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No campo das idéias: Gilberto Freyre e a invenção da brasilidade futebolística
Fábio Franzini

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 26 - Octubre de 2000

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     A brasilidade do futebol, portanto, não surge gratuitamente, mas da confluência de uma perspectiva intelectual, teórica, com a verificação empírica do modo “diferente” pelo qual nossos jogadores corriam atrás da bola. A partir do artigo de 1938, Freyre passa a enfatizar em suas novas obras, sempre que possível, esse ponto de vista acerca da relação entre o futebol e a sociedade brasileira: em Problemas Brasileiros de Antropologia (1943), Sociologia (1945) e Interpretação do Brasil (1947), a idéia do nosso estilo de jogo como dança mestiça e dionisíaca se faz presente, praticamente nos mesmos termos apresentados no Diário de Pernambuco. No caso do último livro, vale destacar que os textos que o compõem foram originalmente elaborados para o público externo: são as conferências que apresentou na Universidade de Indiana, em 1944, e que, no ano seguinte, foram publicadas nos Estados Unidos pelo editor Alfred Knopf sob o título Brazil: An Interpretation. E, aqui, Freyre ainda recorre a um autor estrangeiro para reforçar sua exposição:

     Depois que publiquei minhas primeiras notas sobre esses dois assuntos - as maneiras regionais de dançar e de jogar foot-ball, o foot-ball ainda como uma dança com alguma coisa de africano - li excelente página de Waldo Frank onde ele acha que o tango é “uma dança-música escultural”; e ao mesmo tempo diz que, observando um grupo de brasileiros a jogar foot-ball, notou que jogavam procurando levar a bola para o goal como se executassem “a linha melódica de um samba”. Reproduz quase a mesma observação por mim feita em artigo escrito em 1938, que estou certo nunca foi lido por Waldo Frank, assim como outro que publiquei em 1940 sobre as diversas maneiras de dançarem os brasileiros das várias áreas - da Bahia à área misionera do Rio Grande - as danças de carnaval.[...] (FREYRE, 1947: 173)

     É possível dizer, assim, que na primeira metade da década de 40 Freyre consolida sua visão do futebol como um dos paradigmas do Brasil. É em 1947, porém, que se revela o quanto essa visão era influente, com a publicação de O Negro no Futebol Brasileiro, do jornalista Mário Rodrigues Filho. Um dos inventores da moderna imprensa esportiva brasileira, o livro de Mário Filho traça a história do futebol carioca do amadorismo ao profissionalismo, história que, segundo ele, pode ser vista como “brasileira” por ser essencialmente idêntica à dos outros grandes centros esportivos do país. Ao fazê-lo, toma a presença e o papel do negro como fundamentais para o desenvolvimento do “association” entre nós, vendo justamente no conflituoso processo de integração - ou mistura - sócio-racial nos gramados a chave para se entender a nacionalização do esporte importado pelas elites. Uma nacionalização que levou não apenas à sua aceitação por todas os grupos sociais, mas principalmente à criação de um modo diferente de jogá-lo que, é claro, expressaria a brasilidade (FILHO, 1964).

     Não por acaso, é ninguém menos que o próprio Gilberto Freyre quem escreve o prefácio do livro, no qual situa, com razão, a história do futebol no Brasil dentro da “história da sociedade e da cultura brasileira na sua transição para a fase predominantemente urbana”; além disso, avança um pouco mais na oposição entre “apolíneos” e “dionisíacos” rumo à herança atávica da autenticidade brasileira, enxergando no futebol a sublimação de “vários daqueles elementos irracionais de nossa formação social e de cultura” - citando, novamente, a capoeiragem e o samba ao lado da “molecagem baiana”, da “malandragem carioca” e até do cangaceirismo. Segundo Freyre,

     com esses resíduos é que o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é. A dança dançada baianamente por um Leônidas; e por um Domingos, com uma impassibilidade que talvez acuse sugestões ou influências ameríndias sobre sua personalidade ou sua formação. Mas, de qualquer modo, dança. (FREYRE, 1964: XI).

     Também não é casual o fato de que duas figuras centrais dessa primeira edição do livro sejam os jogadores Arthur Friedenreich, filho de pai alemão e mãe negra, e Leônidas da Silva, filho de pai português e mãe negra - ou seja, dois mestiços, que, cada qual em sua época, mudaram o nosso futebol a partir de dentro (na segunda edição, de 1964, juntam-se a eles Pelé, negro, e Garrincha, outro mestiço). Segundo Mário Filho, no final dos anos 10 a figura, mais que o talento, de Fried teria feito com que o país se olhasse no espelho e tivesse uma verdadeira revelação:

     A popularidade de Friedenreich se devia, talvez, mais ao fato dele ser mulato, embora não quisesse ser mulato, do que dele ter marcado o gol da vitória dos brasileiros [na final do Campeonato Sul-Americano de 1919]. O povo descobrindo, de repente, que o futebol devia ser de todas as cores, futebol sem classes, tudo misturado, bem brasileiro (FILHO, 1964: 54).

     Já sobre Leônidas, que nos anos 30 assumiu o trono de Fried na admiração popular, o autor afirma que a cor ajudava a torná-lo “mais carioca e, num certo sentido, mais brasileiro”; isto, por sua vez, fazia com que a pátria se unisse em torno da sua habilidade com a bola nos pés:

     Muito mais brasileiro do que Romeu Peliciari, quase louro, de olhos azuis. O que seria bairrismo do carioca se transformaria em patriotismo do brasileiro, do qual não escapava o próprio paulista, que, em condições de escolher o paulista Romeu como herói do campeonato do mundo [de 1938], acabou escolhendo o carioca Leônidas (FILHO, 1964: 233-4).

     Esses dois exemplos demonstram como Mário Filho deixa bem clara a inspiração freyreana que perpassa todo o seu trabalho. O prefácio do mestre pode ser visto, inclusive, como uma chancela intelectual (a melhor possível, aliás) à sua abordagem historiográfica, uma vez que ele não tinha a mesma formação e respeitabilidade acadêmicas que Freyre. No entanto, independentemente desse aval ter contribuído para sua maior aceitação, é possível dizer que O Negro no Futebol Brasileiro é uma tentativa de se pensar o país a partir do futebol, tentativa essa que não deixa de se encaixar no processo de “redescobrimento do Brasil” iniciado nos anos 30. Tanto que, de acordo com Ruy Castro, este livro seria “uma espécie de Casa-Grande & Senzala urbana, um livro equivalente na historiografia racial ao de Gilberto Freyre” (CASTRO, 1992: 222).

     Nesse sentido, frente a tudo o que foi exposto até aqui, não é exagero algum afirmar que as raízes do país do futebol tal como o conhecemos hoje não se afirmaram e desenvolveram graças aos pés dos jogadores e ao coração dos torcedores apenas, mas também à cabeça dos intelectuais que pensaram o jogo além de seus significados aparentes.


Notas

  1. Cf. FONSECA, 1985: 133-4, passim. Como coloca Hermano VIANNA (1995: 76), “era como se todos os brasileiros estivessem esperando a ‘revolução’ desencadeada por Gilberto Freyre (ou a história adotada por ele que ‘todos’ os brasileiros imediatamente adotaram como espelho)”.

  2. De acordo com Ricardo Benzaquen de ARAÚJO (1994: 75), a expressão “antagonismos em equilíbrio” pode ser tomada como “uma espécie de emblema da argumentação de Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala”, definindo-a como “uma situação na qual as divergências estabelecidas no interior da casa-grande [no qual a senzala também se fazia culturalmente presente] aproximam-se sensivelmente mas não chegam a se dissolver, conformando portanto uma visão altamente sincrética do todo”.


Bibliografia citada

  • ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. (1994) Guerra e Paz. Casa-Grande & Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34.

  • CASTRO, Ruy. (1992) O Anjo Pornográfico. A Vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras.

  • FILHO, Mário. (1964) O Negro no Futebol Brasileiro. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

  • FONSECA, Edson Nery da (ed.). (1985) Casa-Grande & Senzala e a Crítica Brasileira de 1933 a 1944. Recife: Companhia Editora de Pernambuco.

  • FREYRE, Gilberto. (1947) Interpretação do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio.

  • _____. (1964) “O negro no futebol brasileiro”. In: FILHO, Mário. 1964. O Negro no Futebol Brasileiro. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. pp. IX-XII.

  • _____. (1985) Sobrados e Mucambos. 7a ed. Rio de Janeiro: José Olympio.

  • _____. (1967) Sociologia. 4a ed. Rio de Janeiro: José Olympio.

  • LEITE, Dante Moreira. (1983) O Caráter Nacional Brasileiro. História de uma Ideologia. 4a ed. definitiva. São Paulo: Pioneira.

  • MOTA, Carlos Guilherme. (1977) Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). 3a ed. São Paulo: Ática.

  • NETTO, Americo R. (1919) “Innovação brasileira”. Sports, n. 1, ano I, p. 8.

  • VIANNA, Hermano. (1995) O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Jorge Zahar Editor.


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