mayo de 2005

1 / 1

Introdução

    Nossa sociedade, apesar da violência do dia-a-dia, tem se preocupado com as vítimas, com os excluídos, com aqueles que a própria comunidade sacrificou. Talvez a herança cristã, mesmo não sendo mais tão cristãos como éramos antes, tenha germinado em nós a preocupação com os vitimizados.

    Nossa época, muito provavelmente, seja a primeira a se preocupar com as vítimas, e isto por si só demonstra que o caminho da civilização passa necessariamente pela consciência da violência originária (cf. Freud, 1950) no imaginário social. A superação dessa violência originária poderá inaugurar um novo ciclo na história da humanidade.

    Temos a intenção de discutir, neste trabalho, a violência simbólica no futebol e o ritual de sacrifício, a partir da análise de representações da mídia. Discute-se também a reflexão da própria mídia em relação a esse processo sacrificial.


A re-atualização do ritual sacrificial

    A morte moral, em nossos dias, tem substituído a morte física no ritual sacrificial. Se observarmos a história da humanidade, no que concerne ao mecanismo de manutenção do equilíbrio social, verifica-se que as religiões arcaicas utilizavam esses procedimentos como forma de agradar aos deuses e de manter a ordem interna de suas comunidades. Em muitas ocasiões o sacrifício era humano; em outras, eram utilizados animais e vegetais. Para René Girard (2001), o que é comum a todas as religiões é o ritual.

"Acredito que as religiões arcaicas, em particular, e todas as importantes religiões do mundo têm algo em comum. Julgo que isso é muito importante e que pode ser definido. (...) O que há de mais importante é o ritual, o sacrifício, que quase sempre significa imolação e morte de uma vítima" (p. 12).

    A violência originária se manifesta na comunidade quando temos a confluência de vários fatores entre eles o econômico, o social, o racial, colocando pessoas, países, grupos, em disputa e conflito. A tese defendida é que em momentos de grande inquietação social, verifica-se uma re-atualização do ritual de sacrifício. O futebol tem se transformado num fenômeno social com características próximas das celebrações religiosas. Para Helal e Gordon (2001), "Em jogos entre rivais tradicionais, por exemplo, os torcedores cantam, reverenciam seus ídolos, símbolos e cores dos times, choram e rezam nos estádios como se estivessem num templo" (p. 148).

    De acordo com o pensamento de Girad, as sociedades têm suas estruturas edificadas sobre a matança de inocentes. Com o objetivo de aplacar a ira da multidão enfurecida pela impossibilidade de conciliar, satisfazer e preencher os desejos dos grupos humanos, elege-se um bode expiatório. A vítima é geralmente escolhida entre criaturas isoladas e frágeis que não oferecem perigo de retaliações ou de vingança. Assim, com a morte do bode expiatório restabelece-se a unidade social, pelo menos por algum tempo.


Grafite e Desábato

    No dia 14 de abril, durante o jogo entre o São Paulo, time brasileiro, e o Quilmes, time argentino, tivemos um episódio envolvendo o atacante brasileiro Grafite e o jogador argentino Leandro Desábato. Na jogada que originou todo o problema, Grafite e o jogador Luis Arano se desentenderam após uma "entrada" violenta de Grafite em Arano. Na seqüência, o jogador Desábato se aproximou e proferiu palavras de cunho racista.

    Após o jogo, o atacante brasileiro denunciou Desábato e este foi preso pela polícia brasileira. A autoridade policial que deu voz de prisão ao jogador argentino exclamou: "Ninguém está inventando nada. Tudo isso está previsto pela lei. Isto pode servir de exemplo não só para o futebol, mas para tudo", afirmou o delegado Oswaldo Gonçalves, responsável pela prisão. (O Estadão, São Paulo, 14 de abril de 2005. Disponível em: http://www.estadao.com.br/esportes/futebol/noticias/2005/abr/14/28.htm. Acesso em: 15 de abril de 2005.)

    Vamos iniciar a análise pelo seguinte trecho: "Isto pode servir de exemplo não só para o futebol, mas para tudo". A necessidade de escolher alguém para servir de exemplo é algo comum na sociedade, principalmente, quando existem tensões acumuladas.

    Tensões acumuladas entre brasileiros e argentinos não faltam no futebol. Juntam-se a isso a questão racial e a explosão na Europa de várias atitudes racistas contra jogadores brasileiros, o que faz o estádio virar um templo e o jogo um ritual.

    A seqüência dos fatos apresenta diversas representações de apoio ao jogador Grafite. "Não podemos deixar ele (Desábato) voltar ao seu país sem sentir a força e a repulsa do povo brasileiro diante de uma atitude dessa" (Marcos A. Alvarenga OAP-SP, In: Lance! O diário dos esportes, Rio de Janeiro,15 de abril de 2005, p. 22). "O futebol perde muito com esse episódio. Nada pode justificar um ato de racismo. Que isso sirva de exemplo para todo o mundo do futebol" (Nicolas Leoz, Presidente da Conmebol, In: Lance! O diário dos esportes, Rio de Janeiro, 15 de abril de 2005, p. 22).

    Nessas representações, percebe-se um certo nacionalismo e também a necessidade de aproveitar o episódio para dar um exemplo ao mundo contra o racismo.

    O processo é mimético. Todos querem ser politicamente corretos nesse momento. Mídia e população se projetam nos jogadores. O racismo tem gerado insatisfação em grande parte da comunidade futebolística. Entretanto, no episódio em questão, muitas outras insatisfações existem.

    À insatisfação se associa o ódio e se ameaça o equilíbrio social. O equilíbrio é restabelecido mediante o sacrifício de alguém. Esse rito ao mesmo tempo encobre e reproduz uma violência. O linchamento faz aflorar o que existe de pior na natureza humana.

    Negro, negrito, negro de merda etc., são metáforas desclassificatórias. Uma metáfora que desclassifique alguém como ser humano o fere no íntimo e não apenas na superfície. A humilhação de um indivíduo e de um grupo faz parte do processo de dominação. A humilhação, entre os grupos humanos, se dá de diferentes formas, mas, principalmente, através de palavras. As idéias precisam das palavras. As palavras são as imagens dos pensamentos e precisam ser pronunciadas para existirem, mas, depois que são ditas, fica-se preso a elas para sempre ou até que haja um processo de conscientização.

    Há que se observar na linguagem as marcas que apontam para o racismo, mas também a re-atualização do ritual de sacrifício. Isto não poderá ser realizado se nos contentarmos com a dimensão literal do aparente. A análise das metáforas e do sentido construído socialmente para elas é imprescindível para compreendermos esse fenômeno.

    A mídia ao mesmo tempo em que cede ao clamor das ruas, aos apelos de marketing e à celebração do sacrifício, também tem sido um instrumento da civilização quando discute e se preocupa com a vitimização dos inocentes.


As vítimas

    Inicialmente, a comunidade brasileira se uniu na tristeza do episódio; esse é um processo mimético, mas seríamos ingênuos em acreditar que a mimese é pacífica. Podemos dizer que imitamos uns aos outros, que desejamos o que os outros desejam, que nosso desejo passa pelo olhar do outro. Entretanto, o ser humano é conflituoso, pois apesar de desejarmos as "mesmas coisas", ou seja, repetimos padrões, nunca estamos satisfeitos. Um dos meios de nos livramos desse conflito é escolhermos um bode expiatório e depositarmos nele nossas frustrações.

    O racismo que vêm sofrendo os jogadores brasileiros na Europa poderia então ser expurgado. Existia à mão um jogador argentino, branco, e que xingara o grande atacante brasileiro em território verde e amarelo. As notícias enalteceram o jogador do São Paulo pela coragem.

"Frente parlamentar destaca coragem de jogador em denunciar racismo.
Brasília - Elogios à atitude do jogador Edinaldo Batista Libânio, o Grafite, do São Paulo, surgiram dos mais variados fóruns. No Congresso, a Frente Parlamentar em Defesa da Igualdade Racial exaltou a coragem de Grafite em denunciar e prestar queixa contra o jogador argentino Leandro Desábato, que o ofendeu no jogo do Quilmes contra o São Paulo"(http://www.radiobras.gov.br, página acessada no dia 23 de abril de 2005).

    Após o ritual fúnebre que se seguiu ao jogo, com a prisão do argentino, alguns sinais na mídia começam a mostrar uma mudança nos rumos das representações. Iniciou-se uma inversão de bodes expiatórios. De fato, temos duas vítimas: Desábato e Grafite.


Racismo para dentro e para fora

    No jornal O Globo do dia 17 de abril de 2005, o advogado Hédio Silva Júnior, doutor em direito constitucional, foi designado pela OAB da capital do Estado de São Paulo, para acompanhar o episódio da prisão do jogador Desábato. A manchete do jornal aduzia: "O caso Grafite tem conteúdo emblemático" (Caderno de Esportes, p. 43).

    Na entrevista, Hédio afirma que embora considere a lei brasileira rígida contra o racismo, diz que ela deveria sofrer adequações para as situações vividas em estádios e ginásios. E ressaltou que o racismo também é visto na torcida brasileira. "Mas esse tipo de coisa ganha maior visibilidade quando jogadores brasileiros são insultados pelas torcidas no exterior" (O Globo, 17 de abril de 2005, Caderno de Esportes, p. 43).

    O representante da OAB no caso alude ao racismo na torcida brasileira. Este racismo para dentro parece ser naturalizado e pouco questionado. Alguns estudos já analisaram esse fenômeno (SILVA, 1998; SILVA, 2000; SILVA & VOTRE, 2002).

    Recentemente, a Federação Inglesa protagonizou um episódio lamentável. No dia 27 de janeiro de 2005, a entidade distribuiu a milhares de torcedores um DVD com cenas dos melhores jogadores que teriam servido à seleção no período após a Segunda Guerra Mundial, mas não incluiu um único atleta negro. Ficaram de fora jogadores como o atacante John Barnes, o lateral Viv Anderson, que em 1978 tornou-se o primeiro atleta negro a vestir a camisa do English Team. Esqueceram-se também de Paul Ince, o primeiro capitão negro da seleção. Uma atitude que não se coaduna com a pressão realizada na FIFA para desfiliar a Federação Espanhola por causa dos coros racistas entoados pelo público durante o amistoso entre Espanha e Inglaterra, em Madri. O título do DVD é Orgulho da Nação. A desculpa foi que não havia tempo suficiente no produto para incluir os jogadores negros. Aqui se apresenta um caso, nos moldes da torcida brasileira, de racismo para dentro.

    O racismo para dentro é naturalizado e acirra-se o racismo contra os outros. Na América do Sul, diferentemente da Europa, não se busca o sentimento de pertencimento, de identidade nacional no esporte, através do resgate de batalhas ou feitos históricos contra outros países. Até porque os maiores rivais no futebol Sul-Americano são argentinos e brasileiros, que foram aliados na aniquilação do Paraguai na Guerra do Paraguai. Parece existir uma sabedoria popular que não evoca tais batalhas históricas para realizar analogias no futebol. O ponto a realçar é o fenômeno do bode expiatório, que se constitui num elemento central para a análise do racismo no futebol.

    O ritual de sacrifício tem por objetivo descarregar sobre algo as frustrações, ódios e tensões acumuladas. Busca-se sempre um responsável, um culpado que personifique, por exemplo, uma derrota - "alguém tem de pagar o pato"; este é um processo de objetivação realizado pela comunidade. A mimese nos leva a crucificar os outros, mas o que diferencia a nossa civilização de outras é que sabemos disso.

    O racismo para dentro tende a ser naturalizado, reificado, camuflado, tanto no Brasil como em outros países. O racismo para fora é exercido com mais ênfase, pois é o outro, o estrangeiro, o que veio de fora, aquele que veio a nossa terra e humilhou um dos nossos. É mais fácil ver o cisco no olho do outro do que as traves nos nossos.

    O dado interessante é verificar a transferência da pressão sobre o jogador argentino para o jogador brasileiro. A manchete do jornal A Folha ratifica essa transferência.

"Grafite já fala em recuar contra o argentino Desábato
Uma semana após afirmar que iniciaria uma cruzada contra a discriminação racial, levando às últimas conseqüências as acusações contra Desábato, o são-paulino Grafite deu mostras de que pode voltar atrás". ( A Folha On Line http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u88404.shtml, acesso em 25 de abril de 2005).

"Grafite decidiu dar o pontapé inicial na acusação de injúria por racismo contra Leandro Desábato a partir de uma pressão da cúpula são-paulina, segundo Eduardo Sorrentino, amigo do atacante que depôs contra o argentino.
"Agora queremos abafar o caso. Houve o problema [a ofensa no gramado e a expulsão de Grafite], então o doutor Nico [delegado que fez a prisão] achou com a diretoria [do São Paulo] fazer isso [a prisão]. Mas quem está sendo prejudicado agora é o Grafite", disse Sorrentino, ontem, à Folha."
(A Folha On Line http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u88472.shtml, acesso em 25 de abril de 2005).

    No dia 27 de abril, a seleção brasileira realizou um amistoso com a seleção da Guatemala para a despedida do jogador Romário. O jogador Grafite entrou no transcorrer do jogo e, desta vez, foi alvo de injúrias por parte da própria torcida brasileira.

"No Pacaembu, Grafite volta a sofrer com ato racista. O atacante são-paulino Grafite, autor de um gol na vitória da seleção brasileira por 3 a 0 no amistoso contra a Guatemala, disputado na noite de quarta-feira, no Pacaembu, voltou a ser vítima de racismo. Durante o jogo de ontem, uma banana com as inscrições "Grafite macaco" foi atirada ao gramado do estádio. A pessoa que atirou a banana não foi identificada.(Folha On Line. São Paulo, 28 de abril de 2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u88671.shtml. Acesso em: 29 de abril de 2005)".


Considerações finais

    A mimese nos leva a oprimir, pois constantemente somos oprimidos, seja pela coerção, persuasão ou pela sedução. Por que as pessoas se influenciam tanto mutuamente? Ora, é isso que nos torna humanos. O animal tem apenas instinto; o ser humano deseja. E o desejo passa necessariamente pelo olhar do outro. Nós não desejamos alguma coisa por instinto. O ser humano é social, cultural, histórico, psicológico. Seus desejos são historicamente e culturalmente instaurados. Você deseja aquilo que também é desejado por outros. O simbólico é que efetivamente institui o desejo. Se algum objeto tem apenas valor utilitário ou funcional e nenhum valor simbólico, ele será desprezado.

    A mimese nos leva a crucificar os outros, mas o que diferencia a nossa civilização de outras é que sabemos disso. No entanto, os bodes expiatórios de que falamos são sempre os dos outros. Dificilmente, somos capazes de encarar nossos próprios bodes expiatórios. Temos a tendência de sempre culpar o outro e não a nós mesmos.

    Ainda elegemos bodes expiatórios. No começo, todos nos juntamos contra a vítima, mas de repente, após a sua crucificação, alguns se arrependem, e aí nos conscientizamos de nossa própria fraqueza e onde escondemos o nosso racismo.


Referências

  • FREUD, S. Totem e Tabu. In: Obras completas. Buenos Aires: Rueda, 1950.

  • GIRARD, René. Lições de René Girard na UniverCidade. Rio de Janeiro: Editora da UniverCidade, 2001, p.12.

  • HELAL, Ronaldo; GORDON, César. A Pátria de Chuteiras e a Identidade Nacional. In: VOTRE, S. J. Imaginário & Representações Sociais em Educação Física, Esporte e Lazer. Rio de Janeiro: Ediotora Gama Filho, 2001, p.148.

  • SILVA, Carlos Alberto Figueiredo da; VOTRE, S. J. Personificação e concretização da derrota: o papel da mídia. In: Anais do VIII Congresso Brasileiro de História da Educação Física, Esporte, Lazer e Dança, 2002.

  • SILVA, Carlos Alberto Figueiredo da. Futebol, Linguagem e Mídia: Entrada, Ascensão e Consolidação dos Negros e Mestiços no Futebol Brasileiro (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: PPGEF-UGF, 2002.

  • ______. Futebol, linguagem e mídia: o imaginário na construção histórica das representações. In: Anais do VII Congresso Brasileiro de História da Educação Física, Esporte, Lazer e Dança. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2000. p. 454-459.

  • ______. A linguagem racista no futebol brasileiro. In: Congresso Brasileiro de História do Esporte, Lazer e Educação Física, 1998, Rio de Janeiro. In: Anais do VI Congresso Brasileiro de História do Esporte, Lazer e Educação Física. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1998. p. 394-406.

Outro artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
http://www.efdeportes.com/ · FreeFind
   

revista digital · Año 10 · N° 84 | Buenos Aires, Mayo 2005  
© 1997-2005 Derechos reservados