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A via platina de introdução do futebol no Rio Grande do Sul
Gilmar Mascarenhas de Jesus

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 26 - Octubre de 2000

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    Em entrevistas com dirigentes esportivos e outros segmentos sociais de Uruguaiana, obtêm-se a informação unânime de que o atual Esporte Clube Uruguaiana é o mais antigo da cidade, fundado em 1912. A opinião geral é de que antes desta data já se praticava o futebol porém informalmente, sem agremiações organizadas em atas etc. Tal informação entretanto não resistiu a poucas horas de consulta em jornais locais do início do século. Por ocasião da fundação do E.C. Uruguaiana, por exemplo, o jornal A Nação faz o seguinte registro:

...acaba de ser fundado um novo gremio de “football” (...)os “footballers” que o compõem são jogadores já experimentados pelo que há de se esperar que ao entrar em liça conquistem entre os outros clubs desse gênero o lugar que lhes compete. Foi eleito presidente honorário o sr. A.F. Lockwod Chompson.7

    Dois aspectos devem ser realçados neste registro. Primeiramente, o fato de preexistirem “clubs” quando da fundação do E.C. Uruguaiana (aliás, em outras edições da mesma época, o referido jornal noticia confrontos de outros clubes da cidade, alguns com “concorrência extraordinária” e presença de bandas de música, o que denota estágio de adoção relativamente avançado). Em segundo lugar, a presença de um cidadão de nome britânico à frente do clube, o que nos desperta o interesse não por estranhar algo tão corriqueiro nos primórdios do futebol brasileiro, mas por se tratar de fato desconhecido por todos os entrevistados.8 Sugerimos que tal ignorância seja fruto, uma vez mais, das deturpações construídas historicamente, através da tradição oral, da força do discurso regionalista ou mesmo de registros tendenciosos, muito comum na literatura futebolística.9

    Há portanto claros indícios de que o futebol tenha se introduzido na vida urbana uruguaianense bem antes do que se imagina. A presença de ingleses e as elogiosas notas na imprensa de época sinalizam que a prática esportiva transcorria plenamente no interior de círculos sociais privilegiados. Podemos ainda visualizar um movimento de popularização do futebol em Uruguaiana na década seguinte à sua introdução na cidade, e o exemplo do Esporte Clube Ferro Carril, fundado em 1916, nos parece sugestivo. Nas palavras de seu atual presidente, o clube fora desde o início uma iniciativa de operários ferroviários.10 Por outro lado, descobrimos que na vizinha cidade uruguaia de Salto, servida pelo mesmo ramal ferroviário de Uruguaiana, um clube homônimo foi criado por trabalhadores da ferrovia um pouco antes, em 1912.11 Conhecendo esta forte tradição uruguaia inaugurada pelo popularíssimo Peñarol no início do século, adicionada às conexões platinas de Uruguaiana e o nome escolhido para o clube (em castelhano), sugerimos que o ato de fundação do Ferro Carril uruguaianense se remete à tradição uruguaia em questão, sendo possivelmente mais um desdobramento da influência platina no futebol gaúcho.

    Santana do Livramento é outro caso que merece alusão. Sua origem e evolução não pode ser dissociada de Rivera, cidade uruguaia com a qual forma um autêntico “par de cidades” fronteiriço (SCHÄFFER, 1993:14). No final do século XIX, os investimentos uruguaios se ampliavam rapidamente (telefonia, eletrificação etc.), e com as ferrovias Livramento tornara-se efetivamente ponto de penetração no território nacional da pujança econômica de Montevideo. Vera Albornoz (1997:105) afirma que o período de 1892 (chegada da ferrovia) a 1916 foi marcado pela “supremacia uruguaia”, sendo Livramento uma cidade dependente do centro metropolitano de Montevideo.12 O fato de Livramento vivenciar naquele período um pequeno surto industrial, com crescimento demográfico e atração de migrantes, configurava um cenário particularmente receptivo ao futebol. E este chegaria rapidamente, pois a metrópole com a qual Livramento mantinha íntimas conexões já era um grande centro futebolístico na virada do século. E assim verificaremos um dos casos mais precoces de adoção do futebol no Brasil urbano.

    Em 1902, muito raras eram as cidades brasileiras que praticavam o futebol com alguma regularidade. Podemos afirmar sem grandes riscos que esta prática estava circunscrita quase exclusivamente a São Paulo e algumas cidades portuárias, como Rio de Janeiro, Belém, Rio Grande e Salvador, e ainda assim somente a primeira delas dispunha de uma liga, que naquele ano realizava seu primeiro campeonato de clubes (MASCARENHAS, 1998). Uma aglomeração urbana do porte de Livramento, naquele momento, teria pouquíssimas chances de dispor da informação “futebol” e ainda menores probabilidades de incorporá-lo como prática social. Considerando-se sua localização, distante dos grandes centros urbanos nacionais, das zonas portuárias mais dinâmicas ou de outras atividades potencialmente aglutinadoras de agentes britânicos (minas, grandes fábricas etc.), Livramento certamente estaria alijada do mapa do futebol no Brasil no início do século. Não fosse, é claro, a forte conexão com Montevideo.

    Naquele ano distante de 1902 a cidade fronteiriça sem grande expressão econômico-demográfica já sediava um clube de futebol. Trata-se do 14 de Julho. Não é difícil imaginar as motivações para tal iniciativa, poi em toda a área de influência de Montevideo o futebol provavelmente já era bem conhecido em 1900, pelas razões aqui já apresentadas. Ademais, a cidade de Rivera possuía seus clubes de futebol. As vinculações estreitas de Livramento com esta cidade provocavam ao menos duas motivações diretas: copiar o modismo em voga e o desejo de desafiar os vizinhos uruguaios, por razões óbvias de alteridade. O estudioso Carlos Lopes dos Santos (1975:87) nos confirma este último caminho. O 14 de Julho, vale lembrar, não é a primeira instituição a desenvolver a prática do futebol em Livramento. Segundo Carlos Santos (1975:88), antes deste clube houve um outro, fundado por um uruguaio conhecido por Pepe Lay (provavelmente no final do século passado). Mas esta agremiação durou pouco tempo, devido à hostilidade local, que alcançou inclusive as autoridades municipais. Em síntese, não resta dúvida da influência uruguaia na adoção do futebol em Livramento.

    Para finalizar este segmento, vale citar que importantes centros como Pelotas e Rio Grande, que lideraram o futebol gaúcho em seus primeiros momentos, também contaram com influência platina. Na segunda década do século XX, seus clubes já “importavam” jogadores uruguaios, garantindo melhor performance nas competições estaduais (ALVES, 1984).


Conclusão

    O território gaúcho, dada sua formação histórica, apresenta larga extensão de fronteiras internacionais, que correspondem a mais da metade de seus limites e representam mais de 10% do total das fronteiras do Brasil. Se o estado do Amazonas é o único a superar o RS em extensão de fronteiras internacionais, estas são um tanto despovoadas, caracterizando um quadro de isolamento. Ademais, um outro aspecto salienta a condição de excepcionalidade que pretendemos frisar. A linha fronteiriça do RS com a Argentina é inteiramente natural (formada pelo rio Uruguai), mas a que nos separa do Estado uruguaio, ao contrário, é artificial em quase toda a sua extensão, favorecendo o intercâmbio econômico e sócio-cultural (Haesbaert, 1988:11-13). Esta linha de fronteira cumprirá papel relevante na difusão do futebol pela Campanha Gaúcha.

    A existência desta fronteira “viva” pouco valeria em nosso estudo não fossem os vizinhos em pauta as duas nações que sem dúvida mais precocemente desenvolveram este esporte na América do Sul. A capital argentina, por seu porte e riqueza, desenvolveu rapidamente o futebol, ao que os uruguaios, por intensa rivalidade, procuraram reagir prontamente. É através da “fronteira viva” com o Uruguai, que centros urbanos de pequeno porte tiveram acesso a “informações” até então praticamente restritas aos grandes centros e às zonas portuárias mais dinâmicas.

    Trata-se sem dúvida de uma adoção precoce do futebol no contexto brasileiro. Procuramos aqui não apenas demonstrar tal precocidade como sobretudo entendê-la a partir das fortes conexões do RS com as metrópoles do Prata, numa tentativa de abordagem geográfica do processo de difusão do futebol.


Notas

  1. O presente estudo é uma parte da investigação efetuada para a tese de doutorado (em fase de conclusão) em Geografia Humana na Universidade de São Paulo, intitulada “A bola nas redes: mundo e lugar no advento do futebol no Brasil urbano. O caso do Rio Grande do Sul”, de nossa autoria. Trata-se de um esforço no sentido de superar parte do persistente desconhecimento acerca da história social do futebol em outras regiões para além do eixo Rio-SP, bem como de inserir no debate histórico o papel do território e sua dinâmica no advento e difusão espacial do futebol.

  2. A historiadora Helen Osório (1995:113) enquadra como “espaço colonial periférico” as terras setentrionais da Banda Oriental do Rio Uruguai, que hoje conhecemos como Rio Grande do Sul. Os geógrafos Haesbaert e Moreira (1982:59) elencam ainda três outros fatores básicos para tal diferenciação em relação aos eixos privilegiados da empresa colonial portuguesa: relativa inacessibilidade (litoral inóspito), posição distante dos núcleos básicos de colonização e ausência de recursos naturais que despertassem interesse na metrópole.

  3. Conjunto de informações extraído de Vasquez-Rial, 1996.

  4. Estamos desenvolvendo uma metodologia para o estudo da difusão espacial do futebol a partir da ação das redes internacionais e da especificidade de cada lugar, partindo da premissa de que a circulação da informação, dos agentes difusores, a própria definição das rotas de difusão compõem um cenário inseparável da realidade histórica e geográfica. Ver Mascarenhas (2000). Sobre o papel das migrações na difusão do futebol em Buenos Aies, ver a contribuição de Di Giano (1999).

  5. Frydenberg (1996b), ao estudar a origem das denominações de clubes de futebol em B. Aires, verifica a forte influência da língua inglesa, que perdura ainda hoje: River Plate, Racing, etc.

  6. Cf. Câmara Municipal de Uruguaiana, s/d, p. 83-84.

  7. A Nação, 27 de maio de 1912. Os termos entre aspas estão em grafados em itálico no original.

  8. Estivemos na cidade de Uruguaiana entre os dias 31 de maio e 02 de junho de 1999, levantando dados em arquivos locais e entrevistando informalmente diversas pessoas envolvidas com a história do futebol e da cidade. O sr. Andre Alves, vice-presidente do E.C. Uruguaiana, afirma estar sendo realizado um resgate dos arquivos do clube (atas, fotografias etc.) para futuramente se ter maior conhecimento de sua história.Também ele garante a origem “nativa” do clube.

  9. Sobre os persistentes mitos que preenchem a historiografia do futebol argentino, consulte-se a revisão crítica em elaboração por Frydenberg (1996) e outros.

  10. Entrevista com o presidente do clube, sr. “Nilton”, mais de quarenta anos a serviço do clube.

  11. Informação colhida em encarte denominado “Ferro Carril Futbol Club”, s/d, s/a, contido em pasta-arquivo sobre futebol, na Biblioteca Nacional do Uruguai, em Montevideo.

  12. Para ilustrar o quadro de subordinação de Livramento à capital uruguaia, registre-se que as correspondências com destino a outras cidades brasileiras (exceto as vizinhas imediatas) seguiam pelo correio em ferrovia até Montevideo, de onde embarcavam em direção ao Brasil (ALBORNOZ, 1997:106).


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