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Complexidade, corporeidade e educação física
La complejidad de la educación física de la corporeidad
The complexity of physical education corporeity

   
Professores do Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade de Passo Fundo RS
(Brasil)
 
 
Péricles Saremba Vieira
André Baggio

psvieira@upf.br
 

 

 

 

 
Resumo
    A tradição da cultura ocidental apresenta como forte tendência legar valor secundário ao corpo. Nessa perspectiva, as atividades de Educação Física, num primeiro instante, podem ser vistas como uma espécie de camisa-de-força; num segundo segmento, já enquanto disciplina escolar, uma mediadora de objetivos mais nobres. Pensar as atividades de Educação Física tendo como referência a perspectiva da complexidade significa abandonar a dualidade corpo-alma e inserir-se no mundo da corporeidade, ou melhor, no mundo da ecocorporeidade. Isso significa superar a situação de subalternidade ou de mediadora para buscar autonomia.
    Unitermos: Corporeidade. Complexidade. Educação Física  

Abstract
    Western culture strongly tends to assign secondary value to the body. According to such perspective, the activities of Physical Education, in the first instance, can be regarded as a sort of straitjacket; in a second segment, now as a school subject, it can be seen as a mediator of nobler purposes. Thinking about the activities of Physical Education taking as reference the perspective of complexity means setting aside the body-soul duality and entering the world of corporeity or, better still, the world of ecocorporeity. This means overcoming the situation of subalternity or mediator in order to seek for autonomy.
    Keywords: Corporeity. Complexity. Physical Education  

Resumen
    La tradición de la cultura occidental presenta como fuerte tendencia dar valor secundario al cuerpo. En esa perspectiva, las actividades de Educación Física, en un primer instante, pueden ser vistas como una especie de camisa de fuerza; en un segundo segmento, ya en cuanto asignatura escolar, una mediadora de objetivos más nobles. Pensar las actividades de Educación Física teniendo como referencia la perspectiva de la complejidad significa abandonar la dualidad cuerpo-alma e insertarse en el mundo de la corporeidad, o mejor, en el mundo de la ecocorporeidad. Eso significa superar la situación de subalternidad o de mediadora para buscar la autonomía.
    Palabras Clave: Corporeidad. Complejidad. Educación Física
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 74 - Julio de 2004

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Mens sana in corpore sano

    Nossa herança cultural tem como fundamento mais forte a cultura grega, mais especificamente as idéias de Platão e Aristóteles, formadores do pensamento cristão e de toda civilização chamada "ocidental". A vida na Grécia pode não ter sido o retrato desses pensadores, mas o que sobreviveu para a formação de nossa cultura foi o imaginário materializado em seus escritos.

    A antropologia basilar de nossa tradição é a que estabelece a preexistência da alma e sua imortalidade. Diz Platão, no Fedro:

Partiremos do seguinte princípio: toda a alma é imortal, porque aquilo que se move a si mesmo é imortal... Sendo o princípio coisa que não se formou, deve ser também, evidentemente, coisa que não que não pode ser destruída... Uma vez posto que o que se move a si mesmo é imortal, ninguém poderá deixar de reconhecer que precisamente é essa a essência da alma. Todo corpo movido de fora é inanimado e tudo o que se move de dentro, por si mesmo é animado, de maneira que é esta a natureza da alma. (PLATÃO, p. 151)

    Essa concepção forjou uma das pedagogias (teoria de como acontece o processo educativo) mais antigas, a maiêutica socrática, a teoria das reminiscências. (Mênon e Fedro) A maiêutica é a arte de educar refutando idéias falsas para trazer à luz, parir, as verdades, tais como elas são. As verdades são eternas tais como a alma, que já as contemplou antes de ter caído na prisão do corpo. "A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea. O divino é belo, sábio e bom" (PLATÃO, p. 152). A maiêutica é a pedagogia da alma, onde o corpo aparece como obstáculo e como cárcere.

Iniciados nos Mistérios a que podemos chamar de divinos, nós os celebrávamos puros e livres, isentos das imperfeições que nos atingiram no curso ulterior do tempo. A integridade, a simplicidade, a imobilidade, a felicidade eram as aparições que a iniciação revelava ao nosso olhar no meio de uma pura e clara luz. Não tínhamos mácula nem tampouco contato com este sepulcro que é o nosso corpo ao qual estávamos ligados como a ostra à sua concha. (PLATÃO, p. 155)

    Na República Platão afirma que a ginástica tem como objetivo o aperfeiçoamento da alma. "A ginástica domina a impetuosidade inata no homem, transformando-a em valentia que se torna virtude da alma" (SANTIN, 1987, 24). Nessa perspectiva antiga, não é difícil perceber a inexistência de espaço para uma educação física. O que seria viável é a abertura para um condicionamento físico com o objetivo de renunciar aos seus impulsos animalescos em favor de algo mais elevado.

    As autoridades eclesiásticas da Idade Média penitenciavam os corpos rebeldes para domesticá-los e os corpos disciplinados para que não cedessem às tentações. É possível que não agissem por maldade. Agiam movidos por visão antropológica platônica, batizada por Santo Agostinho; agiam para salvar almas. Não é estranho que os religiosos, ainda ligados ao medievalismo, usem roupas que permitam esconder o corpo. Talvez por isso só conheçamos os rostos dos santos e santas. E mais, quase todas as imagens de corpos santificados aparecem vinculadas à idéia de sofrimento (com o perdão dos católicos, Cristo crucificado, São Francisco de Assis). Os rituais de atear fogo nos corpos pecadores e hereges para purificar a alma, recurso largamente utilizado pela Santa Inquisição, é forte indicador da visão de corpo predominante naquele período.


O homem é a medida de todas as coisas

    A modernidade instaura a época da desacralização na natureza. O corpo pode ser estudado, manipulado. A partir de então, iniciamos o tempo das técnicas de interferência. Mas o dualismo não foi superado. O cartesianismo manteve a contraposição antropológica privilegiando o pensamento em detrimento do corpóreo. Nessa tradição, temos o auge do movimento iluminista cristalizando o conceito de que o homem é um ser racional.

    A modernidade inaugura o tempo da fragmentação: a fragmentação do conhecimento e da vida. Como viviam as comunidades até o evento da modernidade? Viviam em comunidade, numa visão orgânica de interdependência entre as pessoas e com a natureza, regidos por fenômenos e necessidades espirituais e materiais; logo, a idéia de indivíduo era incipiente. O primordial era o comunitário subordinado à autoridade.

    A linguagem instaurada pela revolução científica, tendo Galileu como pensador destacado, foi a da matemática. Os objetivos científicos são o da medição e o da quantificação. A visão orgânica perde força para o conhecimento preciso do fragmento. O pensamento certo e evidente de Descarte

consiste em decompor pensamentos e problemas em suas partes componentes e em dispô-las em sua ordem lógica... a excessiva ênfase dada ao método cartesiano levou à fragmentação característica do nosso pensamento em geral e das nossas disciplinas acadêmicas, e levou à atitude generalizada de reducionismo na ciência - a crença em que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às partes constituintes. (CAPRA, 1994, 55)

    O homem, caracterizando-se pela racionalidade, a natureza secularizada, a ciência experimental, as técnicas de intervenção na realidade, enfim, a máxima de Protágoras se realiza: "O Homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são, que são, daquelas que não são, que não são". O paradigma antropocêntrico é o novo olho, o novo ouvido, a nova consciência e a nova cegueira, surdez e inconsciência da espécie humana dominante. No dizer de Marx: "Dissolveram-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas;... Tudo que era sólido e estável se esfumaça, tudo que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com seriedade suas condições de existência e suas relações recíprocas" (MARX; ENGELS, s/d, 24.


O homem é livre

    A partir de então, temos o homem livre. Livre das repressões metafísicas e condicionado pela dominação social através do imaginário técnico científico. A repressão externa do corpo em geral, da sexualidade, especificamente, vai dando lugar à autodisciplina indispensável à era industrial.

Por outro lado, a superprodução capitalista tornou necessário flexibilizar a clássica e puritana ética do rendimento, para dar lugar a uma certa "capacidade de gozo", que permitia o consumo generalizado de objetos por toda a população, sem angústia nem remorsos. ... mas isso foi devido às exigências de um sistema econômico, que precisa de um consumidor inquieto e insatisfeito, perpetuamente amigo do prazer ou, pelo menos, curioso. (DURO, 1980, 134)

    Não há mais lugar para as coerções violentas e físicas. Os tempos modernos inauguram as políticas do corpo, da busca de prazer, motor da sociedade de consumo, com regulações discursivas, especialmente, na área da saúde. O homem é livre para trabalhar, consumir e usar de seu corpo de modo politicamente correto, isto é, cientificamente correto

    MARCHA SOLDADO CABEÇA DE PAPEL, CABEÇA de papel, cabeça de papel...

    A educação física, historicamente, nunca teve o status da matemática, da história, das ciências etc. na educação. Ela desempenhou uma função mediadora dos ideais pedagógicos e político-sociais.

    Educar o físico é disciplinar nossos instintos e impulsos. Poderíamos supor que esses objetivos coexistem com as propostas de atividades físicas antes de existir, propriamente, uma educação física. Lembremos a Grécia, os mosteiros medievais e as ideologias militaristas e patrióticas cristalizadas nas duas grandes guerras do século XX. Mas é com o surgimento da escola como instituição social para todos, com seus princípios teóricos, denominados de "pedagogia tradicional", que este objetivo da educação física ganhou espaço na vida escolar.

    A disciplina rígida promovida pela pedagogia tradicional diferencia-se da idéia de superioridade da alma, do espírito e da razão sobre o corpo. Nova antropologia coloca-se como fundamento. A alma boa desaparece. Temos um humano, como um todo, igualmente desumano. O homem nasce selvagem, ou uma tabula rasa, e deve ser disciplinado, por que não, domesticado. A sociedade, por meio de suas instituições, deve humanizá-lo. Este é o papel de todo o professor: ministrar sua matéria e a disciplina. Mas, para a educação física, a disciplina passa a ser a sua matéria. Os exercícios físicos são mecanismos didáticos metodológicos para que a educação física realize sua tarefa através de movimentos mecânicos inibidores da criatividade.

    O condicionante político-social, tendo como base o século XIX, estava ligado também à preocupação com as grandes epidemias, com atividades que melhorassem o cuidado com as pestes. Surgiu, então, uma educação física higienista, cujo objetivo e matéria era a saúde, saúde pública. As atividades físicas propostas eram meios, não os fins da educação física.

    Com o surgimento de uma escola nova, diametralmente contrária à escola tradicional, encontramos a educação física assentada sobre outra base antropológica: o homem nasce bom e deverá desenvolver-se a partir de sua natureza individual. Não cabe mais à educação moldar as crianças. Com esse imaginário, a pedagogia criou o jardim da infância. A escola é jardim; o professor, jardineiro e o aluno, uma semente. Cabe à escola e ao professor criarem condições materiais e psicológicas para que o aluno-semente desenvolva sua essência, suas potencialidades.

    Com a concepção inatista, o professor de educação física abandona a tarefa pedagógica da disciplina e da mecanização de exercícios e insere-se na didática do espontâneo. Não tendo um objeto específico, cabe à educação física auxiliar as outras disciplinas. Se o objetivo é o de criar condições favoráveis para a criança desenvolver suas potencialidades, a educação física vai se organizar a partir dos interesses dos alunos. São eles que estabelecerão o conteúdo da educação física.

    Ainda na perspectiva inatista, a educação física insere-se na visão romântica dos Jogos Olímpicos. Reativados em 1986, trazem o ideal grego de que os atletas tinham almas privilegiadas pelos deuses. Decorre daí serem os festivais gregos realizados em honra a Zeus e a outros deuses do Olimpo (montanha mais alta da Grécia, morada dos deuses). Cabe à educação física ajudar essas crianças especiais a se tornarem aquilo para o qual nasceram. A educação física reforça as idéias classistas que se inserem no contexto social de modo naturalizado. Uns têm privilégios sociais, são melhores que outros por força, ou vontade da natureza.

    A educação física extrapolou o mundo escolar e está inserida em diversas atividades segundo objetivos que a sociedade cria. Além das atividades militares, de prevenção à saúde, do esporte, das competições, pode trabalhar, ainda, como mediadora do recreacionismo e das modelagens do corpo.


Novos paradigmas da educação física

    Para viabilizar um pensamento complexo sobre uma educação física, precisamos, de início, reconhecer que os fundamentos ontológico, antropológico e epistemológico basilares entraram em crise e já não dão mais conta das novas realidades e exigências provocadas pela articulação de saberes. Essa crise de fundamentos é distinta das demais. Não há uma simples substituição dos princípios que governam nossa lógica. Temos de conviver com vários princípios, conscientes ou não, com a certeza, o simples, o fragmento e, também, com a indeterminação, com a abrangência, com sistemas, isto é, temos de viver com a complexidade.

    O paradigma da complexidade inviabiliza uma leitura da realidade objetiva, nos moldes da ciência clássica. Essa realidade inclui nossa visão sobre ela e os paradigmas possibilitadores dessa visão. Por isso, antes de falar sobre a educação física, precisamos falar sobre os paradigmas organizadores de nosso conhecimento.

    Para pensar a complexidade temos de, inicialmente, nos diferenciarmos do "paradigma da simplificação, do império dos princípios de disjunção, de redução e de abstração" (Morin, 1991, 15).


Corporeidade

    Por que corporeidade? O corpo comporta, historicamente, um imaginário do disjuntivo e do fragmento. E, o que é pior, da parte menos valorizada. Diferentemente dos atributos espirituais, das abstrações tidos como verdadeiramente humanos. "O corpo é concebido como uma entidade somática fechada, que só revela o tratamento químico" (MORIN e MOIGNE, 2001, 93). Mas quando falamos de corporeidade não é mais possível entendê-la como constituída de elementos químicos. A partir da corporeidade, os elementos químicos cedem lugar à compreensão das reações químicas entre esses seus componentes.

    Entender a corporeidade é, também, distanciar-se do paradigma natural-essencialista e inserir-se no paradigma social-existencial. A construção da corporeidade só é possível pela estimulação sócioecossistema. É preciso reconhecê-la na sua inserção com a corporeidade cultural lingüístico-ecossistêmica.

    A educação física, tradicionalmente, segue a linha do racionalismo instrumental, trabalhando com o corpo e a mente, ou melhor, com o corpo e a mente fragmentados, o que impossibilita a percepção e as implicações práticas e teóricas da corporeidade.


Transdiscisplinaridade

    Para pensar na autonomia da educação física, precisamos abandonar a idéia de isolamento e pensá-la numa relação transdisciplinar exigente da interligação de saberes.

    A complexidade é a união do objeto específico na interligação dos demais saberes, diferenciando-se das definições reducionistas, que só percebem o objeto de sua disciplina, e dos holistas, que só vêem o todo. "A complexidade encontra-se justamente no âmago da relação entre o simples e o complexo porque uma tal relação é ao mesmo tempo antagônica e complementar" (MORIN, 1991: 125).

    O objetivo é que a educação física se realize numa rede de relações. É na transdisciplinaridade que estabelece seu campo de conhecimento e prática específicos e que, igualmente, se interligará com outras disciplinas, especialmente aquelas mais próximas. Na complexidade abandona-se o monopólio do saber sem abandonar sua área de saber. A articulação dos saberes só será frutífera se as áreas de saber forem fecundas. É na transdisciplinaridade que se discutem e se constituem conhecimentos que são comuns e conhecimentos incomuns em relação de cooperação e antagonismos.

    Diferentemente da interdisciplinaridade, que permanece no conhecimento proximal, a transdisciplinaridade realiza a interdisciplinaridade e a ultrapassa, gerando também desordens ao promover a relação de diferentes e até opostos. A transdisciplinaridade não se contenta com que cada área do conhecimento fale alguma coisa sobre algum objeto. É preciso, também, falar sobre a fala do outro; transpassar e ser transpassado pelo outro. Nas abordagens interdisciplinares, as disciplinas manifestam-se sobre a mesma temática, mas continuam sem se interpenetrar. Da "transa" das disciplinas pode se gerar algo novo, algo que, pelo andar paralelo das atividades interdisciplinares e pelo isolamento exigido pela pedagogia tradicional, não é possível. Da transa das disciplinas pode gerar crise e "só num momento de crise se pode falar realmente de criatividade científica" (PRIGOGINE, 1996: 39).

    A educação física transdisciplinar é atividade aberta. Aberta em sua prática e em sua concepção. Quando mais aberta, maiores são as possibilidades de interação com outros campos do conhecimento.Aberta também significa a possibilidade de ultrapassá-los e de estabelecer diálogo com a cultura, com a sociedade e com referenciais emergentes. É na complexidade da transdisciplinaridade que uma disciplina poderá ser questionada, sofrer desorganização, que é condição para nova reorganização. Uma das diferenças da transdisciplinaridade para com a interdisciplinaridade é que esta pode acontecer sem nenhum abalo à ordem das disciplinas; já a transdisciplinaridade deseja provocar a discussão em vários horizontes e, sobretudo, extrapolar os tradicionalmente considerados como pertinentes à educação física. A transdisciplinaridade não pretende anular a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade, a polidisciplinaridade; pretende, sim, realizá-las e transpassá-las. A transdisciplinaridade está menos para a intradisciplinaridade e mais para a extradisciplinaridade.

    Para viver a transdiciplinaridade faz-se necessário pular os muros da escola e aqueles que aprisionam nosso modo de ser e de conhecer.

É necessária uma inversão sensorial para ressignificar a vida diária, para aceder, como nos grandes ritos iniciáticos, a uma alteração do estado de consciência que nos obrigue a deslocar as fronteiras dentro das quais foi aprisionado nosso sistema de conhecimento. (RESTREPO, 1995: 79)

    A transdisciplinaridade rompe com a lógica linear, da relação de causa e efeito, por conter o princípio de retroação pelo qual os efeitos que uma área do conhecimento sofre reorganiza-se e volta sobre sua própria causa. Os efeitos transformam-se em causa e, isto é, as causas se tornam feitos dos próprios efeitos.

Hoje não há mais problemas que não sejam complexos e não há mais lugar para a sabedoria que não se abra para a pluralidade. Mas, dentro dessa complexidade, todos eles têm uma dimensão humana, apresentando, portanto, implícita, a qualidade de vida que deles decorre. (GRECO, 1994: 27-28)

    A complexidade da corporeidade remete-nos a uma prática que se apresenta numa relação intrincada de fios que se entrecruzam numa teia, isto é, o conhecimento em rede. Essa prática não só ultrapassa fronteiras de nosso saber específico como desequilibra nossa segurança.

    Que tipo de prática a educação física pode produzir quando supera a linearidade pré-programada da pedagogia tradicional? Quando abandona as práticas adaptativas e se insere no interminável mundo de mudanças que sinalizam um horizonte aberto?

    Superar a pedagogia praticada pela educação tradicional e superar os fundamentos da ciência clássica de dividir e de fragmentar parece ser um dos desafios que precisam ser superados caso queiramos, de fato, nos aproximar de uma educação do homem como unidade.

    O conhecimento hoje não deixa de ser especializado, mas isso não quer dizer isolado. A especialização continuará importante, mas sua relevância está na sua capacidade de atualizar-se continuamente interligada e interquestionada com outros saberes.

    Claro que essa proposta de pensamento complexo é fruto de um esforço em articular saberes dispersos, diversos e adversos. Mas a própria idéia de complexidade conduz a uma impossibilidade de unificar, uma vez que parte da incerteza admite o reconhecimento cara a cara com o indizível. A complexidade não é uma receita que se dá, é apenas um convite para a civilização das idéias.


A pedagogia da educação física

    A educação física realiza práticas complexas de aprendizado, talvez mais complexa, por acontecer no contexto da corporeidade. Suas atividades implicam e exigem articulações das mais diversas que compõem as características de nossa espécie.

    Uma atividade lúdica, por mais simples que possa parecer, está impregnada de complexidade pedagógica e antropológica, consequentemente. Nela aprendemos a criar hipóteses, penetramos no mundo das linguagens múltiplas, interpretamos os gestos, o sentido digital e analógico das falas e aprendemos também a interpretar o silêncio.

    A ludicidade cria imagens que constróem, que criam uma fantástica reserva de emoções e razões que se abrem para o mundo. A aprendizagem do brincar permanece para sempre em nossa mente, como fiéis companheiros que nos convidam a encarar os aspectos de ordem e desordem do mundo de modo a reorganizá-los; a perceber a realidade de forma menos determinista; a descrer da objetividade absoluta; a usufruir a criatividade e a sabedoria como aspectos interdependentes do humano.

    Um jogo, uma modalidade esportiva, traz a complexidade das relações, das disputas e da solidariedade, os aspectos individuais e o aprendizado da participação em equipe e as práticas de convivência. Nenhum tipo de jogo funciona sem exigir um mínimo de criatividade, que é esse algo mais que resiste aos comandos da razão fechada e às regulações das experiências da repetição prosaicas, equilibradas demais.

E penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e com os pés
E com o nariz e com a boca. (PESSOA, 1974, 212)


Referências

  • CAPRA, Fritgof. O ponto de mutação. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo. Cultrix, 1994.

  • DURO, Enrique Gonzales. A dialética do prazer. In Encontro com a civilização brasileira. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, maio de 1980, n 23.

  • GRECO, Milton. A crise dos paradigmas, rigor científico e novos desafios. In: MEDINA, Cremilda, GRECO, Milton (Org.). Saber plural: o discurso fragmentalista da ciência e a crise dos paradigmas. São Paulo: ECA/USP, 1994.

  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo. Alfa-Omega, [s.d]

  • MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Dulce Matos. Lisboa, 1991.

  • MORIN, Edgar; MOIGNE, Jean-Louis Le. A inteligência da complexidade. Trad. Nurimar Maria Falci. São Paulo. Peirópolis, 2001.

  • PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974.

  • PLATÃO. Diálogos - Mênon, Banquete, Fedro. Rio de Janeiro. Ediouro, [s.d]

  • PRIGOGINE, Ilya. O Fim da ciência? In SCHNITMAN, Dora Fried. Novos Paradigmas, cultura e subjetividade. Trad. Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre. Artes Médicas, 1996.

  • RESTREPO, Luis Carlos. El derecho a la ternura. Bogotá: Arango Editores, 1995.

  • SANTIN, Silvino. Educação física, uma abordagem filosófica da corporeidade. Ijuí: Unijuí, 1987.

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