efdeportes.com
Aspectos da construção e desenvolvimento da
imagem corporal e implicações na Educação Física

The construction and development aspects of the body image and implications in the physical education

   
Laboratório de Pesquisa Morfo-funcional - Centro de Educação Física
Fisioterapia e Desportos da Universidade do Estado de Santa Catarina
CEFID/UDESC
(Brasil)
 
 
Fernando Adami
nandoadami@bol.com.br  
Tony Charles Fernandes
tonycharles@yahoo.com.br  
Deivis Elton Schilickmann Frainer
dfrainer@hotmail.com  
Fernando Roberto de Oliveira
deoliveirafr@aol.com
 

 

 

 

 
Resumo
    Esse artigo visa discutir imagem corporal à luz de revisão de literatura, no sentido de buscar um entendimento mais holístico desse fenômeno. São discutidos os processos de formação da imagem corporal, onde são envolvidos aspectos neurais, perceptivos, afetivos, motores e sociais/culturais. Também se discute a influência cultural sobre a imagem corporal na sociedade e problemas patológicos decorrentes, bem como relações com a educação física.
    Unitermos: Imagem corporal. Estética corporal. Auto-imagem. Cultura corporal. Educação física..
 
Abstract
    The aim of this paper is to argue the body image to the light of literature revision, to search a more holistic understanding of this phenomenon. They are argued the processes of formation of the body image, where involves neural, perception, affective, motor and social/cultural aspects. Also the cultural influence on the corporal image of the society and his pathological problems are argued, as well relations with physical education.
    Keywords: Body image. Body esthetic. Self-image. Body culture. Physical education.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 83 - Abril de 2005

1 / 1

Introdução

    A imagem corporal é um complexo fenômeno humano que envolve aspectos cognitivos, afetivos, sociais/culturais e motores. Está intrinsecamente associada com o conceito de si próprio e é influenciável pelas dinâmicas interações entre o ser e o meio em que vive. O seu processo de construção/desenvolvimento está associado, nas diversas fases da existência humana, às concepções determinantes da cultura e sociedade. Na história, ocorreram modificações das formas de apresentação e representação dessa imagem, com conseqüências notáveis na relação intra e extramuros corporais.

    A busca de uma imagem corporal, adequada aos anseios estereotipados de corpo, é um dos fenômenos mais impressionantes na sociedade atual; existe uma grande influência cultural sobre a cultura e imagem do corpo, o que pode criar aspectos enviesados relacionados ao universo corporal. Neste contexto, foram criados "modelos" de referência quase inatingíveis, pois o corpo "vendido" passa distante da realidade da maioria. E assim, assumem-se excessos, são criadas frustrações e quase "cyborgs".

    O movimento humano pode se apresentar como um artifício para o desenvolvimento da imagem corporal padronizada. Para Feijó (1992, p.34),

O movimento sempre tem uma finalidade, sempre surge após uma avaliação subjetiva de significado. Uma vez estabelecido o significado de uma situação, de uma pessoa ou de uma coisa, movimento é o instrumento usado pelo corpo-mente para responder coerentemente ao significado convencionado.

    Junto à hipocinesia, provocada pela tecnologia e novas formas de produção e de relação homem-trabalho, o século XX transformou profundamente a manifestação do movimento como parte integradora da própria essência humana. A inatividade física se tornou problema de saúde pública - as doenças crônico-degenerativas passaram a ser a causa principal da morte na sociedade atual, deixando para trás as doenças infecto-contagiosas (NAHAS, 2001). Além disso, o corpo foi cada vez mais explorado pelo comércio, moda e meios de comunicação.

    Tais fatos foram permeados por algumas concepções de ser humano/sociedade; o indivíduo passou a ser visto de forma mais holística e também como instrumento de rendimento, de mercado. A cultura corporal, incluindo imagem e movimento, passou, dessa forma, a pertencer a dois universos, que apesar de parecerem idênticos, são muitas vezes antagônicos.

    Nesse sentido, há a vertente de saúde, onde imagem e prática corporal convergem para um objetivo de agregação de valores nos quais o ser humano possui maior possibilidade de explorar seus potenciais, sejam eles somático-fisiológicos, psicomotores, intelectivos e até sociais. A interação homem/meio ambiente não se torna uma flagelação para o indivíduo.

    Já a outra vertente vê o movimento e a imagem corporal como "forças" de um sistema econômico, que cada vez mais tem o corpo e a auto-imagem como recurso mercadológico. Assim sendo, foram criados estereótipos corporais. Esse fenômeno tomou proporções que, segundo Costa (1998, p. 116), transformou a noção de estética corporal em algo que "não apenas invade, como também modifica a política, as nossas atividades profissionais, a comunicação, a publicidade, o consumo [...], por fim, a própria maneira de compreender nossas vidas". Ligados a essa vertente, emergem novas doenças na sociedade atual, como distúrbios alimentares, dentre outras patologias que podem ter ligação com o senso de identidade e com a personalidade do próprio indivíduo, como ansiedade e estresse (McCABE & RICCIARDELLI, 2003).

    Tal discussão tem importância abrangente para os profissionais relacionados ao movimento humano, com mais especificidade nesse artigo para a educação física: o corpo e o movimento são objetos de estudo e de atividade pedagógica para esses profissionais. A partir do estabelecido, faz-se necessário uma discussão sobre as bases humanas e sociais que interferem no entendimento do conceito de imagem corporal, cujas implicações afetam diretamente na vida das pessoas, nas concepções de ser humano/sociedade e na própria manipulação de aptidões humanas. Esse artigo visa discutir essas relações da imagem corporal à luz de revisão de literatura, no sentido de buscar um entendimento mais holístico desse fenômeno e as implicações para a prática pedagógica da Educação Física. Essa visão holística toma importância devido à intricada relação dos aspectos fisiológicos, emotivos, sociais e culturais junto ao entendimento do conceito de si próprio. Dessa forma, as discussões referentes a esse fenômeno terão maior entendimento caso se possa integrar tais aspectos numa visão mais global. Nesse sentido, a 1ª parte desse artigo visará a apresentação do conceito e da forma como é construída a imagem corporal na mente. Tal visão auxiliará no entendimento da 2ª parte, cujo foco se dá, principalmente, nos aspectos motores, afetivos e sociais no conceito de si mesmo. A 3ª, visa também os aspectos de desenvolvimento da imagem corporal, porém mais voltada as influências culturais da sociedade atual ocidental. A 4ª parte é mais referente a implicações na Educação Física, sendo realizadas discussões sobre educação corporal, saúde e qualidade de vida. A 5 ª parte é uma discussão com caráter filosófico sobre a interação indivíduo-cultura.


Imagem corporal. Aspectos da construção

    O entendimento de aspectos da construção da imagem corporal envolve a interação de conhecimentos sobre a formação de imagens/representações na mente humana, sobre o tônus/postura/organização espacial do corpo humano e também sobre a realidade existencial do indivíduo, envolvendo percepção, memória, sentimentos e aspectos simbólicos da interação com o ambiente.

    Para Tavares (2003, p.29), a imagem mental "integra várias modalidades sensoriais e diversos processos psíquicos que estão continuamente em intercâmbio". Dessa forma são formadas imagens de objetos externos e internos. Schilder (1994, p.11) conceitua imagem (esquema) corporal afirmando que "Entende-se por imagem do corpo humano a figuração de nossos corpos formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós".

    Nesse processo de construção, os sentidos humanos (principalmente visão, tato e propriocepção) dão informações importantes sobre o desenho/silhueta corporal, além de interferirem diretamente no controle da postura, no tônus muscular e na organização espacial do ser humano no mundo. A imagem corporal está imbricada com essas percepções relacionadas ao corpo.

    Cabe ressaltar que a percepção na mente não é algo simplesmente formado por uma mente ingênua com somente propriedades físicas/químicas dos estímulos. Nesse sentido, o entendimento do fenômeno imagem do corpo não pode ser tido apenas com conhecimentos fisiológicos. De fato, a percepção difere qualitativamente das propriedades físicas dos estímulos, pois o sistema nervoso central extrai apenas certas informações perante os estímulos e interpreta estas informações no contexto de cada experiência (MARTIN, 1991). Deve-se lembrar, contudo, que a percepção, mesmo que individual, em muitas situações pode ser diretamente proporcional à magnitude dos estímulos. O que ocorre são diferenças nestas respostas entre indivíduos.

    A memória, que atua potencialmente como delineador de informações recebidas pelo ambiente, reflete a magnitude dos estímulos, tornando-se parte essencial na formação da percepção e, conseqüentemente, da imagem corporal. Para Guyton & Hall (1996, p. 422),

Uma vez que as memórias tenham sido armazenadas no sistema nervoso elas se tornam parte do mecanismo de processamento. Os processos de decisão do cérebro comparam experiências sensoriais novas com as memórias armazenadas; as memórias ajudam a selecionar as informações sensoriais novas consideradas importantes, bem como a canalizá-las para áreas apropriadas de armazenamento, com vistas a utilizações futura [...]

    Dessa forma, sentimentos de conflito, prazer, dor, intencionalidade, interagem com informações sensitivas do corpo e do ambiente, além de informações da memória, dando um caráter dinâmico e complexo ao fenômeno imagem do corpo. A cada momento, a percepção corporal é intricada de valores de juízo; a dinâmica estímulo-resposta é dependente do simbolismo inerente às relações indivíduo, ele mesmo e ambiente.

    O ser humano, portanto, constrói a visão do eu e da imagem do seu corpo intimamente associados, ambos dependentes do desenvolvimento do sistema sensorial/neurológico, da percepção e de relações sociais/culturais. Nesse sentido, escreve Tavares (2003, p.36),

Nossa imagem corporal representa uma experiência muito especial, uma vez que o objeto em foco corresponde ao nosso eu. Inclui aspectos conscientes e inconscientes [...]. Ela está vinculada à minha identidade e à minha experiência existencial. É tão espetacularmente dinâmica como são minhas relações com o mundo e como é a interação entre meus aspectos conscientes e inconscientes [...].


Imagem corporal. Aspectos do desenvolvimento

    Para Tavares (2003), o desenvolvimento da imagem corporal depende do processo de desenvolvimento da própria identidade corporal do indivíduo, sendo ambos os processos totalmente dependentes da singularidade da estrutura orgânica e do espaço de relações de cada indivíduo. "É preciso que ele (o corpo) possa existir cada vez mais em sua singularidade para que sua representação esteja concretamente relacionada a ele". A garantia para a construção de uma identidade corporal, segundo a autora, é assegurada pelas sensações corporais, fonte da subjetividade humana.

O desenvolvimento de nossa identidade corporal está intimamente ligado ao processo de vivenciar sensações dimensionadas à singularidade de nossas pulsões e de nossa existência desde a mais tenra idade (p.81).

    O movimento humano aparece como um elemento essencial no desenvolvimento da imagem corporal. A cada nova postura, tônus e organização espacial requeridos pelo movimento, há informações sensitivas que vão influenciar na percepção corporal. O caráter de adaptação lenta dos estímulos de receptores da cápsula articular e do músculo, além da freqüente mudança da posição dos membros corporais, conferem uma constante informação sobre o corpo no espaço (GUYTON & HALL, 1996). A intencionalidade e os valores de juízo acabam por se integrarem a essas informações, dando ao movimento do corpo humano um caráter singular e simbólico. Schilder (1994, p.181) escreve:

Assim, o movimento influencia a imagem corporal e nos leva de uma mudança da imagem corporal a uma mudança da atitude psiquíca [...] A inter-relação entre seqüência muscular e atitude psíquica é tão íntima que não só a atitude psíquica se conecta com os estados musculares, como também toda seqüência de tensão e relaxamento provoca uma atitude específica. Uma seqüência motora específica altera a situação interna e as atitudes [...].

    Para a criança, o movimento torna-se muito especial na tomada de consciência do "eu". No início do século passado, muitas famílias brasileiras tinham o costume de amarrar os membros de uma criança para lhe impedir o movimento. Tal criança teria, com certeza, seu processo de formação da imagem corporal prejudicada.

    Pode-se refletir também acerca das pessoas que possuem algum tipo de trauma ou que perderam algum movimento pela imobilidade de um membro de seu corpo. Essas pessoas têm que conviver com uma diversidade de situações que não lhe eram habituais, reconstruindo diversos esquemas e possibilidades motoras para cada situação específica. A amputação de algum membro, segundo Kolb (1975) citado por Breakey (1997), pode levar o indivíduo a ter modificações na sua experiência corporal, e que tais alterações podem influenciar na imagem corporal e em aspectos emocionais, perceptuais e psicológicos.

    Parece que as influências sobre a imagem corporal de amputados não levam somente à perda da sensação e da funcionalidade do membro, mas também acarretam em uma série de alterações no bem estar psicossocial. Goldberg (1984) apud Breakey (1997) sugere que, mesmo quando a amputação não interfere na realização de atividades como o trabalho, atividades recreativas e participação social, ela pode ter um grande impacto na auto-estima. Como resultado, a pessoa pode focar sua atenção na perda da aparência física normal e tentar esconder a "deformação". Ele ainda continua, dizendo que "se o indivíduo tiver o membro amputado, a pessoa tenderá a comparar a sua aparência e as capacidades funcionais a dos outros."

    Diante da realidade corporal dos amputados, é de se esperar que, se o amputado não aceitar a sua inabilidade física e o seu corpo como ele é apresentado, pode-se esperar um grau mais elevado de ansiedade e depressão, menor auto-estima e menor satisfação com a vida (GOLDBERG, 1984, apud BREAKEY, 1997). Isso foi constatado por Breakey (1997) em seu estudo com amputados de membro inferior, que tinha como objetivo verificar as relações existentes entre a imagem corporal e índices de bem estar psicossocial (ansiedade, auto-estima, depressão e satisfação com a vida).

    Essas relações entre imagem corporal, aspectos motores e de bem estar psicossocial são essenciais para se compreender a complexidade do universo da imagem corporal, auxiliando na melhor compreensão do desenvolvimento desse fenômeno e dos parâmetros que determinam todo o julgamento de si. Além disso, pode levar a especulações sobre tratamentos no sentido de fazer com que haja uma maior aceitação de si por parte do amputado.

    Outra ótica a ser analisada no universo de desenvolvimento de imagem corporal são as possíveis interferências sobre as condutas e ações corporais humanas, desde a tenra idade, e que podem levar a deturpações e sentimentos relacionados com a própria imagem do corpo. Para Tavares (2003, p.74),

A atitude dos pais, as conversas familiares e as observações dos outros sobre o corpo incrementam a descoberta e o interesse da criança pelo seu próprio corpo. Uma descoberta no próprio corpo pode levar a uma atenção especial para partes correspondentes dos corpos dos outros.

    Franko & Striegel-Moore (2002), realizando um arrazoado sobre as pesquisas em imagem corporal em mulheres negras e brancas (com predominância para as norte-americanas, mas também relatando mulheres africanas, canadenses e britânicas), encontrou que, na maioria dos achados, mulheres negras são mais satisfeitas com a imagem de si mesmo. As hipóteses levantadas para tais achados foram: 1) as mulheres negras teriam um padrão de referência diferente do das mulheres brancas, não tendendo tanto para o magro; 2) as negras tendem a olhar o feedback dado pelos familiares e amigos mais positivamente que negativamente, comparado com as brancas. 3) Mulheres negras possuem senso de personalidade, de importância familiar e de auto-estima maiores em comparação com as brancas. Nota-se, portanto, a influência afetiva, perceptual, comportamental e social no conceito de si mesmo.


Imagem corporal. Aspectos sociais/culturais

    Rizzo Pinto (1997, p.263) conceitua o homem de acordo com diversos "eus", a ser destacado aqui o eu-cultural e o eu-social. Os seres humanos, diferentes que são dos outros animais, conseguem se relacionar consigo mesmo e com os outros de maneira simbólica e não instintiva. O mecanismo perceptivo, portanto, se volta muito para influências do meio social e da cultura, determinando valores que são influenciáveis social e culturalmente.

    O sentido de beleza é variável de acordo com etnia, idade, nível social, história, sociedades, culturas e infinitos outros grupos, podendo-se considerar também o nível individual. Hoje, porém, a beleza corporal está muito vinculada a padrões de mercadoria, onde existe uma verdadeira maquinaria cultural de vendas de corpos, adornos e elementos relacionados a ele.

    Essa crescente comercialização do corpo, tão incutida na cultura atual, produziu um paradoxo entre a beleza corporal e o artificial. Tal paradoxo aderiu suavemente à imagem corporal, relacionando-a a um padrão corporal pré-definido como referência de saúde, qualidade de vida e beleza.

    Labre (2002), realizando uma retomada das revisões referentes ao ideal de beleza nos homens, levanta algumas reflexões referentes a essa tendência cultural: 1) revistas, televisão e filmes são disseminadores de uma homogeneização em relação à visão do que seria um corpo bonito. 2) existe uma tendência para homens do padrão cultural musculoso, com elevado grau de hipertrofia e níveis baixíssimos de gordura, o que hoje é chamado de definição muscular. Para as mulheres, essa tendência seria para o magro, disseminando a perda de peso. 3) Por mais que esses veículos de comunicação possam, de maneira indireta, incentivar a prática de atividade física e conseqüente manutenção da saúde, a aquisição de um padrão corporal alto, magro, hipertrofiado, com abdominais ondulados não é alcançável pela maioria da população nem necessário para uma melhora da saúde. O objetivo é primariamente econômico. Outro ponto ressaltado pelo autor são os problemas que teriam associação forte com a criação de hábitos para a aquisição desses estereótipos de corpo. São citados a insatisfação corporal, distúrbios alimentares, uso de esteróides anabolizantes e suplementos alimentares. Patologias de ordem fisiológica, cognitiva, comportamental e até social acabam sendo derivados como conseqüência da aquisição de hábitos não saudáveis.

    Nesse contexto, pode-se refletir sobre a indústria e serviços associados à beleza do corpo, apresentados como um dos fenômenos mais impressionantes da vida atual; onde são projetados para as pessoas diversos métodos, técnicas e abordagens para o belo, o magro e o forte.

    Para Belloni (2002, p.94),

[...] a indústria cultural desempenha um papel crucial, não apenas como mais um setor promissor de expansão de mercadoria, mas principalmente como mecanismo poderoso de produção da consciência coletiva e individual que assegura a adesão [...} da maioria das populações a um modo de vida e a um modelo de consumo dos quais elas estão definitivamente excluídas

    A celebração corporal atual pode fazer com que o indivíduo se afaste da própria subjetividade, modelo e vivência corporal, chegando ao ponto extremo de ocasionar-lhe um processo de alienação e de construção de uma consciência acrítica em relação a sua percepção corporal e a hábitos de vida. Como conseqüência, o indivíduo pode desconhecer meios que poderiam ajudá-lo a sair dessa realidade ou não ser capaz de concretizar tais meios, hipertrofiando essa condição de vida não emancipada, tão arraigada na sociedade. Vive-se o culto ao corpo extremo determinado; é criada a angústia interna vivenciada; aceitam-se os "fantons" de referência pública. Para Tavares (2003, p.84),

A identidade do sujeito, como "ser sensível", fica mascarada, e embora possa ter sucesso socialmente, a imagem que tem de si não reflete um mundo interno vinculado às suas vivências sensoriais, afastando-o de um contato consigo mesmo. Fica dependente do mundo externo para direcionar suas ações e percepções: estas passam a acompanhar predominantemente esse comando externo, tendendo a um processo mais repetitivo vinculado às exigências externas.

    Tais exigências e comandos externos são possibilitados por diferenciados meios e também por diversas formas de vivenciar essa contemplação corporal da sociedade atual. Estudiosos da imagem corporal observam que a insatisfação com a própria imagem pode ser conseqüência de mensagens e apelos de determinadas sub-culturas, e "mesmo que a cultura dominante não prescreva que o homem seja avaliado através de padrões estéticos, ele poderá estar recebendo informações diferentes desta em suas comunidades, muitas vezes sendo pressionado a ser musculoso, ou até mesmo parecido com os demais" (MORRINSON, MORRINSON & SAGER, p.129, 2004).

    Morrinson et al (2004) realizaram uma meta-análise de 27 estudos que investigavam a orientação sexual e um aspecto específico da imagem corporal, a satisfação corporal, isto é, o quanto gays e lésbicas diferiam de heterossexuais masculinos e femininos em termos de atitude e comportamento corporal. Seus resultados indicam que gays aparentam ser mais propensos a ter insatisfação com a sua imagem corporal que heterossexuais masculinos, e um número menor de estudos apontou que lésbicas parecem ser ligeiramente mais satisfeitas com seus corpos do que heterossexuais femininas. Parece também que, no universo da satisfação corporal, a orientação sexual parece influenciar mais os homens do que as mulheres.

    É imperativo comentar que as informações que cada comunidade dissemina sobre o corpo são de extrema importância para entender um pouco o sentimento de insatisfação com a imagem corporal. Morrinson et al (2004) coloca que a comunidade lésbica rejeita os padrões socialmente impostos de beleza feminina, e se opõe à grande ênfase dada à mulher fisicamente atraente. Já a comunidade gay dá mais ênfase à atratividade física, perpetuando a exaltação do corpo e mais especificamente, a forma muscular mesomórfica ideal (o musculoso).

    Essa atitude tem sido criticada e caracterizada como "fascismo corporal" que, segundo Signorile apud Morrison et al (2004, p.130), denota:

[...] o ajuste de um jogo rígido de padrões de beleza física que pressiona a todos de um determinado grupo a conformar-se com eles. Em uma cultura no qual o corpo físico está preso em tal elevada estima e lhe é dado tal poder, o fascismo corporal julga, não somente aqueles que não ou nem podem ser, menos desejáveis sexualmente, mas, num extremo, também julgam o indivíduo desvalorizado como pessoa, baseado somente no seu interior.


Imagem corporal. Implicações na Educação Física

    Freire & Scaglia (2004), cita uma educação dos sentidos através da prática da educação física. Em suas palavras:

[...] as sensações são atividades à flor da pele, localizadas na fronteira entre cada pessoa e o mundo. São atividades sensoriais e, portanto, tipicamente corporais, tal como a motricidade, objeto básico e motivo da existência de uma disciplina chamada educação física. (p.134)

    Essa educação dos sentidos seria mais do que aumentar a capacidade sensorial das pessoas; envolveria todo um processo de educar perceptivamente, interiorizando objetos, emitindo juízos, levando à imaginação e à consciência. Dessa forma, essa educação concebe ao indivíduo um maior conhecimento de seu corpo, sensibilizando-o cada vez mais à singularidade de suas sensações e permitindo uma maior identidade corporal.

    Os autores dão uma importância global a essa educação:

O homem é incapaz de resolver as mais graves questões universais da atualidade porque elas lhe escapam à inteligência. Falta-nos a sensibilidade educada; faltam-nos as emoções educadas, a sexualidade, a motricidade e a sociabilidade educadas. (p.134)

    A importância da intervenção pedagógica através da educação física, aliando motricidade e essa educação dos sentidos para o desenvolvimento da imagem corporal, pode ser vista nas palavras de Schilder apud Tavares (2003, p.73)

As primeiras experiências infantis são fundamentais no processo de desenvolvimento da imagem corporal, mas nunca paramos de ter experiências e de explorar o nosso corpo. Essa concepção [...] aponta para o significado de nossas experiências corporais por toda nossa vida. Isso evidencia também a importância de intervenções corporais no processo de desenvolvimento das pessoas, do nascimento à velhice.

    Freire & Scaglia (2004) apontam ainda para um "corpo cultural", objeto de intervenção pedagógica da educação física. Nesse sentido, a educação apenas das funções biológicas seria por demais estreita para um ato pedagógico visando a autonomia e a tomada de consciência do indivíduo. Para ele, a natureza específica do ser humano é a cultura e o entendimento do ser humano tem que ser visto a partir de suas interações com determinada cultura.

    Nos tempos atuais, produzem-se os estereótipos do belo, do magro e do musculoso. A enfática estratégia da prática de exercícios físicos e da alimentação visando o rendimento, a medida, o "ter um corpo" adequado aos padrões impostos, consolida analogias do corpo humano e do movimento ao de uma máquina, na qual ambos - exercício e alimentação - são executados de um modo irrefletido e irresponsável, repetitivo e mecânico (RIZZO PINTO, 1997). Os limites físicos, psíquicos e sociais do indivíduo são desrespeitados, e acaba se afastando os benefícios que a imagem corporal pode proporcionar ao mesmo, de se conhecer, conhecer a realidade em que vive e produzir, assim, diagnósticos que possibilitem melhorar sua vida. Perde-se um verdadeiro sentido estético, o qual beneficia à saúde e à qualidade de vida, e parte-se para um sentido estético estereotipado e alienante, que evade da formação de seres humanos emancipados.

    Os conceitos de saúde e qualidade de vida estão relacionados, e vão além do entendimento de que têm, como objetivos, a ausência de doenças e o retardamento da morte (RIZZO PINTO, 1997). Nahas (2001, p.31) afirma que

[...] tende-se a considerar saúde como uma condição humana com dimensões física, social e psicológica, caracterizada num contínuo com pólos positivos e negativos. A saúde positiva seria caracterizada com a capacidade de ter uma vida satisfatória e proveitosa, confirmada geralmente pela percepção de bem estar geral; a saúde negativa estaria associada com morbidade e, no extremo, com mortalidade prematura.

    A qualidade de vida, segundo o mesmo autor (2001, p.5), é

[...] diferente de pessoa para pessoa e tende a mudar ao longo da vida de cada um. Existe, porém, consenso em torno da idéia de que são múltiplos os fatores que determinam a qualidade de vida de pessoas ou comunidades. A combinação desses fatores que moldam e diferenciam o cotidiano do ser humano, resulta numa rede de fenômenos e situações que, abstratamente, pode ser chamada de qualidade de vida. Em geral, associam-se a essa expressão fatores como: estado de saúde, longevidade, satisfação no trabalho, salário, lazer, relações familiares, disposição, prazer e até espiritualidade. Num sentido mais amplo, qualidade de vida pode ser uma medida da própria dignidade humana, pois pressupõe o atendimento das necessidades humanas fundamentais.

    Sabe-se que saúde e qualidade de vida estão atreladas a uma condição de vida em que a pessoa é considerada como um ser integral e pleno, sendo capaz de conter subsídios que dispersem, ao máximo, os fatores negativos aos quais é submetida. Nesse sentido, ambas devem proporcionar ao ser humano, direta ou indiretamente, melhoras em seus aspectos físico, psíquico e social, permitindo-lhe interagir otimamente com a natureza e cultura que o englobam, sendo partícipe efetivo dos projetos individuais e coletivos. Imagem e prática corporal, bem como alimentação, devem fazer parte desse universo de saúde e qualidade de vida.

    Enfim, esse acentuado crescimento da comunicação através do corpo e, mais especificadamente, da imagem do corpo, está fortemente relacionado com a formação de múltiplos caracteres ideológicos enviesados e acompanhados de transformação negativa na prática cultural dos indivíduos. Parece que a aderência dos resíduos provenientes do atual sistema apresenta-se como fator limitante à conscientização e crítica comportamental, inibindo ações transformadoras, principalmente no que diz respeito às várias aspirações materialistas.


Imagem corporal. A necessidade de uma abordagem libertadora

    Não há a certeza da relação positiva entre atividade física e saúde. A certeza é de que a imagem corporal e o movimento humano fazem parte de um contexto de cultura corporal, onde aspectos relacionados à cultura humana são ditantes na conduta tomada frente ao próprio ato de expressão do corpo e movimento. O "se olhar" e o "se movimentar" reflete, portanto, uma característica humana/social onde se confundem o que é característica essencial da pessoa e o que é imposição social/cultural.

    Nesse contexto, é difícil distinguir o ponto onde a cultura corporal se distancia de aspectos produtivos para o ser humano. Se o ser humano tem na cultura o seu meio ambiente e através dela compense algumas de suas fragilidades em relação aos outros animais (FREIRE & SCAGLIA, 2002), é de se esperar que através dessa cultura o indivíduo tente chegar a aspectos de beleza física melhores, ao máximo aliando com a melhora no condicionamento físico, na saúde e também nos aspectos afetivos, sociais, cognitivos, perceptivos e comportamentais.

    É certo, entretanto, que tal cultura tem na mercadoria um dos cernes em relação a sua sobrevivência. O corpo vem tomando característica confinada a exploração lucrativa. Foucault (1979) citado por Nóbrega (2001, p.55) ressalta que,

Diferentemente do século passado o século XX iria priorizar o investimento no corpo , sob a forma de controle-estimulação. O poder assume a sua materialidade ao investir na recuperação do corpo através de uma complexa rede de investimentos: publicidade, medicina e diferentes técnicas corporais [...] imagens da mídia e outros universos referenciais.

    Dessa forma, os aspectos culturais de beleza física se confundem com a própria existência humana e com a alienação do desrespeito a si próprio. Pode-se inferir que a diversidade corporal encontrada na população acaba predispondo a idéia do fenômeno "insatisfação da imagem corporal" poder ocorrer mesmo que a imagem possa uma determinada adequação à saúde e/ou alguns aspectos sociais aceitáveis. O aspecto mercadológico relacionado ao corpo possui eficiente atividade para perpetuação desse fenômeno insatisfação.

    Nesse sentido, cada vez mais são ditados modelos de conduta onde as pessoas precisam seguí-los para a perpetuação (tanto do indivíduo quanto do modelo), sem muitas vezes reflexão sobre a coerência daquilo em relação à própria medida humana.

    E assim sendo, a visão cada vez menos reflexiva daquilo que chega a população parece fazer parte de uma unicidade de caminho "necessária" à satisfação humana, tão incutida socialmente e culturalmente. Parece que o empirismo (o conhecer através dos sentidos) acaba por anexar-se dramaticamente na relação do homem com os questionamentos fisiológicos, sociológicos e intrínseco-pessoais.


Considerações finais

    Desde a tenra idade, as interações do indivíduo consigo mesmo e com o meio vão formando a imagem corporal. Aspectos perceptivos, dependentes de estímulos e memória, vão interagindo com influências afetivas, motoras, comportamentais e culturais no processo de construção e desenvolvimento da própria imagem. Portanto, a imagem corporal está vinculada ao conceito de si próprio, bem como possui um caráter de dinamismo relativo aos sentimentos - felicidade, tristeza, etc; o significado de cada experiência sensibiliza o indivíduo para uma mudança da imagem corporal.

    Existe, dessa forma, uma inter-relação entre atitude psíquica, imagem corporal e atividade muscular, dependentes dos padrões fisiológicos de estímulos e da realidade existencial do sujeito.

    O sentido de beleza corporal atual interfere no conceito de imagem do corpo, de tal forma que a não adequação ao estereótipo está relacionada à etiologia de patologias e práticas enviesadas. Tais práticas e até a imagem corporal acabam, muitas vezes, por perder suas relações positivas com o ser humano para lhe causar aspectos negativos.

    Diante disso, há necessidade dos profissionais do movimento, mais especificadamente os profissionais de educação física, saberem dos conceitos e das interações imagem corporal - cultura - saúde, além dos fatores que interferem positiva ou negativamente nessa dinâmica de interação. A atuação profissional, portanto, não ficará alienada e trará em seu bojo o conhecimento necessário para a transformação e educação. Além disso, não estará, em longo prazo, prejudicando a saúde dos indivíduos, o que seria um paradoxo.

    Pode-se dispor uma das essências temática nesse texto através das palavras de Paulo Freire: "Nas sociedades alienadas, as gerações oscilam entre o otimismo ingênuo e a desesperança. Incapazes de projetos autônomos de vida, buscam nos transplantes inadequados a solução para os problemas do seu contexto." (apud MEDINA, 1986, p.17).


Referências bibliográficas

  • BELLONI, M.L. O lazer espetacularizado: cultura do narcisismo e indústria cultural. Motrivivência, ano 7, n.17, 2001.

  • BREAKEY, J.W. Body image: the lower-limb amputee. Journal of Prosthetics & Orthotics., v.9, n.2, p.58-66, 1997. Documento eletrônico disponível em: http://www.oandp.org/jpo/library/1997_02_058.asp

  • COSTA, M.G. Academia de ginástica: um espaço para o corpo. In: VARGAS, A. Reflexões sobre o corpo. Rio de Janeiro: Sprint, p. 116, 1998.

  • FEIJÓ, O.G. Corpo e movimento. Rio de Janeiro: Shape, p.116, 1992.

  • FLORES E SILVA, Y. Cuidado de si ou violência corporal? A produção da velhice feminina na mídia. Tese. Universidade Federal de Santa Catarina. Curso de doutorado em filosofia da enfermagem. Florianópolis, 1999.

  • FRANKO, D.L.; STRIEGEL-MOORE, R.H. The role of body dissastifaction as a risk factor for depression in adolescents girls: are the differences blac and white? Journal of Psychosomatic Research.; 53, p.975-983, 2002.

  • FREIRE, J.B.; SCAGLIA, A.J. Educação como prática corporal. São Paulo: Editora Scipione, 2004. Pensamento e Ação no Magistério.

  • GUYTON, A.C. ; HALL, J.E. Tratado de Fisiologia Médica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan SA, 1996.

  • HART, E. A. Assessing body image. Chapter 12, p. 409-437. In: Borrow, M. H.; Mcgee, R.; Tritschler, K. A. Pratical Measurement and Assessment. 5th ed. Lippincott Williams & Wilkins, 2000.

  • LABRE, M.A.M.P. Adolescents boys and the muscular male body ideal. Journal of Adolescents Health. ; v.30, n.4; p.233-242, 2002.

  • MAGILL, R.A. Aprendizagem motora: conceitos e aplicações. São Paulo, Edgard Blücher Ltda, 1984.

  • MARTIN, J.H. Coding and Processing of Sensory Information. In: KANDEL, E.R; Schwartz, J.H; JESSEL, T.M. Principles of Neural Science. 30 ed. Rio de Janeiro. Appleton & Lange, p.329-340., 1991.

  • MCCABE, M.P.; RICCIARDELLI, L.A. Body image dissastifaction among males across the lifespan: A review of past literature. Journal of Psychosomatic Research. v. 56. p.675-685, 2003.

  • MEDINA, J. P. S. A Educação Física cuida do Corpo... e Mente. 5.ed. Campinas: Papirus, 1986.

  • MORRISON, M.A.; MORRISON, T.G.; SAGER, C. Does body satisfaction differ between gay men and lesbian women and heterosexual men and women? A meta-analytic review. Body Image, n.1, 127-138, 2004.

  • NAHAS, M. V. Atividade física, saúde e qualidade de vida. 2.ed. Londrina: Midiograf, 2001.

  • NOBREGA, T.P. Agenciamentos do corpo na sociedade contemporânea: uma abordagem estética do conhecimento da educação física. Motrivivência, ano 7, n.16, 2001.

  • RIZZO PINTO, J. Corpo, movimento e educação: o desafio da criança e adolescente deficientes sociais. Rio de Janeiro: Sprint, 1997..

  • SHILDER, P. A imagem do corpo - as energias construtivas da psique. São Paulo. Martins Fontes, 1994.

  • TAVARES, M.C.G.C.F. Imagem corporal: conceito e desenvolvimento. Barueri, SP. Manole, 2003.

  • THOMPSON, J.K. Body image: extent of disturbance, associated features, theoretical models, assessment methodologies, intervention strategies, and a proposal for a new DSM diagnostic category--body image disorder. Prog. Behav. Modif. , v. 28, p. 3-54, 1992.

  • TURTELLI, L.S.; TAVARES, M.C.G.C.F.; DUARTE, E. Caminhos da pesquisa em imagem corporal na sua relação com o movimento. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas: v. 24, n. 01, p. 151-166, 2002.

Outro artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
http://www.efdeportes.com/ · FreeFind
   

revista digital · Año 10 · N° 83 | Buenos Aires, Abril 2005  
© 1997-2005 Derechos reservados