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Do amor grego à paixão nacional: masculinidade
homoeroticidade no futebol brasileiro

   
Antropólogo.
Mestrando em Psicologia Social
UFMG
 
 
Marcel Freitas
marleoni@yahoo.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
    Partindo do pressuposto interacionista de que os processos psicológicos de construção da identidade do sujeito (neste caso dos homens) são profundamente marcados pelo contexto sócio-cultural, procuramos compreender como a lógica de uma instituição social (o Futebol) que se manifesta num grupo social (as torcidas organizadas) interfere no processo social de construção da identidade masculina. Assim, acreditamos que a subjetivação dos homens está intimamente imbricada ao processo de socialização, e está marcada por ideologias coletivas de âmbito macrossocial, tais como a masculinidade hegemônica. Durante o trabalho será privilegiada a interdisciplinaridade, sendo que para isso buscaremos recursos teóricos da Sociologia, Ciência Política, Psicanálise e especialmente da Antropologia Cultural Americana que possam enriquecer a leitura da Psicologia Social sobre as relações de gênero e da construção da masculinidade neste universo esportivo.

Ponencia presentada en el IV Encuentro Deporte y Ciencias Sociales, Buenos Aires, noviembre de 2002
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 55 - Diciembre de 2002

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Introdução

    As indagações em torno dos vínculos homoeróticos de torcedores e jogadores entre si e uns com os outros surgiram motivadas uma pesquisa de Iniciação Científica que desenvolvemos a partir de entrevistas com homens bissexuais sobre as categorias ‘ativo’ e ‘passivo’ (FREITAS, 1997). Alguns afirmaram terem vivenciado interações de caráter sexualmente ambíguo neste espaço social, sendo que alguns entrevistados relataram experiências sexuais com outros torcedores em viagens de torcida organizada.

    Posteriormente começamos a perceber uma relativa freqüência de fotos e mensagens de duplo sentido1 na revista “Placar”, publicação voltada especificamente para este esporte. Também encontramos campanhas publicitárias na mesma revista que deixavam explícito algum grau de envolvimento afetivo dos torcedores com os jogadores. Em outra oportunidade lemos na revista “Sui Generis”2 publicada durante a Copa do Mundo de 1998 depoimentos de torcedores, jogadores e mesmo de juízes de Futebol referentes à existência de homossexuais naquele esporte e de práticas sexuais esporádicas entre pessoas daquele meio.

    Uma abordagem com esta perspectiva quanto ao Futebol se faz pertinente tendo em vista a escassez ou quase ausência de estudos que privilegiam a esfera sexual e as relações de gênero nos fenômenos esportivos. Deste modo, considerando que o Futebol no Brasil é um fenômeno social e que a sexualidade é um elemento inerente a todo Ser humano, temos nos perguntado por quais motivos este aspecto ainda não foi objeto de estudo científico. O homoerotismo é prática sócio-sexual-afetiva que permeia qualquer agrupamento e relação individual humana; organiza/desorganiza relações sociais e mesmo relações institucionais. Em outras palavras: tudo se passa, tanto para a mídia quanto para o senso comum ou para o meio acadêmico, como se os atores deste universo social fossem absolutamente assexuados. Chegamos a esta conclusão após realizarmos busca bibliográfica inicial, onde encontramos vasto material sobre Psicologia do Esporte (de enfoque behaviorista principalmente), sexualidade, homossexualidade, relações de gênero; entretanto, para nossa surpresa, poucos trabalhos articulavam estas temáticas, sendo que os que encontramos que falavam da homossexualidade em ambientes esportivos tratavam o assunto secundariamente.

    Cremos que uma das respostas para esta lacuna está no fato de que nenhuma ciência é neutra em relação à(s) ideologia(s) dominante(s) naquela sociedade em que é elaborada. Assim sendo, a obliteração do homoerotismo das análises acadêmicas é condizente com o ‘modelo’ de gênero que vigora na sociedade brasileira, que entre outras coisas, mitiga tudo aquilo que o questiona. Ressaltamos, no entanto, que tal comportamento de omissão do homoerotismo nos esportes não acontece (na maior parte dos casos talvez) de forma proposital e consciente, mas faz parte de uma inclinação androcêntrica3 e heterossexista que existe, em maior ou menor grau, em cada um de nós, ou seja, já ‘naturalizamos’ de tal maneira que o Futebol é esfera para ‘macho heterossexual’, que de certa forma não percebemos as nuanças que apontam para outras identidades e desejos ali presentes e que não se encaixam neste estereótipo.

    Não estamos a ‘exigir’ que todo e qualquer texto ou pesquisa que trate do Futebol necessariamente se debruce sobre a homoeroticidade, todavia, se negligenciar completamente a existência destes vínculos/práticas, nem sequer os mencionando, nos leva a supor que o(s) autor(es) tem como ‘normal’ a correlação entre ‘masculino’, ‘homens’ e ‘heterossexualidade’, e assim desqualifica todo homossexual enquanto ‘homem’ ou enquanto ‘masculino’ e também não questiona a distribuição desigual de poder/prestígio social baseada nas relações dicotômicas de gênero. Desta forma, um estudo desta natureza se tornaria importante na medida em que, partindo das representações do senso-comum, iria ultrapassá-lo, este é o papel da ciência, mostrando como que, também neste espaço social, a sexualidade e a afetividade entre homens se fazem presentes na construção de identidades masculinas. Através de uma análise de conteúdo superficial de material jornalístico bem como a partir do acesso a sites de torcidas organizadas de Belo Horizonte verificamos que a referência à sexualidade (homo) como forma de humilhar e denegrir o outro é uma constante.

    Mais do que ‘contabilizar’ a incidência ou a ‘freqüência’ destas práticas homossexuais se faz pertinente compreender que significados elas adquirem para as pessoas envolvidas diretamente neste esporte - neste caso os torcedores. Almejamos rechaçar o senso-comum para justificar a investigação, ou seja, apontar para o contrário do que se pensa comumente: que práticas homossexuais e vínculos homoeróticos fazem parte sim, dessa esfera social prevalentemente masculina.


Hipóteses

    Postulamos que o homoerotismo é uma característica típica e latente de sociedades patriarcais e falocêntricas, como a brasileira, visto que se apóia, psicológica e culturalmente, numa exacerbação de tudo aquilo que se vincula à figura do ‘macho’. Em outros termos, acreditamos que podemos encontrar difuso e inconsciente pela sociedade - não apenas no universo do Futebol - algum grau de homoerotismo masculino: este seria o aspecto ‘erótico’ da sobrevalorização do masculino em determinados tipos de sociedades (um exemplo irretorquível disso seria a cultura greco-romana; PAGLIA, 1993; DOVER, 1994). Seria como se o Desejo (na perspectiva psicológica e individual) fosse em alguma medida influenciado pelo político-cultural (falocentrismo). Nos termos da Psicanálise, tentaríamos entender este homoerotismo no Futebol como um investimento libidinal, da parte dos torcedores, nos jogadores e uns com os outros, já que eles culturalmente simbolizariam o masculino ao corporificarem esta prática social - Futebol - diretamente associada à masculinidade.

    Sándor FERÉNCZI (1990) sustenta que o narcisismo fálico está na estrutura da cultura ocidental, especialmente naquelas sociedades mais diretamente ligadas aos antigos greco-romanos: portugueses, espanhóis, italianos, árabes e todas as sociedades ao longo da bacia do Mar Mediterrâneo. Este narcisismo centrado no falo, na ‘virilidade’, nos aspectos psicofísicos ‘varonis’ enfim, seria um dos sustentáculos do machismo nestas culturas, bem como (e ao nível do consciente pode parecer paradoxal), do homoerotismo.

    No que se refere às relações intersubjetivas entre os homens e mais especificamente entre os torcedores, defendemos que o Futebol é um espaço onde a afetividade entre homens é admitida, diferentemente do que acontece no dia a dia. Assim, como no cotidiano dos homens não há um ‘meio termo’ entre suas interações físicas como há para as mulheres (aos homens heterossexuais só é permitido que se toquem para lutar ou no máximo para dar apertos de mão, enquanto que às mulheres heterossexuais são permitidos beijos, abraços, andar de braços dados, dançar) essa afabilidade masculina quando pode ser expressa se faz de forma efusiva, e o Futebol então pode ser encarado como um catalizador dessa afetividade ‘represada’.

    Também buscamos verificar se, diversamente da identidade feminina e da feminilidade em nossa cultura, a identidade dos homens e a masculinidade no modelo mediterrâneo se caracterizam pela ‘necessidade’ desse contraponto que é o homoerotismo para se definir. Assim sendo, tudo o que não se encaixa na masculinidade hegemônica - que segundo ALMEIDA (1996) se caracteriza pelo ser ativo nas relações sexuais (mais até do que ser heterossexual) e por apresentar certo grau de violência, dominação e hierarquização nas interações sociais - é englobado no binômio feminino/afeminado e de certa forma ‘serviria’ para definir e traçar o que é um ‘não-homem’, sendo que este bode-expiatório coletivo - a feminilidade na mulher ou em outro homem - ‘funcionaria’ como uma anti-norma, um modelo a ser recorrentemente rechaçado e que reafirmaria a masculinidade hegemônica.

    Apesar do fato de que nos apoiamos no construto de ‘masculinidade hegemônica’4 (conceito que posteriormente, ainda neste trabalho, desenvolveremos mais detalhadamente), não concebemos o sistema cultural de gênero em nossa sociedade como algo coerente, fechado e estático. Ao contrário disso: não utilizaremos a teoria das representações sociais justamente por este motivo, ou seja, porque defendemos que as práticas cotidianas dos sujeitos ultrapassam em demasia as nomenclaturas estereotipadas e as categorias identitárias estanques (homossexual, bissexual, homem, mulher). Como assegura Roberto DA MATTA (1985) a cultura (entendida de modo amplo, não só a brasileira) é produzida e produz as práticas cotidianas dos sujeitos, vai se transmutando se acordo com as ações individuais e coletivas.

    Um fato que ilustra nosso argumento são os sites dedicados aos times de Futebol elaborados pelas respectivas torcidas organizadas. Assim, nestes espaços online há um local onde os internautas podem deixar mensagens e a partir de inicial Análise do Conteúdo destas missivas percebemos que a repulsa, agressividade e violência para com os torcedores dos times rivais quase sempre se fazem acompanhar de adjetivos como ‘maria’, ‘viado’, ‘bicha’. Ou seja, a feminilização e o apassivamento do outro é recorrente. Em síntese, este outro feminino (Maria/gay) pode ser destruído-aniquilado-sodomizado como forma de ‘diversão’, sendo que numa interpretação simbólica bem generalizante do universo em questão, estas três ações representam praticamente a mesma coisa.


Futebol, Masculinidade e Feminilidade

    Entre os estudos nas áreas de Antropologia Cultural e de Psicologia Social - que privilegiam o ‘outro’ que está espacialmente perto de nós, todavia culturalmente pode estar tão distante quanto um polinésio - ainda são relativamente poucos aqueles que se dedicam ao Futebol. Assim, notamos que as investigações destas duas áreas se debruçam sobre a realidade coletiva que nos cerca e demonstram “(...) a importância do que parece, mas não é, rotineiro, familiar e conhecido” (GUEDES, 1977:4), mas ainda não contemplam de modo intensivo este fenômeno social. Ainda mais escassos são os estudos que se dedicam às relações de gênero no universo aqui considerado. Desta maneira, os dois pilares teóricos que apóiam este trabalho são diretamente oriundos dos chamados estudos ‘urbanos’, especificamente, as pesquisas referentes ao Futebol e aos esportes em geral e as pesquisas centradas no gênero.

    Comecemos nossa explanação teórica pelas controversas questões de gênero. Ao contrário do que se acredita comumente, alguém ter nascido ‘macho’ não implica necessariamente ser homem, nem ter nascido fêmea implica que aquela pessoa será uma mulher. Sexo diz respeito à biologia, enquanto que gênero se vincula a funções e identidades sócio-culturalmente construídas. Tais pressupostos entre outros foram amplamente enfatizados, sobretudo a partir dos estudos feministas nos anos 60. Desta forma “conceitos de gênero são interpretações culturais das diferenças de sexo” (STREY, 1998). No final da década de 60 e início dos anos 70 os movimentos organizados feministas se exigiram compreender e explicar a condição de subordinação da mulher. Ansiava-se por um paradigma novo, revolucionário, capaz de alterar a ordem sócio-cultural existente - as práticas cotidianas e os modos de pensar/conceber a realidade no tocante às interações homem-mulher.

    Inicialmente o conceito de gênero foi explorado principalmente pela Antropologia americana onde o feminismo então se fazia extremamente ativo. Naquela época o interesse fundamental era com a condição da mulher na sociedade ocidental: sua submissão, a violência que sofria, sua cultura. Desta forma, o masculino e principalmente as interações dinâmicas e dialéticas entre os dois gêneros não eram tão enfatizados. Contudo isso não deve ser entendido como uma negligência deliberada: a situação das mulheres de maneira tão intensa urgia ser mapeada que toda a produção acadêmica da época tinha um caráter decididamente político, de militância.

    Posteriormente com o aprimoramento da teoria e com o enriquecimento dos ‘estudos sobre as mulheres’ se passou a dar maior ênfase para as inter-relações entre os gêneros - masculino e feminino - especialmente na Antropologia e na Psicologia Social. Também na Economia, no Direito, na Demografia começou-se a enfatizar o aspecto interconstitutivo das identidades masculina e feminina. Desta maneira temos, hoje em dia, uma grande riqueza teórico-metodológica voltada para os estudos de gênero, com pesquisas que enfocam principalmente o masculino, outras o feminino, porém todos cientes das interpenetrações e do dinamismo entre as identidades e os comportamentos condizentes com tais identidades.

    Gênero é uma noção analítica utilizada nas ciências humanas e sociais que se refere à organização social das interações entre os sexos. Na verdade seria melhor se referir a ‘gênero’ enquanto uma abordagem, uma perspectiva com a qual se analisa as relações sociais e interpessoais ao invés de defini-lo como um conceito. O esforço das(os) teóricas(os) é evidenciar o caráter essencialmente social das distinções fundadas nas diferenças biológicas. Desta forma, gênero é uma noção que informa sobre a normatização acerca da feminilidade e da masculinidade, ressaltando o aspecto relacional e dialético das identidades, bem como a multiplicidade destas no dia a dia. Aponta também para a desigualdade de poder entre homens e mulheres, e pretende a instauração de novas formas de relações (cooperativas e de compartilhamento) entre os indivíduos diferentes biologicamente, mas plenamente equivalentes no que concerne à humanidade.

    Entendemos ‘Futebol’ como um ritual coletivo onde o culto a um determinado tipo de masculinidade hegemônica é reconhecível (HELAL, 1997). Neste sentido faremos uma leitura do Futebol como sendo uma metáfora de uma masculinidade tipicamente mediterrânea: neste modelo a exaltação do arrojo, do ser ‘ativo’, da sobreposição ao outro/a é a tônica. Salientamos que masculinidade deve ser entendida não como um aspecto a priori da personalidade individual ou um dado biológico, mas como um sistema de representações coletivas, atributos, práticas e atitudes cultural e historicamente localizáveis. Assim, visto como uma forma de expressão simbólica, as significações do jogo de Futebol ultrapassam sua prática efetiva - 90 minutos - sendo um espaço de interações entre pessoas prevalentemente do sexo masculino, locus por excelência da homossociabilidade5. Isto posto,

“(...) o Futebol é um instrumento de significação, esvaziado de seus aspectos próprios e preenchidos com significações outras, referentes à estrutura social como um todo” (GUEDES, 1977:1).

    Por outro lado, o espaço do Futebol, principalmente o das torcidas organizadas, funciona como a ‘casa dos homens’ descrita pelo antropólogo Maurice GODELIER (1977), ou seja, é um ambiente de homens para homens que constrói a masculinidade para aqueles que estão ‘entrando’ (através dos rituais de iniciação) e ao mesmo tempo reforça a masculinidade entre os membros ‘veteranos’. Este espaço viril exclui todos aqueles que se insurgem contra a ‘virilidade triunfante’ e a feminilidade em geral. Portanto, apreenderemos o Futebol não enquanto esporte (apenas), mas como um dos pilares organizadores das relações sociais, um codificador de condutas masculinas e instaurador de pautas de conversação, traçando regras de sociabilidade e fidelidade entre homens.

    Já Míriam M. LEITE (apud SMIGAY, 2001) assinala que no início do século XX há uma marcada diferenciação/sexuação dos esportes e práticas de lazer: às mulheres estimula-se a ginástica rítmica e o ballet, para fins de conformação de corpos graciosos e adestrados, aos homens incita-se a prática de esportes, para iniciá-los nos valores competitivos, para fortalecer os corpos e exercitar a convivialidade regrada entre iguais.

    Notório pelos seus estudos acerca da realidade contemporânea brasileira e pelo seu interesse pelos temas ‘de massa’, Roberto Da Matta percebe o Futebol brasileiro como um fenômeno grandioso, esporte das massas. DA MATTA (1977) analisa vários rituais nacionais brasileiros - entre eles o Futebol - e afirma que tais fenômenos salientam determinados aspectos da vida cotidiana, confirmam a estrutura dominante e invertem ou neutralizam hierarquias e padrões, tais como os étnicos (o futebol inverteria o racismo), de classe (neutralizaria as diferenças de origem sócio-econômica: o que importa é ter ‘ginga no pé’) ou de gênero (reifica a supremacia do masculino).

“Os rituais dizem as coisas tanto quanto as relações sociais (...). Tudo indica que no mundo ritual as coisas são ditas com mais veemência, com maior coerência (...). Os rituais seriam assim, instrumentos que permitem uma maior clareza das mensagens sociais” (DA MATTA, 1977:45).


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