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Reinventando a Educação Física: uma introdução
Fernanda Paiva

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 26 - Octubre de 2000

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     Sugere também rever a periodização e a relação com os médicos. Há que se distinguir, para compreender melhor, o que significa o pensamento médico-higienista no século XIX e no século XX. Há que considerar que há médicos na corporação militar e militares (e médicos) transitando na área educacional9. Por fim, há que se reconhecer que a presença e importância da educação física no e para o exército parece estar presente desde muito antes do seu vínculo com o Estado Novo. Essas breves anotações precisam ser equacionadas.

     No que tange as relações da educação física com o esporte, os estudos de Melo (1999) e Lucena apontam para a passagem dos oitocentos para os novecentos como um momento crucial de resignificação do que é ser esportivo, em que, principalmente com a ascensão do remo, se consolida uma nova representação de corporeidade, mais afeita aos ares modernizadores e civilizatórios que sopravam na capital da República. Neste sentido, vemos o esporte - e o campo esportivo - ganhar vida muito antes do que se pensava (o marco tradicional era o pós II Guerra). Ele movimenta a imprensa, a vida de vários segmentos sociais e causa polêmica quanto a sua contribuição educativa. Participa assim da construção de sentidos no campo da educação física - e vice-versa.

     Cabe também observar que o esporte já se fazia presente nas escolas muito antes do que se costuma referenciar. Entretanto, abordá-lo a partir da discussão dos conteúdos pertinentes as aulas de educação física no século XIX parece insuficiente. A clareza terminológica está longe de ser consensual na educação física hoje; no século XIX torna-se mais duvidosa, posto que não pode ser pensada a partir das atuais representações. Considero que o problema não é terminológico, já concorrendo para a produção da especificidade em torno da educação física. Essa produção só encontra espaço a partir de uma reordenação de sentidos colocados no plano social e cultural.

     É um outro estudo de Pagni (1997) que analisa essa reordenação. Ele apresentar-nos a atividade física e o esporte como práticas que vão sendo incorporadas como cuidados com o corpo e a educação física como um meio de educação geral que corrobora a formação moral e do caráter do homem. No entanto, analisa que as prescrições médicas do século XIX não foram suficientes para alterar significativamente o modo de vida da população.

     Esse quadro parece só se alterar já no século XX, quando novos grupos intelectuais buscam solucionar os problemas brasileiros respaldados no conhecimento científico difundido - entre outros, o saber médico. As questões em jogo eram problemas relacionados a saúde individual e coletiva e a formação do caráter e da identidade próprias ao homem brasileiro. Se, por um lado, como mostra Moreno, a rígida disciplina ginástica não emplacara, nas escolas e fora delas, como a “maior” manifestação da construção da brasilidade, o esporte se apresenta como uma das vias dessa construção. É ele que congrega jovens, adultos, famílias em seu tempo livre. A grande virada sugerida pela análise de Pagni parece ser a pedagogicização/escolarização dessas práticas físico-esportivas em termos diferenciados das colocações do tipo prescrição médica. O que se quer é um caminho que dilua as resistências esboçadas pela população e o que se vislumbra é o estabelecimento de procedimentos pedagógicos, posto que acreditava-se que boa parte da resistência advinha da ignorância. Tornavam-se imperiosas reformas educacionais que ampliassem o número de escolas e os mecanismos (que não se restringiram a disciplina de educação física) de difusão e incorporação desse novo habitus.

     A sugestão de Pagni é que esse processo ganha vida, dentre outras, pelas mãos de Fernando de Azevedo. Apesar dos esforços, o próprio autor avalia que as idéias e propostas de Fernando de Azevedo “pouco influenciaram os programas de educação física e a prática do esporte desenvolvidas nas décadas seguintes, só alcançando parcialmente suas ousadas pretensões” (p. 80). Ainda hoje observa que essa mudança de hábitos se deu mais em função transformação do corpo - e de todas as atividades relacionadas a ele - em objeto de consumo. Isso fez com que a atividade física perdesse parte da finalidade educativa que, embora discutível, estava presente nas prescrições médicas e posteriores projetos educacionais.

     Pela sua própria historicidade, a questão da mercadorização não estava sequer esboçada no período por ele enfocado. Para Pagni, é a analise da história da prescrição das atividades física e cuidados com o corpo que pode jogar novas luzes para o enfrentamento das discussões a respeito da educação física e do esporte. Concordando no que tange as possibilidades de enfrentamento e não descartando a tenacidade do mercado, quero esboçar, a partir de suas idéias, uma reflexão que enceta para a compreensão da pedagogização e escolarização da atividade física como forte concorrente para o engendramento do campo posto que colocam como sendo da educação as questões da educação física. Essa parece uma reordenação importante a ser observada, tanto no que se refere as condições de possibilidade que permitem a configuração de um campo por volta de 30, como no que se refere a autonomia tardia do campo pensar-se. A questão a ser enfrentada é se, como sugere Oliveira, já abrimos mão - no campo e enquanto campo - de sermos intelectuais da cultura, autofagicamente legando a indústria e ao comércio “do corpo” os destinos da educação - não só física...

     Bracht é um dos autores que tem proclamado e mais defendido a urgência e a indispensabilidade da educação física pensar-se como educação física, colocando em cheque a teorização pertinente a essa prática social. Em sua análise merecem ser revisitadas idéias importantes tais como a necessidade de pensarmos a educação física como um campo que se efetivou acadêmico; o entrelaçamento de contribuições provindas de outros campos que, como sugerido por Góis Júnior, mais do que “empréstimo”, podem se configurar como forças que engendram as condições de possibilidade de um campo da educação física. Por fim, suspeitar que a formulação de que a constituição deste campo acadêmico a partir dos cursos de formação de nível superior parece insuficiente, posto que, ainda que configurado, são médicos, militares, esportistas que “migram” para dentro do “campo” e continuam a nele produzir.

     Foram as manifestações e ponderações elencadas que me provocaram a sistematizar outros dizeres e escrita da história da educação física brasileira. Reinvento possibilidades de síntese a partir de um olhar bourdiesiano...


Pensando com as pistas colhidas: deduções e proposições do trabalho
     A demarcação de que um campo da educação física se configura em torno da década de trinta do século XX é factível, não por um ato teórico inaugural ou pela consideração de um mito fundador, mas pelo acompanhamento, no tempo longo, das discussões científicas e educacionais que, desde o século XIX, debatem os saberes e os fazeres sobre e com o corpo. As continuidades que conformam a especificidade da educação física parecem se concentrar em torno de três eixos. Um que aponta, na multiplicidade de sentidos circulantes, para a legitimação da dimensão educacional e pedagógica, permitindo e favorecendo o processo de escolarização de diferentes práticas corporais. Outro que enceta para o engendramento do campo da educação física com forte marca das práticas do campo acadêmico. O terceiro se traduz, em diferentes abordagens, em tematizações do corpo que, espelhando disputas entre e sobre os fazeres corporais, pedagógicos e pedagogizados, não-escolares e escolares, aparecem como seu marco diferenciador em relação a outros campos.

     Assim, parece ser possível afirmar que o campo da educação física vai se caracterizando como espaço social de disputas sobre as formas autorizadas de pensar e orientar “educações físicas”, que se vale das práticas e representações acadêmicas para conferir importância e legitimidade a essas preocupações, no qual o sentido que vai se impondo como mais representativo entre todos aqueles de ordem educacional e pedagógica circulantes é aquele que se articula com o processo de escolarização de diferentes práticas corporais10. É porque se torna uma disciplina escolar que a educação física pode aspirar ser uma disciplina acadêmica. É pela sua escolarização que crescem os clamores sociais em torno da necessidade de formação específica, o que não dispensou vasta discussão sobre as formas autorizadas de "educar o corpo". Posteriormente, colocando em cheque as representações de corpo e educação que sustentaram durante muito tempo o debate, o próprio campo começa a pensar-se, esboçando passos em direção ao que poderia ser a consolidação de sua autonomia (científica e pedagógica).

     Se procede a colocação explicitando o que está sendo interpretado como campo da educação física - isto é, em síntese, o campo de conhecimento produzido para e pela pedagogização e escolarização de práticas corporais - é possível repensar sensos comuns produzidos pela historiografia. No diálogo com essa produção construí a problemática para um estudo extensivo do campo. Sinteticamente, ela pode ser apresentada em torno de três pontos-chaves.

     O primeiro diz respeito a criação das condições de possibilidade que produzem a idéia da necessidade de uma educação física como algo educacional, pedagogizado e escolarizável. Esse processo atravessa boa parte do século XIX e início do XX. A produção intelectual, embora não única, mostra-se responsável por essa criação.

     O segundo diz respeito ao detalhamento, nos anos trinta e quarenta do século XX, das tensões que concorrem para o engendramento do campo, através do estudo dos seus "mitos fundadores". Nesse interstício se observa uma intensa movimentação em torno daquilo que se denominou de "causa da educação física".

     O terceiro refere-se à discussão das possibilidades de autonomização. Aqui, também acompanhando o processo de produção de conhecimento pelo e para o campo, observa-se um aparecimento tardio, no último quartel do século XX, daquilo que se poderia chamar especificamente de "intelectual da educação física". Entretanto, quando colocadas as novas condições de possibilidade - cuja produção também precisa ser analisada - sugestivas de outro salto qualitativo no seu processo de consolidação, a opção coletiva - não sem tensão - que se apresenta é a da fragmentação da problemática que dá(va) sentido ao campo.

     É que acena como melhor investimento vôos abusados em outras direções...


Notas

  1. “Se a luta de classes (...) caracteriza a dinâmica da história, então, essa mesma luta deve estar no campo do esporte e da atividade corporal e, especialmente na educação física escolar” (Lovisolo, 1998. p. 57)

  2. Em síntese aqui entendido como domínio da área específica (educação física) e das ciências sociais.

  3. A saber, os anais dos Encontros de História do Esporte, Lazer e Educação Física realizados até o ano de 1998, os volumes da Coleção Pesquisa Histórica na Educação Física publicados até 1999, artigos publicados em periódicos e coletâneas representativos na/da área de educação física, bem como principais livros, dissertações e teses que vínculam-se à temática em questão produzidos com a retomada das pesquisas em história da educação física nas últimas duas décadas.

  4. Refiro-me a dois livros publicados em 1988 por esses autores, respectivamente, Educação Física no Brasil: a história que não se conta e Educação física progressista: a pedagogia crítico-social dos conteúdos e a educação física brasileira. O primeiro foi editado pela Papirus, o segundo pela Loyola, ambas editoras paulistas.

  5. A expressão é de Gebara, p. 27

  6. Soares, Carmen Lúcia. O pensamento médico-higienista e a educação física no Brasil: 1850-1930. São Paulo: PUC-SP, 1990 (Dissertação de mestrado). Posteriormente publicado como livro.

  7. Referindo-se a Escola Nacional de Educação Física e Desportos (hoje EEFD), criada no Rio de janeiro junto à Universidade do Brasil (hoje UFRJ), em 1939.

  8. Conforme a análise contida no livro de Ghiraldelli Júnior.

  9. Um indício encontrado diz respeito a pareceres dados por médicos, militares e professores de ginástica à teses apresentadas no I CONGRESSO DE INSTRUÇÃO PRIMÁRIA DE MINAS GERAIS, citado por VAGO (1999). Ver, especificamente páginas 66 e 67.

  10. Tanto no sentido da incorporação mediada pela escola de práticas externas à ela, como no da produção, na e pela escola, de novas atitudes corporais.


Bibliografia

  • BRACHT, Valter. A construção do campo acadêmico da ‘educação física’ no período de 60 até nossos dias: onde ficou a educação física. In Encontro Nacional de História do esporte, lazer e educação física, IV, 1996, Belo Horizonte. Coletânea. Belo Horizonte, 1996. p. 140-148.

  • FERREIRA NETO, Amarílio. A pedagogia no exército e na escola: a educação física brasileira 1880-1950. Aracruz, ES: Facha, 1999.

  • GEBARA, Ademir. Educação física e esportes no Brasil: perspectivas (na história) para o século XXI. In: MOREIRA, Wagner Wey (org.). Educação física e esporte: perspectivas para o século XXI. Campinas, SP: Papirus, 1992. p. 13-31.

  • GÓIS JÚNIOR, Edivaldo. Revista Educação Physica (1932-1945): hábitos higiênicos e cuidados com o corpo. In Congresso Brasileiro de História do Esporte, Lazer e Educação Física, VI, 1998, Rio de Janeiro. Coletânea. Rio de Janeiro: Editoria Central da Universidade Gama Filho: IHGB: INDESP, 1998. p. 294-301.

  • LOVISOLO, Hugo. História oficial e história crítica: pela autonomia da campo. In Coletânea do VI Congresso Brasileiro de História do Esporte, Lazer e Educação Física. Rio de Janeiro: Editoria Central da Universidade Gama Filho: IHGB:INDESP, 1998. p. 54-64.

  • LUCENA, Ricardo de Figueiredo. O esporte na cidade: aspectos do esforço civilizador brasileiro. Campinas: FEF/Unicamp, 2000. (Tese de doutorado)

  • MELO, Victor Andrade de. Reflexão sobre a história da educação no Brasil: uma abordagem historiográfica. Revista Movimento, ano 3, n. 4, 1996/1. p. 41-48.

  • _____, Victor Andrade de. A cidade sportiva: turfe e remo no Rio de Janeiro 1848-1903. Rio de Janeiro: PPGEF/UGF, 1999. (Tese de doutorado)

  • MORENO, Andréa. Pensando a ginástica e o corpo masculino na Belle Époque. In Congresso Brasileiro de História do Esporte, Lazer e Educação Física, VI, 1998, Rio de Janeiro. Coletânea. Rio de Janeiro: Editoria Central da Universidade Gama Filho: IHGB: INDESP, 1998. p. 446-453.

  • OLIVEIRA, Marcus Aurélio Taborda de. A abordagem da educação física escolar discutida a partir da análise da Revista Brasileira de Educação Física e Desportos (1968-1984). In Encontro de História do Esporte, Lazer e Educação Física, V, 1997, Maceió. Coletânea. Maceió, 1997. p. 278-283.

  • PAGNI, Pedro Ângelo. História da educação física no Brasil: notas para uma avaliação. In FERREIRA NETO, Amarílio, GOELLNER, Silvana e BRACHT, Valter (orgs.) As ciências do esporte no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 1995.

  • PAGNI, Pedro Ângelo. A prescrição dos exercícios físicos e do esporte no Brasil (1850-1920): cuidados com o corpo, educação física e formação moral. ?. In FERREIRA NETO (org.) Pesquisa histórica na educação física. Vol 2. Vitória: CEFD/UFES, 1997. p. 59-82.

  • PAIVA, Fernanda. Reinventado a educação física: uma introdução. Belo Horizonte: PPGE/FaE/UFMG, 2000. (texto digitado)

  • SOARES, Carmem Lúcia. Educação física: raízes européias e Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 1994.

  • VAGO, Tarcísio Mauro. Estratégias de formação de professores de gymnastica em Minas Gerais na década de 1920: produzindo o especialista. In FERREIRA NETO, Amarílio (org.) Pesquisa histórica na educação física. Vol. 4. Aracruz: Facha, 1999. p. 51-78.


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