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A eugenização da raça brasileira pelo corpo feminino:
a defesa da educação física para a mulher
Ariza Maria Rocha Lima

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 7 - N° 40 - Setiembre de 2001

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    Atuante no movimento eugenista brasileiro, Azevedo foi um dos 140 membros da Sociedade Eugênica de São Paulo, onde participou de conferências estabelecendo relação entre Cultura Atlética ou Educação Física e Eugenia. Azevedo afirmava que a Eugenia era:

...a ciência ou disciplina que tem por objeto o estudo das medidas sociais - econômicas, sanitárias e educacionais que influenciam, física e mentalmente, o desenvolvimento das qualidades hereditárias dos indivíduos e, portanto, das gerações (Soares, 1994:143).

    Para compreender melhor o papel da educação física na eugenização da raça brasileira, observemos as conclusões dos trabalhos apresentados no I Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado no Rio de Janeiro, no ano de 1929:

1º. A bem da saúde e desenvolvimento da raça, o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia appella para a classe médica afim de aprofundar a cultura nacional no que diz respeito às bases e orientações scientificas da Educação Physica a começar pela escolha do methodo apropriado aos brasileiros e ao seu clima.
2º. O 1º Congresso Brasileiro de Eugenia incita o Governo da República a que com máxima urgência:
a) organise Escolas Superiores de Educação Physica para conveniente preparo dos professores indispensáveis à cultura physica nacional.
b) institua o Conselho Superior de educação Physica Nacional Orgão consultivo e orientador do grande problema eugênico.
c) estabeleça da melhor maneira possível a fiscalização especialisada do caso em todos os estabelecimentos de ensino, associações desportivas e outros centros de cultura physica.
d) promova o preparo de Gymnasios, e campos apropriados a gymnastica analytica e jogos ao ar livre para uso do povo em gera.(Congresso Brasileiro De Eugenia in Soares, 1994:142).

    Para Fernando de Azevedo, o Brasil deveria se espelhar em países como os Estados Unidos da América que possuíam sociedades de educação física para moças, conhecidas como Camp-Fire. Para ele, o Camp-fire tinha os seguintes objetivos:

...tem como um de seus intuitos primaciais desenvolver, por meio da higiene e trabalhos de campo, corpos sadios e bem trabalhados, nervos postos à prova para a realização do propósito do amor e do papel bio - educativo que lhes está destinado. Estes objetivos que se relacionam visceralmente com a maternidade, mostram à primeira vista (...) ser a eugenia a base admirável da instituição americana, por cuja iniciação cerca de 50 a 70 mil moças - as chamadas jovens de Camp-fire-já usufruem os múltiplos benefícios do ambiente higiênico do campo, partilhando o tempo entre os exercícios de bola, remo e natação e estudos práticos sobre a formação e direção do lar, diferenciação entre os efeitos imediatos do meio sobre a mãe e as modificações determinadas pelas circunstancias do tempo de maneira a poderem, pela robustez do organismo, aprimoramento do caráter e cultura de espírito, tornar-se à altura de seus deveres e responsabilidades. São estas instituições um dos preciosos frutos em que germinou (...) ciência do lar, home - science dos ingleses, que tem exatamente por fim utilizar as conquistas nos vários ramos de nossos conhecimentos para obter a mulher, com o mínimo esforço o máximo de predicados físicos e morais para o preenchimento cabal da missão de mãe e educadora circunscritos à órbita que lhe balizaram a natureza e as funções que lhe incumbem (Soares, 1994:147).

    Um outro colaborador do movimento eugenista do Brasil que partilhava das idéias sobre a função da mulher na sociedade, foi o Dr. Renato Kehl. Como membro-fundador e presidente da Sociedade Eugênica de São Paulo, Kehl contribuiu com o movimento eugenista no Brasil, através de um grande número de obras publicadas sobre o assunto, como por exemplo, o livro Porque sou eugenista, entre outros. Analisando os títulos de suas publicações, encontramos tópicos ilustrativos do pensamento eugenista da época:

A Fada Higia - 1ºlivro. Higiene para uso das escolas primárias, 1925, Bíblia da saúde (Higiene para todos), 1926; Formulário da beleza, 1927; Lições de eugenia (educação espanhola - (Pedagogia sexual); Sexo e civilização (política eugênica); Eugenia e medicina social (Problemas da vida), 1923; Melhoremos e prolonguemos a vida (A valorização eugênica do homem), 1924; A cura da fealdade, 1923: Como escolher um bom marido (conselho às moças); Como escolher uma boa esposa (Amor experimental), 1925; Conduta (Lições de ética, 1934; Cartilha da higiene (Soares, 1994:144).

    Como podemos observar, pela relação dos títulos acima, fica claro que todos estão voltados para a crença nos poderes da eugenia, colocando a necessidade de divulgação e propagação daquela nação higiênica, deslocando o cuidado com o corpo do espaço familiar para a escola. Assim, o movimento de eugenização revelou a preocupação pedagógica de traduzir para a sociedade a importância do médico nos debates em torno de qualquer problema nacional, particularmente, naqueles referentes à educação e à educação física, mostrando que a mulher e a própria educação física, tinham em comum, o caráter instrumental de um projeto social.

    Através de uma ampla campanha de educação do povo Fernando de Azevedo, assim como Rui Barbosa e, todos aqueles que se viram influenciados por aquele ideário, em conjunturas específicas, acreditavam ser possível viabilizar o progresso e o desenvolvimento do país, através de um rígido controle da saúde pela higienização do corpo feminino e pela educação física.


Algumas considerações

    As marcas da influência do ideário médico higienista estão atreladas, ainda hoje à nossa prática e impregnam a nossa postura profissional. Como evidências dessa temos:

  1. Os argumentos para convencer a população da importância dos exercícios físicos. Assim, de um "corpo proibido" para a exaltação de "corpo sadio" e permitido, através do que deu, também, a inclusão da ginástica para a mulher como fonte sadia para fecundar uma sociedade com homens sadios.

  2. A concepção de um corpo biológico e a-histórico interfere deste os conhecimentos necessários à formação do profissional de educação física, como também, na relação de ensino-aprendizagem.

  3. A "busca de status científico", pela aproximação entre a medicina e a Educação Física.

  4. Os exames biométricos, antropométricos, os atestados médicos são marcas da presença do médico na escola.

    ...a idéia de que a Educação Física na escola para Fernando de Azevedo é uma questão médica e não pedagógica, na medida em que, quem define o conteúdo e "permite" a criança participar ou não de uma aula, é o médico. O professor desempenha um papel secundário, digamos assim, um papel de auxiliar direto, um papel de executor de tarefas pensadas e fiscalizadas pelo médico(Soares,1994:155).

  5. As aulas atenderiam a uma disciplinarização do físico, do espírito e da moral dentro de uma hierarquização de exercícios do mais simples para o complexo, obedecendo, ainda uma ordem e um tempo.

  6. A separação por sexo, ainda, é uma característica que tem resistido ao tempo e as teorias críticas.

    Ao lado dos aspectos assinalados acima, outra herança deixada por esse processo histórico e social é a concepção de saúde desvinculada das condições sociais, políticas, culturais e econômicas. Como sabemos, ao contrário disso, saúde não significa apenas falta de doença. A visão hoje, trabalhada de promoção de saúde atende a uma perspectiva bem mais ampla, onde entram em jogo diversos fatores sociais e uma visão humanizada da saúde, do homem e do corpo individual e social.

    Assim, os significados de saúde para os indivíduos ou para a sociedade estão relacionados às realidades individuais, sociais e culturais, tais como idade, sexo, classe social, nível educacional e, também, afetividade, qualidade ambiental, segurança pessoal e coletiva, nutrição, lazer, atendimento médico e odontológico, saneamento básico, condições dignas de existência e etc. À esse respeito, poderíamos citar a definição de Promoção de Saúde, segundo a Organização Mundial de Saúde - OMS,

...um processo mediante o qual os indivíduos e as comunidades tornam-se aptos a exercerem um maior controle sobre os determinantes de saúde, e desse modo melhorar seu estado de saúde (O. M. S in Jornal O POVO16/7/2000).

    Resquícios da permanência do pensamento de Fernando de Azevedo nos chegam ainda hoje, elegendo a educação, e principalmente a escola, como redentora de todas as mazelas sociais e políticas de um país, traduzindo, assim, o ideal de movimento escolanovista. No corpo feminino, vimos depositada toda uma fé de construção histórica de uma sociedade, enfoques que esse corpo recebeu nas muitas imagens traçadas, trilhadas, tatuadas e marcadas à ferro.

    Analisando o pensamento pedagógico dos higienistas, este nos remete a uma reflexão acerca do corpo/movimento como processo histórico e fenômeno cultural, pois, nele encontramos os elementos pensados para dar aos homens maiores possibilidades de desenvolvimento de suas destrezas físicas, ao mesmo tempo em que, influenciaram relações de poder e o confronto de interesses que ocorrem na sociedade dando o significado idealizado desse corpo/movimento. No caso aqui tratado, fica claro como o pensamento pedagógico ia reforçando o pensamento dominante acerca do papel da mulher na sociedade brasileira, qual seja, aquele que, ao ventilar a urgência de prepara-la fisicamente para a maternidade, estigmatizou sua imagem, associando-a quase que somente à idéia de mãe.

    Nos corpos femininos, a relação com a cultura e a construção social do que seja feminino e como forma de ser ofereceu uma referência à organização social da relação entre os sexos, pois, sendo "a maternidade futura o horizonte para as mulheres, a elas se refere como as 'obreiras da vida' evidenciando a importância de uma cultura física que convenha ao organismo feminino e a sua função ".

    Analisando os traços de uma ideologia conservadora, a figura da mulher em nenhum momento, surgiu dissociada da figura de mãe. Vista como algo natural, esta relação tem servido para o controle do comportamento feminino, tanto sob a tutela do homem como na criação dos modelos, segundo o espelho da vontade do homem. Emerge a mulher sedutora, mulher-mãe, e esposa ao jeito tradicional a mulher-objeto.

    Enquanto medida eugênica, os exercícios físicos teriam então por função, construir um corpo feminino apto a suportar a nobre tarefa da reprodução. Assim, observa-se que os aspectos socioculturais e históricos presentes na construção do corpo feminino moldaram, desde a infância, a mulher para ser a "rainha do lar," restrita ao ambiente do lar e ao discurso ideológico da submissão.

    A construção cultural do corpo feminino como decorrência de um fato social revela o processo da dominação e adestramento dos instintos sexuais do indivíduo, que vem se mantendo ainda nos dias de hoje e, como conseqü:ência, induz o homem a viver sob a marca de os estereótipos sociais e sobre os modelos de comportamento previamente estabelecidos pela sociedade. Um exemplo dessa tendência é quando se ouve que "o futebol é para homem e não para a menina".

     A mulher, em seu corpo carrega uma identidade fragmentada, quando suas experiências vivenciadas estão embutidas de valores burgueses e interesses capitalistas de nossa sociedade. Daí se observa a violação da condição de ser mais livre da mulher.

    E, por último, para finalizar este artigo, vale lembrar que a concepção e a prática de educação, ainda não cresceu a ponto de enxergar no corpo algo além do seu caráter instrumental, fazendo com que o corpo, tanto do menino, quanto da menina, continuem fora da escola.


Referências Bibliográficas

  • ANDERY, Maria Amália et al. Para compreender a ciência. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, São Paulo: EDUC, 1988.

  • BETTI, Mauro. Educação Física e Sociedade. São Paulo: Editora Movimento, 1991.184p.

  • CASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. 4ed-Campinas, São Paulo: Papirus, 1994. 225p

  • O POVO, Jornal, 16/7/2000.

  • ROMERO, Elaine (org). Corpo, mulher e sociedade. Campinas, São Paulo: Papirus, 1995. 308p

  • SOARES, Carmem Lúcia. Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 1994.167p.

  • VAGO, Tarcísio Mauro. Início e fim do século XX: Maneiras de fazer educação física na escola. Cad.CEDES, Campinas, junho, 2000.


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