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As relações necessárias entre a
educação física e as ciências sociais
Prof. Ms. Santiago Pich y otros

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 55 - Diciembre de 2002

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    Que tipo de corpo necessita a sociedade atual? Por que e para quem é necessário um corpo presente onde reflexão não está?


O Processo Civilizador - Norbert Elias

    Elias (1994) assenta sua proposta teórica no conceito de civilização enquanto processo de construção do modelo societário característico do ocidente. Para delinear esse conceito o autor faz uma revisão da evolução dos conceitos de civilização e cultura nos contextos alemão, francês e inglês. Segundo o autor a palavra civilização possui um conceito amplo e complexo assim, se torna muito difícil resumir em algumas palavras tudo o que se pode descrever como civilização. O que não se pode negar, é a profunda relação entre o conceito de civilização e a consciência nacional do Ocidente, ou seja, o Ocidente se utiliza dessa palavra para descrever aquilo que se orgulha e se julga superior as sociedades mais antigas.

    Entretanto a palavra civilização não possui o mesmo significado em todas as nações do Ocidente, pelo contrário, enquanto franceses e ingleses resumem seu orgulho pela importância de suas nações para o progresso de Ocidente e da humanidade em uma única palavra “CIVILIZAÇÃO”, os alemães a consideram simplesmente como aparência externa de seres humanos “ZIVILISATION” , e a palavra que representa o orgulho e as próprias realizações dos alemães é “KULTUR”.

    Por um lado franceses e ingleses defendem civilização como algo que está em movimento e minimiza as diferenças nacionais entre os povos, e por outro lado, os alemães com a sua nova expressão Kultur, que caracteriza um conceito que delimita e dá ênfase nas diferenças nacionais, não esquecendo é claro, do conceito de zivilisation que representa um valor de segunda classe.

    O autor deixa claro que o conceito de civilização ou Kultur, está cercado por acontecimentos históricos, emocionais e tradicionais, assim só quem participa de tais acontecimentos poderá compreender seu significado.

    Segundo Norbert Elias a sociedade do ocidente durante a Idade Média empenha-se em guerras de colonização e expansão primeiramente em nome da Cruz e mais tarde da civilização, assim o lema civilização conserva sempre um eco de Cristandade Latina e das Cruzadas. Em relação a civileté, o texto nos diz que o conceito adquiriu significado para o mundo ocidental numa época de desmoronamento da sociedade cavaleirosa e da Igreja católica, sendo assim trouxe consigo o italiano e em seguida cada vez mais o francês como sua língua oficial para representar a característica dessa nova sociedade européia. Em 1530 Erasmo de Rotterdam escreve o tratado ( De civilitate morum puerilium) colaborando para encaminhar o conceito de civilité para uma função específica, se referir ao comportamento das pessoas em sociedade. Alem disso, o que chama atenção nesse trabalho é a elevação da palavra título à condição de expressão fundamental de auto - interpretação da sociedade Européia. Com o estudo do pequeno mas significativo tratado de Rotterdam, Elias se questiona como e porque a sociedade ocidental moveu-se realmente de um padrão para outro, como foi “civilizado”, e ainda deixa claro que a “civilização” que estamos acostumados a considerar como uma posse e não nos perguntamos como viemos a possui- lá, é um processo que nós mesmos estamos envolvidos.

    Em relação à mudança de comportamento durante a Renascença o autor diz que os trabalhos dos humanistas sobre maneiras formam uma ponte entre a Idade Média e os tempos modernos. Porém o tratado de Erasmo ganhou destaque talvez por apresentar observações da vida social e citar atitudes a serem seguidas para se alcançar um padrão elevado de boas maneiras, assim pode-se observar que ao mesmo tempo que a sociedade se encontrava em transição o mesmo acontecia com as maneiras. Apesar de Erasmo se diferenciar dos demais escritores sendo imparcial e não dar destaque à distinção entre classes, ele caracterizou suas obras implantando nelas o seu caráter pessoal, assim suas instruções não se estendiam somente em dicas de boas maneiras à mesa, mas sim, em bons comportamentos em sociedade, o que mesmo sucintamente acabou por influenciar uma nova ordem social. Essa nova ordem fundamenta-se em relações de poder diretamente relacionadas aos mecanismos de controle das emoções que mudam lentamente a própria natureza das emoções. Esses mecanismos estavam pautados pelas normas de comportamento prescritas nas obras sobre as maneiras. Uma vez que essas obras estavam direcionadas à corte, à aristocracia e à burguesia.

    Os processos antes descritos podem ser hoje analisados de forma sistemática graças ao surgimento das ciências sociais e humanas. Sendo a história uma das principais linhas que caracterizam as ciências humanas de estudo, é ela que hoje se reporta ao homem de forma diferenciada, ela busca entender e explicar o ser humano a partir do contexto corporal, ou seja, hoje o corpo tem papel principal dentro da proposta da Nova História, entretanto cai nas graças das ciências naturais, por não compartilhar os mesmo métodos científicos, os mesmos conceitos enfim as mesmas idéias. A ciência social além de não poder usar dos mesmos métodos de estudo e pesquisa utilizado pela ciência natural, ela ainda sofre com “problemas internos”, ou seja, não consegue referir-se ao seu objeto de estudo com exatidão, pois a cultura, o homem, enfim, a sociedade estão num constante processo de modificação, o que inviabiliza qualquer tipo de conclusão precisa, ou comprovada como sugerir a ciência natural.

    Apesar disso alguns autores se arriscaram a descrever e refletir sobre a sociedade e o ser humano, Norbert Elias é um deles, em sua obra, “O Processo Civilizador”, faz uma longa e interessante análise sobre a história do controle das emoções que ocorreram e ainda ocorrem na sociedade humana, mais exatamente no Ocidente.

    Norbert Elias propõe analogias sobre o comportamento humano, percorre os tempos, desde a Idade Média até os tempos modernos em busca de explicações para as várias mudanças de atitudes e valores em que toda a sociedade européia em sofrendo durante todos esses anos. O processo civilizador modificou totalmente a maneira de ser de todas as pessoas, independente de sua posição social.

    O que devemos nos perguntar é como o controle das emoções pode estar entrelaçado no discurso direcionado ao atual contexto que se encontra a cultura corporal de movimento. Podemos iniciar a discussão levantando várias pontas de reflexão, por exemplo: que tipo de atitude uma pessoa considerada de classe alta tomaria, em relação a um indivíduo mais humilde em determinada situação; porque a distinção entre praticantes de tênis e futebol? Será que até mesmo no esporte esse processo civilizador se torna claro? O que se percebe hoje é que cada vez mais as pessoas que conseguem controlar suas atitudes, suas emoções, suas expressões são as que se destacam.

    Enquanto que nos tênis o atleta é uma pessoa introspectiva, concentrada, individualista, não permite nenhum tipo de contato físico com o adversário durante o jogo, no futebol que é esporte da massa, há muito contato corporal, objetivos no jogo que representam uma luta corpórea há regras para o atleta se controlar emocionalmente.


Esporte e Habitus em Pierre Bourdieu

    Um corpo que se faz história, uma história que se encarna, um sujeito sujeitado a disposições de uma estrutura que encontra seu assento na encenação gestual e no poder simbólica. Essa são alguns dos pontos de partida que propomos para pensar em um dos pilares da proposta de Pierre Bourdieu, a categoria de “habitus”. Discutir a história in-corporada ou a corporificação da história interessa a este autor. Bourdieu se preocupa com a o papel do corpo no processo de socialização do sujeito sujeito a estruturas sociais fortes o suficiente para moldar o corpo a partir da impressão de significados que enquadram o indivíduo na ordem social.

    O autor Bourdieu procura entender a relação entre a cultura, dominação e desigualdade, ele entende que a cultura não é imposta para um povo de uma forma inocente, mas com a finalidade de criar classes superiores e classes inferiores na sociedade capitalistas. Ainda, que esse poder de dominação está firmemente ligado à capacidade de imposição de uma ordem simbólica dominante (Bourdieu, 1998). Nesse sentido o autor entende que a estrutura social está diretamente ligada ao lugar ocupado pelos atores sociais na produção simbólica. Dessa maneira os excluídos o são porque suas vozes são silenciadas, ou melhor ainda porque nem sequer tem condições de produção simbólica, tal o grau da força das estruturas que moldam esses indivíduos. Para Bourdieu (1998, p. 152):

“Os que ocupam as posições dominadas no espaço social estão também em posições dominadas no campo de produção simbólica e não se vê de onde lhes poderiam vir os instrumentos de produção simbólica de que necessitam para exprimirem o seu próprio ponto de vista sobre o social.”

    Bourdieu (1995) define “habitus” como um sistema de disposições, que atuam no cotidiano como esquemas de pensamento percepção e avaliação ou julgamento. Em outro momento Bourdieu (1998) realiza uma descrição do processo de construção do conceito de habitus e nos propõe que:

“A história <>, «antepredicativas», estruturas estruturadas antes de qualquer operação estruturante ou de qualquer expressção lingüística. A relação dóxica com o mundo natal, essa espécie de empenhamento ontológico que o senso prático instaura, é uma relação de pertença e de posse na qual o corpo apropriado pela história se apropria, de maneira absoluta e imediata, das coisas habitadas por essa história.” (Bourdieu, 1998, p.83)

    Vemos nas colocações acima claramente colocada uma das teses centrais do autor, segundo a qual o processo de construção do sujeito comporta um envolvimento histórico no sentido de apropriação do mundo material carregado de valor simbólico por parte do corpo, corpo esse que ainda resta saber até que ponto é sujeito, ou se ele é coisificado pela própria proposta teórica do autor. Queremos dizer que altamente problemático pensar na coisificação do sujeito a partir do seu envolvimento histórico.

    Sem dúvida alguma, esse é um dos pontos mais conflitantes na teoria de Bourdieu que pelo seu viés altamente estruturalista, acaba criando um sistema muito fechado para pensar a sociedade, banindo da cena social o sujeito, criado pelo habitus.

    Uma vez que o corpo ocupa um lugar central na estruturação dos espaços sociais a serem ocupados pelos sujeitos não podemos deixar fora o esporte enquanto campo social de grande importância na formação do habitus. Bourdieu ocupou-se em alguns momentos com a problemática esportiva, sendo seguido por Boltanski, no entanto ambos autores não se ocuparam com a cultura corporal de movimento, mas com o esporte enquanto prática corporal hegemônica na sociedade ocidental.

    Segundo Bourdieu (1995) para entender o esporte não basta estudar todos os esportes juntos. Precisamos estudar separadamente para conhecer a posição que ele ocupa no espaço dos esportes e a distribuição dos praticantes segunda a sua posição social. Os números de adeptos, sua riqueza e as características sociais dos dirigentes. A relação com o corpo, se ele favorece ou se exige, se tem um contato direto ou não, “o elemento determinante do sistema de preferências é aqui a relação com o corpo, com o envolvimento do corpo que esta associada a uma posição social e a uma experiência originaria do mundo físico e social”.

    Neste texto podemos analisar que há grandes diferenças de pratica de esporte entre diferentes classes sociais. As classes abastadas praticam preferencialmente esportes individuais onde é destacada a figura do sujeito e que não demandam um grande sacrifício corporal, como o caso do tênis e do golf, enquanto as classes populares preferem os esportes cuja prática se caracteriza pelo jogo coletiva e uma importante quota de sacrifício corporal e de agressividade, como por exemplo no futebol (Bourdieu, 1995 e Boltanski, 1987). A diferença central da prática de uma e outra classe são as diferentes percepções e entendimentos do esporte e também da acessibilidade do esporte que as pessoas têm.

    Segundo Bracht (1997), analisando a instituição esportiva a partir do esquema teórica de Bourdieu, o esporte amador é reservado à elite e o esporte espetáculo produzido por profissionais para a massa de expectadores, para um fim capitalista para as classes altas lucrarem com o interesse do povo para assistir os esportes espetáculo. podemos pensar a partir das colocações anteriores, que existe uma classe, a burguesa, que pratica esporte para ter uma preocupação estética com o corpo socialmente considerado “bonito” (com músculos), e outra classe, a popular, espera ter uma compensação psíquica.

    O processo de construção do habitus encontra atualmente um grande promotor na mídia. Um dos fenômenos mais relevantes da contemporaneidade é sem dúvidas a criação do “esporte tele-espetáculo” via meios de comunicação de massa, especialmente da televisão (Betti, 1998). Nesse sentido podem ser abertos vários interrogantes como por exemplo Como a mídia influência no “habitus”dos indivíduos através da construção da história do sucesso dos chamados “ídolos do esporte” com suas vitórias e conquistas, fazendo desse caminho uma regra para quem pretende chegar onde eles chegaram? Colocaremos como um dos vários exemplos possíveis, o craque Ronaldinho Gaúcho, famoso, conhecido em todo o mundo com seu talento, de infância pobre, mas jogando futebol ficou milionário. Sua mãe em uma entrevista para um programa de televisão contou como era o Ronaldinho, dizendo que ele quando ia à escola, não ficava na sala de aula pois não gostava de estudar, o dele era só jogar bola num campinho atrás da escola, não fazia as tarefas do dia-a-dia, apenas jogava bola, comia, vivia e dormia com a bola. Talvez, na infância, ele não pensava em ser o craque que é hoje e mesmo assim isso é usado como uma forma de se chegar ao sucesso, ou seja, optar por um lado, estudo x esporte, o que pensam nossas crianças vendo este tipo de depoimento? Podemos compreender esse processo como um meio de ludibriar a atenção dos sujeitos (na maioria de classe popular) no caminho rumo à ascensão social.


Ciências sociais e Educação Física, a perda da (pseudo)ingenuidade

    Nos encaminhamos ao final do texto, neste momento cabe uma reflexão sintetizante do dito até o momento. Como já apontamos os três autores discutidos neste trabalho. Bourdieu, Foucault e Elias preocupam-se com o lugar central do corpo na configuração da sociedade ocidental. Os autores entendem que se faz necessária a revisão das propostas sociológicas no sentido de mudar o foco das mesmas para dar atenção a processos antes esquecidos na explicação da dinâmica social por serem considerados de menor valor, mas é justamente esse esquecimento, essa lacuna que torna o terreno fértil para novas propostas teóricas. Perante a questão comum colocada pelos três autores, embora de forma particular por cada um deles, sobre a problemática do sujeito enquanto um ser que deve em última instância operar um consentimento, que deve ser cooptado, que deve incorporar uma ordem simbólica que considere necessária à sua condição. Esse processo acontece, para os teóricos estudados, centrado no corpo, uma vez que é no corpo que se inscrevem marcas à fogo, nele se criam estruturas que estruturam o sujeito, uma espécie de base pré-consciente que situa o sujeito no seu lugar sócio-histórico.

    Conceber o corpo instância ontológica na constituição do sujeito, ontologia de nenhuma forma metafísica, muito pelo contrário encarnada e histórica nos leva necessariamente a superar uma visão ingênua da visão de corpo, desvinculado do sujeito que in-copora esse corpo, pólos que vivenciam uma relação dialética de ser instituído e de operar um movimento instituinte.

    Esse processo se desenvolve num processo de apropriação de formas simbólicas que criam toda uma linguagem gestual escenificada em ambientes que criam contextos significantes, espaços de legitimação da ordem social vigente. Lembramos ainda que Bourdieu e Foucault se situam numa perspectiva crítica com relação ao processo de dominação/domesticação, enquanto Elias propõe uma visão um tanto naturalizante do processo civilizador. Dessa maneira não é mais possível ignorar o importante papel que as práticas sistematizadas de movimento adquirem na constituição do sujeito, e ainda visualizar com clareza quais as possibilidades de intervenção através de um processo pedagógico no direcionamento da socialização do ser humano.


Nota

  1. Observamos que a crise vivenciada atualmente pela Educação Física brasileira ocorreu em outros contextos, e sob outras circunstâncias. Para citar alguns exemplos, na Alemanha observa-se uma efervescência da discussão acadêmica na década de 60 e na Espanha podemos identificar a figura de Cagigal como um representante ilustre nas décadas de 70 e 80 do debate acadêmico espanhol. Na França esses processos tiveram lugar nas décadas de 60 e 70, destacando-se figuras como Jean Le-Boulch e Jean Marie Brhom.


Bibliografia

  • Betti, Mauro. Por uma teoria da prática. Motus Corporis. Rio de Janeiro, v.3, n. 2, p.73-127, dic. 1996.

  • -------- A janela de vidro. Campinas: Papirus, 1998.

  • Boltanski, Luc. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1987.

  • Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

  • ------- Programa para uma sociologia do esporte. In: Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1995.

  • Bracht, Valter. Educação Física e Ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Ijuí: Unijuí, 1999.

  • ------- Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Vitória: UFES, 1997.

  • Castellani Filho, Lino. Educação Física: uma história que não se conta. Campinas: Papirus, 1988.

  • Cavalcanti, Kátia Brandão. Esporte para todos: um discurso ideológico. São Paulo: IBRASA, 1984.

  • Elias, Norbert. O processo civilizador - vol. 1 Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

  • Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

  • ------- Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.

  • Ghirardelli Jr., Paulo. Educação Física Progressista. São Paulo: Loyola, 1988.

  • Medina, João Paulo S. A Educação Física cuida do corpo... e “mente”. Campinas: Papirus, 1990.

  • Pich, Santiago. Encontros e desencontros da Educação Física e da cultura. ANAIS XII CONBRACE - CD-ROOM. Caxambú, 2001. Foucault (1991, 1979

  • Pedraz, Miguel Vicente. Poder y cuerpo: el (incontestable) mito de la relación entre ejercicio físico y salud. Educación Física y Ciencia, año 3, n. 2, sept. 1997.


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