efdeportes.com

Modernidade, corpo e futebol: uma análise sociológica
da produção social do jogador de futebol no Brasil
Francisco Xavier Freire Rodrigues

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 57 - Febrero de 2003

3 / 3


    O treinador Guto Ferreira trouxe para o SC Internacional outros métodos de treinamentos utilizados no basquete que havia adotado quando trabalhava no São Paulo Futebol Clube. É evidente a influência de Telê Santana e Medina no trabalho de Guto. Por exemplo, o uso de viseiras no rosto dos atletas com a finalidade de impedir que os mesmos olhassem para o chão. Esta técnica era comum nos treinos da equipe feminina de basquete do BCN de Piracicaba - SP. Segundo Guto, esta técnica tem o propósito de melhorar o controle de bola, sem necessidade do jogador olhar para o chão, dando, conseqüentemente mais velocidade ao time e dinâmica ao jogo.

    Segundo Corrêa (Zero Hora, 17/05/1997, p.06), estas formas de treinamento significa a implantação de modelos de treinamento para desenvolver os fundamentos do futebol nas categorias de base, sendo mais um passo na consolidação do futebol científico no Beira-Rio. Neste sentido, “A idéia de utilizar viseiras entre os garotos faz parte da reformulação nos métodos de formação de jogadores no Estádio Beira-Rio. Chefiados pelo Coordenador João Paulo Medina, os treinadores das categorias inferiores procuraram desde o início do ano novas técnicas pedagógicas para o desenvolviemnto de fundamentos como o passe, o lançamento e o chute a gol” (Zero Hora, 17/05/1997, p.06).

    A necessidade de modernizar o treinamento está em consonância com a produção social de um jogador de futebol moderno, para preencher as demandas criadas pelo futebol atual. Como afirmava Medina, “Temos que modernizar os treinos nas divisões de base”. Não é mais possível usarmos as mesmas técnicas de décadas atrás”(Zero Hora, 17/05/1997, p.06). Dentro desta nova perspectiva de formação de jogadores, orientada pela teoria globalista, a polivalência é um dos princípios norteadores. O coordenador Medina ressaltava que, nas categorias de base do Inter, o lateral que não souber cruzar, o centroavante que cabeceia mal e o meia que lança com defeitos estavam com os dias contados. Ao lateral, é ensinado defender e atacar, cruzar e marcar. Ao centroavante, é cobrado que faça gols de chutes e cabeceios, bem como até mesmo contribuir com o meio campo na marcação. Portanto, as funções se diversificaram no futebol moderno, especialmente no momento de competições acirradas e altamente comercializadas.

    Além das técnicas já referidas, adotou-se uma forma de adaptar o atleta, desde sua formação, à pressão da torcida adversária, na tentativa de internalizar e naturalizar esta pressão na consciência do atleta. Assim, ao estudar métodos de treinamento da seleção Rússia de vôlei masculino, que treinava ao som potente de alto-falantes com gravações de xingamentos e vaias de torcidas adversárias. Isso faz com que os jogadores se costumem ao barulho das vaias de torcidas, passando a encara-las com naturalidade. Tal técnica também foi adotada no SC Internacional, tendo bons resultados. 5.3. Manuais de conduta e a cartilha do jogador disciplinar

    De fato, pode-se afirmar que a cartilha do jogador-disciplinar assume um novo papel a partir dos anos 90, quando se estabelece uma fase punitiva no futebol brasileiro. Clubes importantes criaram modelos para disciplinar seus atletas, buscando construir um jogador adequando aos novos tempos do futebol moderno, competitivo, profissional e disciplinar. O São Paulo, criou um código de conduta, o Flamengo prima pela disciplina, o Palmeiras é linha-dura. Não O futebol-empresa fundamenta-se no modelo de empresa-militarizada. A busca pela disciplina parece ir de encontro à profissionalização do futebol, onde um ascetismo profissional é cada vez mais reivindicado. Neste processo, não só o trabalho, mas a vida do atleta é gerida pelo clube (Florenzano, 1998:168).

    O São Paulo adota a cartilha de conduta para normalizar o comportamento de seus jogadores. Até mesmo técnico como Telê Santana passa a optar pela Cartilha disciplinar. O técnico afirmava que “Os jogadores serão mais cobrados. Serão tratados como verdadeiros profissionais, como em uma empresa” (Folha de São Paulo, 09/01/1996, Esportes, p.1). A cartilha disciplinar do São Paulo versa que “[...] o jogador do São Paulo está proibido de praticar atividades esportivas que não seja o futebol; é proibido jogar cartas ou qualquer jogo de azar dentro das instalações do clube; é proibido freqüentar boates e dancings nas horas de folga; é proibido comer na sala de televisão; é proibido entrar no CCT depois da meia-noite; é proibida a prática de cultos religiosos no clube; o atleta do São Paulo não pode ingerir bebidas alcoólicas” (Diário Popular, 09/01/1996, Esportes, p.1). De fato, esta cartilha indica o nível de controle e disciplina que o clube mantém sobre os jogadores, algo que transcende ao futebol, interferindo diretamente na vida pessoal. Na linguagem de Foucault (1987:159), este poder seria instrumento de disciplinação, algo no sentido de sanção normalizadora, ou seja, “[...] entendida como um conjunto de procedimentos punitivos relacionados a uma infinidade de pequenas atitudes e comportamentos (e que) incide sobre um espaço deixado pelas leis”. São parte do sistema disciplinar do novo futebol, no qual os gestos, falas, comportamentos, corpo, atitudes são objetos controlados e passíveis de punição5.

    No caso do palmeiras, o técnico Luxemburgo adota linha dura em 1996, afirmando que os atletas deverão sacrificar a vida pessoal e entrar na filosofia do clube.

    No Corinthians, a cartilha defendia que o atleta não podia beber nem fumar, uso obrigatoriamente o uniforme de viagem, e sempre que atrasar em treinos e viagens haverá punições. Haveria ainda punição para o atleta que recebesse cartão amarelo por reclamação ao arbitro, podendo até ser multado.

    O poder investido sobre o atleta brasileiro nos anos 90 tinha como objetivo fabricar um novo trabalhador, enquadrar nossos atletas no modelo de futebol moderno, internalizar novos comportamentos, dentro de doutrinas produtivas ao clube6. O futebol moderno, modelo empresa parece em nome do profissionalismo buscar o controle da vida do atleta, dentro e fora dos gramados.


6. Considerações finais

    No futebol moderno basicamente tudo é ensinado, exceção do talento, que é algo natural, porém aperfeiçoado por meio de treinamentos.

    Com o fim da várzea, devido ao crescimento urbano acentuado, a escolinha de futebol ganha relevo especial. O aprendizado do futebol deslocou-se para as escolinhas dos clubes, é nas divisões de base dos clubes profissionais que ocorre o processo de ensino de futebol, e consequemente a profissionalização. Nelas, tudo se ensina, as técnicas, as regras, as condutas, a preparação e o uso do material.

    Podemos sintetizar o que foi exposto acima da seguinte forma: (1) O futebol surge no Brasil como um produto da modernidade. Seu desenvolvimento segue a dinâmica similar aos demais setores da sociedade, onde a modernização implica na intervenção da ciência; (2) O controle social, os treinamentos e a repressão os mecanismos principais no disciplinamento na formação do atleta; (3) O dom, o sonho em enriquecer, o incentivo da família e a seleção brasileira são a motivação pelo futebol.

    A produção social do jogador de futebol, especialmente com o advento dos CTs, decorrente da recente modernização, consiste num processo de disciplinamento, adaptação, socialização, adestramento, desenvolvimento e aperfeiçoamento das potencialidades físicas e técnicas do atleta, além da administração do seu potencial genético. Trata-se de um processo disciplinador, pedagógico e civilizatório caracterizado pela regulamentação, controle, institucionalização e racionalização. O jogador de futebol é uma força de trabalho produto do disciplinamento, treinamentos físicos, técnicos e táticos e do desenvolvimento de suas capacidades genéticas.


Notas

  1. O Sc Internacional, fundado em 1909, tem sua sede em Porto Alegre (RS), é um time da Primeira Divisão dos Campeonatos Brasileiro e Gaúcho. É tri-campeão brasileiro (1975, 1976 e 1979) e campeão de uma Copa do Brasil (1992).

  2. A “Democracia Corinthiana” surgiu numa disputa eleitoral para eleger diretores do clube em 1983, momento anterior a à redemocratização brasileira. Os atletas desejavam participar da direção. Sobre este tema, consultar a dissertação de mestrado de SANTOS, L.T. Futebol empresa e a democracia corintiana, uma administração que dribling na crise. Campinas: Unicamp, 1990.

  3. CTs de agora em diante, utilizaremos esta sigla para referir aos Centros de Treinamentos.

  4. Os CTS favorecem a valorização da preparação física no futebol brasileiro promoveu maior reconhecimento e prestígio dentro do cenário futebolístico aos preparadores físicos, igualando-se até mesmo a determinados jogadores e técnicos. Um dos profissionais mais valorizados nesta área é Moraci Sant’Anna, que trabalhou com Telê Santana no São Paulo, onde foi bicampeão da Taça Libertadores e do Mundial Interclubes em 1992 e 1993. Trabalhou ainda com Carlos Alberto Parreira pela seleção brasileira na Copa do Mundo de 1994 onde campeão.

  5. Sobre punições aos gestos dos atletas, vale lembrar a punição aplicada ao jogador Belleti do São Paulo, em 25% de multa no salário por criticar o técnico do time em 1996, Carlos Alberto Parreira (Florenzano, 1998: 170-171).

  6. Neste sentido, é ilustrativo o fato de que Assim, “Luxemburgo prega disciplina. diz que o jogador de futebol brasileiro é mal-educado e que necessita se adaptar á nova realidade [...] O treinador palmeirense diz também que está sendo muito difícil doutrinar os atletas” (A Gazeta esportiva, 17/10/1996, p. 5).


Referências bibliográficas

  • ANTUNES, F. “O futebol nas Fábricas”. Revista USP, n. 22 (Dossiê Futebol), jun./jul./ago. São Paulo: USP, 1994.

  • BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectivas, 1999.

  • BOURDIEU, P. “Programa para Uma Sociologia do Esporte”. In: Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.

  • BRACHT, V. Sociologia Crítica do esporte: uma introdução. Vitória: UFES, 1997.

  • CALDAS, W. O Pontapé Inicial: Memória do Futebol Brasileiro. São Paulo: IBRASA, 1990.

  • CARRAVETTA, É. O Jogador de Futebol: Técnicas, Treinamento e Rendimento. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2001.

  • CASTRO, R. Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

  • ELIAS, N. & DUNNING, E. A busca de excitação. Lisboa: Difel, 1992.

  • FILHO, M. O Negro no Futebol Brasileiro. São Paulo: Civilização Brasileira, 1964.

  • FLORENZANO, J.P. Afonsinho e Edmundo: a rebeldia no futebol brasileiro. São Paulo: Editora Musa, 1998.

  • FREYRE, G. “Futebol brasileiro e dança” In FREYRE, Gilberto. Seleta para jovens. Rio de Janeiro: Editora José Olympio,1971.

  • FREYRE, G. “Introdução”. In: FILHO, Mário. O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964.

  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

  • ___________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

  • GIDDENS, A As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

  • GUEDES, Simoni Lahud. O Brasil no campo de futebol: estudos antroplógicos sobre os significados do futebol brasileiro. Rio de Janeiro: EDUFF, 1998.

  • HARVEY, D. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Editora Loyola, 1992.

  • HELAL, Ronaldo. Passes e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

  • HELAL, R. O Que é Sociologia do Esporte. Brasiliense, São Paulo, 1990 (Coleção Primeiros Passos).

  • LACLAU, E. New Reflections on the Resolution of our Time. Londres: Verso, 1990.

  • LEVER, J. A loucura do futebol. Rio de Janeiro: Record, 1983.

  • MACHADO, R. “Por uma genealogia do poder”. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 16. ed. Rio de Janeiro: Editora Graal, 2001.

  • MELANI, R. “Futebol e Razão Utilitária”. In: Futebol: Espetáculo do Século. São Paulo: editora Musa, 1999.

  • LEVINE, R. “O caso do futebol brasileiro”. In: WITTER, José S. (org.). Futebol e Cultura. São Paulo: Convênio Imesp/Daesp, 1982.

  • LOPES, J. S. L. “Futebol Mestiço”. Ciência Hoje, SBPC, v.24, n. 139, junho 1998.

  • LOPES, J.S.L. “A Vitória do Futebol que Incorporou a Pelada”. In: Revsta USP, n. 22 (Dossiê Futebol), jun./jul./ago. São Paulo: USP, 1994.

  • LOPES, J. S. L. & FAGUER, Jean-Pierre. “I’Invention du Style Brésilien:sport, journalism et politique au Brésil”. Actes de la Recherche Sciences Sociales, École de Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 103, jun/1994, pp.27-35.

  • LOPES, J. S.L. “A morte da alegria do povo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 20, 1992.

  • MOURA, G. de A. O Rio corre para o Maracanã. Rio de janeiro: Editora da FGV, 1998.

  • OSTERMANN, R.C. Meu coração é vermelho. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999.

  • PIMENTA, Carlos Alberto Máximo. “Novos Processos de Formação de Jogadores de Futebol e fenômeno das ‘escolinhas’: uma análise crítica do possível”. Peligro de Gol: estúdios sobre deporte y sociedad em América Latina. ALABARCES, Pablo (compilador). Colección Grupos de Trabajo de CLACSO, Grupo de Trabajo: Deporte y Sociedad, Buenos Aires: CLACSO, abril del 2000.

  • Revista Placar, n.1191, Editora Abril, 07/08/2001.

  • RODRIGUES, F. X. F. “A formação do jogador de futebol no Sport Club Internacional (1997-2001): um estudo de caso”. Projeto de Pesquisa apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFRGS, 2001.

  • ROSENFELD, A Negro, macumba e futebol. São Paulo: Edusp/Perspectiva, 1993.

  • TOLEDO, L.H. Lógicas no Futebol. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2002.

  • WEBER, M. Ciência e Política: duas Vocações. São Paulo: Editora Cultrix, 1968.


Jornais

  • Gazeta Esportiva - 16/11/1986 e 23/01/1997.

  • O Globo - 20/02/1996. Esportes.

  • Zero Hora - 17/05/1997. Cadernos de Esportes.

  • Folha de São Paulo - 09/01/1996. Esportes.

  • Diário Popular - 09/01/1996.


| Inicio |

Outro artigos sobre Estudios Sociales
em Portugués

  www.efdeportes.com/
http://www.efdeportes.com/ · FreeFind
   

revista digital · Año 8 · N° 57 | Buenos Aires, Febrero 2003  
© 1997-2003 Derechos reservados