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Futebol, globalização e identidade local no Brasil

   
Professor Adjunto - Departamento de Geografia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
 
 
Gilmar Mascarenhas de Jesus
gil@marlin.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
    Em um país jovem como o Brasil, poucas instituições são tão difundidas, duradouras e estáveis como o futebol. Entretanto, este vem atravessando uma conjuntura complexa e propícia a radicais transformações. No cerne desta instabilidade, está a tensão entre as forças “modernizadoras” do mercado e as da tradição cultural, confronto que a partir de uma abordagem geográfica pode ser tomado como entre o global e o local. O objetivo deste trabalho é, por um lado, demonstrar como o futebol brasileiro, por razões relacionadas ao território e sua dinâmica evolutiva, se estruturou a partir da base local, enquanto gestão e enquanto paixão popular. Por outro, examinar o confronto supracitado entre esta base identitária local e os poderosos interesses econômicos, que atuam no sentido de uma nova organização do futebol, ao valorizar as competições de caráter nacional e internacional em detrimento da tradicional escala local. Consideramos que o Brasil se distingue da grande maioria dos países praticantes de futebol, por sua ênfase na base local. Neste sentido, no estudo das profundas mudanças que atualmente se operam neste esporte em escala mundial, o Brasil apresenta-se como um laboratório particular e expressivo, da tensão existente entre as forças da globalização e as do lugar.

Ponencia presentada para el IV Encuentro Deporte y Ciencias Sociales, Buenos Aires, noviembre de 2002
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 57 - Febrero de 2003

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Introdução

    Embora o futebol possua reconhecidos atrativos próprios a justificar sua incontestável condição de world´s game, concordamos com Joan-Eugeni Sánchez (1992:295), para quem muitas vezes o êxito no processo de difusão de uma determinada inovação depende mais de sua procedência social e territorial do que de suas supostas vantagens intrínsecas. Em síntese, a supremacia mundial britânica no final do século XIX foi fundamental na propagação do futebol1. Neste sentido, sobre a difusão dos esportes modernos, Allen Guttmann (1994:173) percebe que trata-se basicamente de um fluxo no sentido centro-periferia. Não por acaso, Inglaterra e Estados Unidos (as potências imperiais dos séculos XIX e XX) são os únicos países cujos esportes principais não foram gestados no exterior: futebol, rugby e cricket entre ingleses, futebol americano, basquetebol e beisebol nos EUA. Estes são indícios da evidência de bases geográficas no fenômeno esportivo.

    vEm síntese, a grande extensão do Império Britânico propiciou a larga difusão da informação "futebol", mas acreditamos que seu efetiva adoção dependeu de fatores locais, de forma que somente uma abordagem geograficamente fundada pode dar conta dos diferentes ritmos de adoção desta inovação nas diversas regiões do mundo. No caso brasileiro, veremos como a configuração e a dinâmica territoriais engendraram um formato distinto de estruturação do futebol, formato este que se encontra hoje pressionado pelas forças do mercado. Um confronto entre a tradição e a modernidade, entre a identidade local e as tendências da globalização.

    O texto se divide em três segmentos. Inicialmente, apresentamos a singularidade do caso brasileiro na adoção do futebol, para a seguir demonstrar o peso desta singularidade (a força da base local, em confronto com as forças “modernizadoras” da globalização) na estruturação do futebol no país. Por fim, realizamos algumas reflexões sobre globalização e identidade local no futebol brasileiro.


I. Território e adoção do futebol no Brasil: um caso singular

    Le Havre na França, Gênova na Itália e Rotterdam na Holanda. Bilbao na Espanha e Bremen na Alemanha. Belém no Brasil, Callao no Peru e Valparaíso no Chile, sem citar os casos notórios de Montevideo e Buenos Aires. São inúmeros os exemplos de cidades portuárias que, a partir da exibição informal de marinheiros britânicos, tiveram contato precoce com o futebol, quase sempre antes de qualquer outra localidade em seus respectivos países. Sabemos portanto que tratar da difusão do futebol requer a verificação da presença inglesa, e sem dúvida o Brasil esteve envolvido nas malhas deste grande império do século XIX. A presença constante de suas embarcações, somada à implantação concomitante de ferrovias e diversos outros equipamentos em nosso território (exportação de capitais britânicos destinados ao setor de mercado interno), viabilizou relativo contato com diversas práticas sócio-culturais inglesas, dentre elas o futebol, conforme atestam inúmeros registros na historiografia2. Um exame mais acurado, todavia, permite perceber algumas peculiaridades no caso brasileiro.

    Em linhas gerais, disseminou-se a avaliação superficial de que o Brasil repete o clássico processo de introdução e difusão do futebol, isto é, aquele que penetra pelo porto principal para a seguir se espraiar pelo território3. Entretanto, a existência de vários portos distantes entre si e a dispersão espacial dos investimentos ingleses pelo território nacional conformaram um quadro peculiar, muito distinto daquele verificado em Argentina, Chile e Uruguai. Ao contrário aliás do que afirmou Janet Lever (1983:64), ao sugerir um modelo comum para a América do Sul, no Brasil não podemos localizar um único ponto no território a partir do qual o futebol, enquanto inovação, tenha se introduzido e se difundido espacialmente, embora reconheçamos a primazia paulistana no processo de adoção4. Verifica-se portanto um caso atípico, no qual o futebol penetra no território nacional quase simultaneamente por vários pontos desconectados entre si (mas conectados com o exterior), como incursões independentes no movimento conjunto da difusão 5

    As razões para esta particularidade residem na forma como o sistema colonial se organizou no território brasileiro, a partir de 1500, quando aqui aportaram caravelas de Portugal. A metrópole mercantil portuguesa, carente de recursos materiais e humanos diante de um território tão vasto (mais de 8,5 milhões de km2), apenas pode empreender nesta sua principal colônia de exploração incursões pontuais. A partir do tradicional modelo agro-exportador, desenvolveu algumas “ilhas” de produção primária a escoar por um dos diversos portos ao longo do extenso litoral brasileiro.

    No Brasil daquele apagar do século XIX, prevalecia efetivamente a herança do sistema colonial, no qual as diferentes regiões mantinham-se praticamente isoladas no plano interno (Santos, 1993). Tal configuração territorial, ainda baseada nestas “ilhas produtivas” do modelo agro-exportador (Geiger, 1963; Singer, 1974), não abrigava evidentemente a possibilidade de conformação de uma rede urbana integrada em escala nacional. Segundo Milton Santos (1993:26), “o Brasil foi, durante muitos séculos, um grande arquipélago formado por subespaços que evoluíam segundo lógicas próprias, ditadas em grande parte por sua relação com o mundo exterior”. Em síntese, quando o futebol inicia sua larga difusão planetária (1880-1900) encontra no Brasil um território fragmentado e com uma diminuta base urbana: menos de um décimo da população brasileira vive em cidades em 1900.

    Neste contexto de débeis conexões territoriais internas, Rio de Janeiro e São Paulo ainda não poderiam, portanto, exercer efetivamente o papel de metrópoles nacionais que hoje conhecemos6. Tal papel somente se evidenciou a partir de 1930, resultado dos esforços da política de integração do território nacional e do advento de novas formas de comunicação (como a radiodifusão) e da expansão da malha viária. Neste sentido, diversas localidades mantiveram-se em relativo isolamento em relação aos grandes centros urbanos nacionais, mantendo o tradicional localismo. No âmbito do futebol, tal situação propiciou o surgimento de rivalidades locais (clássicos). Ao mesmo tempo, as principais cidades seguiam mantendo relativo isolamento entre si, de forma que os principais confrontos futebolísticos se davam no nível intra-urbano, e não interurbano, como se pode notar comumente no caso europeu. Sobre o caráter local no futebol brasileiro dissertaremos a seguir.


II. O peso do lugar na estruturação do futebol brasileiro

    Enquanto geógrafos, insistimos que a difusão e estruturação do futebol, em cada país, obedece aos condicionantes da configuração e dinâmica do território. Na Espanha, por exemplo, o primeiro campeonato de futebol foi realizado em 1902, e reuniu seis clubes das três mais importantes cidades espanholas (Madrid, Barcelona e Bilbao), adquirindo pois desde o início um caráter nacional (Mascarenhas, 2001b). Na Itália, clubes de Genoa (porto introdutor do futebol) e Turim (importante centro industrial), organizaram o primeiro campeonato em 1898, incluindo dois anos mais tarde a cidade de Milano (Brera, 1975:20-8). Trata-se novamente de uma perspectiva nacional, de confronto entre importantes cidades. Na França, o campeonato se inicia em 1894, e após restringir-se aos clubes de Paris durante os primeiros cinco anos (Delaunay et al, 1982:20-9), tornou-se paulatinamente uma competição nacional. Países como Uruguai e Argentina, que mais ainda que a França apresentam um sistema urbano com elevado grau de primazia (Montevideo concentrava metade da população nacional), desde o início entenderam que suas competições futebolísticas, embora restritas a estas cidades, tinham um caráter nacional: no sentido figurado, a própria “nação” cabia dentro delas.

    No Brasil, como vimos, as razões do território imprimiram ao processo de adoção do futebol um outro arranjo, multipolarizado e de forte base local, de forma que transcorreram muitas décadas até que fosse possível um campeonato nacional. A seguir, apresentaremos uma sinopse da evolução de nossas competições futebolísticas até os dias atuais, para demonstrar o quanto o localismo tem sido persistente.

    Os primeiros campeonatos de futebol ocorreram no início do século XX, em São Paulo (1902) Bahia (1904) e Rio de Janeiro (1906), e embora fossem competições reunindo clubes de uma única cidade, autodenominavam-se “campeonatos estaduais” 7. Nos anos 20, a maioria dos estados brasileiros já possuía um campeonato de futebol, quase sempre concentrado na capital estadual, por falta de rede viária adequada, de mercado suficiente nas cidades menores ou de maior difusão do futebol no interior. Durante a primeira metade do século XX, foi este o panorama fragmentado do futebol brasileiro.

    Em 1950 se inicia uma pequena reação ao localismo vigente no futebol brasileiro. Inaugura-se um torneio regular entre os principais clubes de Rio de Janeiro e São Paulo. Trata-se porém das duas metrópoles nacionais, cuja proximidade física (450 km) aliada à tradicional rivalidade entre ambas (fenômeno anterior ao advento do futebol), permitem tal iniciativa. Todas as demais cidades brasileiras persistem com seus campeonatos de pequeno alcance espacial, com exceção de São Paulo e Rio Grande do Sul8.

    Em 1959 surge enfim uma competição de caráter nacional, a Taça Brasil. Entretanto, restrita aos clubes campeões de apenas alguns estados da federação, de forma a reduzir os custos de um evento ainda sem maiores atrativos para a sociedade, interessada basicamente nas rivalidades locais.

    Devemos realçar que o motivo fundamental desta iniciativa é totalmente externo ao universo do futebol brasileiro: ocupar as vagas anualmente oferecidas para a recém-criada (em 1960) Taça Libertadores da América.

    Em 1967, no bojo de uma conjuntura política repressiva, de plena manipulação do sentimento patriótico, o governo financia a construção de grandes estádios e promove um torneio que será o embrião do futuro campeonato nacional. São reunidos inicialmente 15 clubes, de cinco cidades concentradas no centro-sul, a região mais desenvolvida do Brasil. No ano seguinte são incorporados os dois clubes campeões que representam as duas mais importantes cidades do norte-nordeste do país. Finalmente, em 1971, no auge da ditadura militar (e por ela financiado, com seus elevados custos operacionais, face às imensas distancias físicas a serem percorridas pelos clubes) e no embalo da conquista definitiva da Taça Jules Rimet, surge o Campeonato Nacional, substituindo a Taça Brasil no papel de definir os participantes brasileiros na Taça Libertadores.

    A ditadura persistiu até 1984, e através de manobras político-partidárias muitas cidades e clubes de menor expressão ingressaram no campeonato, que chegou a reunir mais de noventa equipes. Um esquema economicamente insustentável, sobretudo numa década de modernização do futebol europeu (o italiano, principalmente), que promoveu um êxodo de talentos brasileiros para a Europa. Com estádios vazios e competições pouco lucrativas, em 1987 ocorreu a “primeira” grande reação de descontentamento por parte dos grandes clubes. Esta elite do futebol brasileiro criou o “Clube dos Treze”, que realizou um campeonato independente, à revelia da CBF, reunindo exclusivamente seus membros9.

    Em 1989, a extinta Taça Brasil “ressurge” como Copa do Brasil, seguindo o modelo europeu, de dois certames nacionais paralelos e de formatos distintos. O torneio começa timidamente, apenas reunindo os campeões e vice-campeões estaduais, a exemplo da antiga Taça Brasil, que existiu entre 1959 e 1968. A partir de 1996, porém, passa a convidar regularmente os grandes clubes, atendendo assim a demanda destes, desejosos de mais confrontos diretos entre si ou com outros importantes clubes sul-americanos10.

    A segunda metade da década de 90 vai apresentar uma série de mudanças na organização do futebol brasileiro, todas no sentido extra-local. No plano local, os campeonatos estaduais se esvaziam com medidas que liberam os grandes clubes das fases iniciais, para se dedicar às novas e mais lucrativas competições em escala regional, nacional e internacional, conforme veremos a seguir.

    Em 1997: o torneio Rio - São Paulo, desativado desde 1966, quando se esboçou o campeonato nacional, foi retomado, garantindo aos grandes clubes destas cidades confrontos lucrativos. O modelo será copiado em todo o país: a partir de 1999 e 2000, todas as cinco regiões terão campeonatos similares, reunindo apenas os clubes principais, gerando falência nos clubes pequenos. Estes certames definem os participantes da Copa dos Campeões, criada em 2000, uma espécie de campeonato nacional de curta duração, bem remunerado e que indica uma das vagas para a Taça Libertadores.

    Em 1998 surge a Copa Mercosul. O continente sul-americano passa a ter dois certames, sendo este último totalmente mercadológico, pois participa-se por convite, diretamente relacionado à rentabilidade de cada clube. Participam assim sempre os mesmos clubes, com raras exceções de troca por mérito técnico, ainda assim para renovar a atração do evento, mas sempre escolhendo clubes de grande torcida.

    Até mesmo a tradicional Taça Libertadores se modifica: a partir de 1999, países como Argentina e Brasil passam a ter pelo menos o dobro de vagas de seus vizinhos (até então, cada país sul-americano contava igualmente com duas vagas, independente de seu nível técnico) garantindo maior atrativo e rentabilidade à competição. Desde 1960, a Libertadores reunia 21 clubes, ampliando agora para 32 participantes, dentro do espírito comercial de expansão dos certames internacionais, valorizados pelas redes de TV11. A inédita inclusão de clubes mexicanos (país ligado à CONCACAF) também expressa o desejo de realizar um evento mais lucrativo, considerando o México com seu imenso mercado consumidor.


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