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In-fundamentos: protesto de uma
mulher formada em esportes

Latu Sensu em Treinamento de Modalidade Esportiva Basquetebol - USP, em andamento
Bacharel em Educação Física com habilitação em Treinamento em Esportes
pela Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, 1999

Fernanda de Aragão e Ramirez
fer.nan.da@bol.com.br
(Brasil)

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 24 - Agosto de 2000

     Nunca duvidei que a busca de emprego fosse algo difícil, por outro lado jamais suspeitaria me deparar com situações que fugiriam de uma boa qualificação profissional ou de uma competitividade crescente. Achava, sinceramente, após ter estruturado e planejado toda a faculdade para um determinado fim, trilhar um caminho honesto e livre de preconceitos.

     Relato aqui alguns fatos que aconteceram comigo nesta busca incansável. Perdi a conta de quantas propostas indecentes recebi, não somei todas as pessoas que me ignoraram pelo fato de eu, aparentemente, ser um ninguém, desconhecida e tão pouco lembro-me de quantas vozes ouvi dizer sobre meu ser mulher.

     O que escrevo é suficiente para relatar minha indignação. Não pretendo aqui fazer apologias ou politicagem. Se com isto eu puder despertar, em alguém, um pensamento mais justo, terei meu objetivo satisfeito.

     Todas as histórias são reais, alguns detalhes são suprimidos para que, eticamente, não atinjam diretamente as pessoas que nelas se envolveram.


História 1
    As distinções, provenientes de um mundo extremamente masculinizado, logo começaram a aparecer. Minha primeira condição (entenda-se permissão) para estar estagiando no Local A era ouvir, anotar e falar muito pouco porque afinal eu nunca havia estado na Seleção Brasileira. Palavras de um diálogo que até hoje permeiam os caminhos do meu pensamento:

· Você pretende trabalhar com este esporte?
· Sim, é o que gosto.
· Você foi atleta da Seleção Brasileira?
· Não.
· E ainda quer trabalhar com este esporte?

     Lembro-me de ter ficado por uns instantes paralisada. E o que isso tinha a ver? Eu, último ano da faculdade (de uma boa faculdade!), feita com muito esforço e onde havia passado os dois últimos anos dedicando-me não só à obtenção do título de Bacharel em Educação Física com habilitação em Treinamento em Esportes, mas também ao treinamento de equipes deste esporte. Anos de experimentação, testagem de filosofias de trabalho. O mais importante eram os resultados conseguidos, o adquirir de experiências e o montar de um currículo. Quase entrei em pane. Tudo isso não serviria para nada? Qual teria sido meu erro? Não ter estado na Seleção Brasileira? Não rebati o assunto, afinal o estágio neste local, independente das condições, melhoraria meu currículo.

     Em um outra ocasião percebi que a segunda condição de estar neste mercado de trabalho pertencia exclusivamente ao gênero. Este diálogo foi mais ou menos assim:

· É, você gosta mesmo deste esporte.
· Sim, gosto.
· Dá para perceber que você entende da coisa. Você quer mesmo trabalhar com isto, não quer?
· Quero!
· Com equipes femininas, né?

     Senti o tom irônico deste "com equipes femininas", palavras que permaneceram ecoando na minha cabeça e na minha vida. Ecoam até hoje. Novamente voltei à faculdade. Turma masculina, garotos de 15/16/17 anos. Uma amiga e eu comandando os treinamentos. Tudo em ordem, tudo acontecendo como o planejado. E agora? Por que eu não poderia estar trabalhando com equipes masculinas?

     Neste ponto me defrontei com dois in-fundamentos:

     1. Para se trabalhar com esporte no Brasil deve-se ter jogado na Seleção Brasileira ou, no mínimo, ter estado em campeonatos estaduais. Isso confere credibilidade e não é à toa que jovens profissionais concorrentes a uma vaga de emprego não se intimidam em colocar nos seus currículos seus títulos conquistados ainda enquanto atletas. Agora vem a pergunta: O que determina que um bom atleta será necessariamente um bom treinador/professor?

     2. É destino das mulheres trabalharem com equipes femininas, principalmente e necessariamente. A exceção (por enquanto) dá-se às mulheres que já foram campeãs de alguma coisa, ou melhor, da mesma coisa. Mas isso confere credibilidade a que?


História 2
    Seguindo meu trajeto em busca de uma boa formação universitária lá fui eu para o Local B. O mesmo esporte, também equipes masculinas. A receptividade fora outra. Fui melhor acolhida e a mim fora permitido estar mais próxima aos atletas, mais próxima à quadra e aos treinamentos. Anotava tudo com bastante seriedade. Aos poucos fui percebendo as distinções de conduta por parte dos diferentes técnicos e categorias. Acompanhava os jogos e as equipes sempre que possível.

     Não demorou para que surgissem problemas. Motivo? Uma mulher no meio de homens e garotos. As coisas começaram a se modificar, influência da diretoria: "mulher não pode estar neste ambiente masculino" e não demorou muito para que eu me sentisse desprezada. Um dos diretores me apoiava, confiava no meu trabalho. Confiava no meu trabalho? Lembro-me, quando acabei o estágio, de ter ouvido:

· Você quer muito trabalhar com este esporte, não quer?
· Claro que quero!
· Eu posso arrumar uma vaga para você por aqui, se interessar traga seu currículo.
· Vou trazer!
· Só que tem uma coisa; saia comigo na sexta-feira.

     Entendi direito? Para arrumar um emprego eu deveria sair com o diretor? Aprendi mais uma!

     Terceiro in-fundamento:

     3. Sair com o diretor pode ser a opção (única?) de uma mulher trabalhar com treinamento esportivo em equipes masculinas. Por mais quanto tempo depois esta mulher ainda se sujeitaria ao diretor?


História 3
    Quando terminei a faculdade já estava mais descolada, sabia de algumas coisas, ou pelo menos acreditava que poderia superar o que havia acontecido, superar o fato de ter nascido mulher e nunca ter estado na Seleção Brasileira. Tinha me planejado legal, aproveitado tudo que a faculdade poderia me oferecer. Aproveitei a Empresa Jr., a Atlética e o Centro Acadêmico. Realizei projetos, organizei eventos esportivos e sociais. Estudei muito, fiz uma boa monografia de conclusão de curso, que me rendeu idas a congressos, uma palestra e até um mini-curso. Com 6 meses de formada, poderia me sentir potente, confiante, não fosse o detalhe de me fazer entender como não poderia.

     Tendo realizado esta monografia as pessoas passaram a acreditar (e ainda pensam desta maneira) que eu conduzi minha escolha profissional pelo uso do termo "psi" que aparece no título da mesma. O que pouca gente percebeu, talvez porque não a leram, é que este trabalho diz mais respeito à aprendizagem e à especialização precoce (e isto inclui a iniciação esportiva) do que propriamente da psicologia do esporte que aparece como recurso estratégico de um trabalho realizado em equipes de base.

     Acho que não foi à toa que conheci mais um in-fundamento, através de um diálogo mais ou menos assim:

· Você já fez a sua escolha. Se você quisesse trabalhar com treinamento deveria ter feito sua monografia em treinamento e não em psicologia.
· Como professor? (Não entendia o que estava ouvindo; não posso fazer uma reflexão do treinamento de base através da psicologia?)
· É, você já fez sua escolha, agora você terá que dar conta dela.

     Caramba! Será que ele nunca vai perceber que não quero ser entitulada psicóloga do esporte? Quero trabalhar com iniciação esportiva deste esporte que gosto tanto! Realmente será difícil modificar uma concepção pré-estabelecida, mas... quem a estabeleceu?

     Em uma outra oportunidade me vi mais uma vez cercada pelo meu ser mulher, e ouvi que deveria investir na psicologia do esporte porque sou mulher!

     Sintetizo os novos in-fundamentos:

     4. Uma vez tendo realizado um trabalho em uma determinada área não se pode modificar o rumo; mesmo se esta área entrar como uma sub-área dentro do processo de trabalho. Precisa-se de especializações, estudos específicos e isolados.

     5. Entre o treinamento esportivo e a psicologia do esporte, é mais indicado, para uma mulher, a psicologia do esporte.


História 4
    Me formei, como o previsto, em Educação Física com habilitação em Treinamento em Esportes. Com isso acabei "perdendo" ambos os estágios, como também me desliguei do projeto da faculdade. Agora as coisas seriam diferentes, era preciso arrumar um emprego, pois afinal, tornara-me profissional. Estudara para isso.

     E agora, o que fazer? Começar tudo novamente. Elaborei cópias de meu currículo e lá estavam elas, nas salas de recursos humanos. Lá estava eu, com o mínimo de esperança. Uma coisa sempre me foi certa: só se entra em alguns lugares com indicação e eu não tinha. Esta é a lei da vida, ou melhor, do mercado de trabalho. Até o momento não obtive retorno, comprovando mais um in-fundamento:

     6. Um emprego começa com uma indicação; um bom emprego começa com ma indicação melhor ainda.


História 5
    No decorrer deste período tive a oportunidade de conhecer o diretor do Lugar C. Em breve surgiria uma possibilidade. O processo seria longo mas era quase certo. As cartas estavam marcadas. Fiz tudo o que foi pedido e esperei. Eis que surge um novo diálogo:

· Olha, a atividade que a gente tem para você é esta.
· Não era para a área de esportes?
· Nós preferimos professores homens para lidar com esportes.

     Não fiquei com a vaga por vários motivos: viajaria praticamente todos os dias para trabalhar em uma área fora do meu conhecimento e ainda teria que agüentar o assédio do diretor que a esta altura começava a aumentar e a ficar insuportável.

     Esta história confirma e reafirma alguns in-fundamentos. Eis um resumo:

  1. Para se arrumar um emprego (só no esporte?) deve-se ter uma indicação, independente se o trabalhador for homem ou mulher;

  2. Dentro do esporte o profissional mulher já têm papel pré-estabelecido sendo poucas que conseguiram e/ou conseguirão transpor esta barreira;

  3. Ainda em se tratando do gênero, mulher profissional, sempre será muito difícil a inexistência de assédio sexual oriundo de um insustentável abuso de poder: "eu sou o responsável aqui, ou sai comigo, ou está fora!".


História 6
     Eu poderia estender aqui mais umas cinco ou seis histórias. Mas isto não é relevante; estas já são suficientes, e com certeza, atingirão seu objetivo, que é o relato de uma indignação, um sinal de que está na hora de começar uma nova história, mais humana.

     Estamos na história 6, que ainda não existe e está além de discutir a finalidade de um diploma universitário ou de constatar que o sistema está falido. Tão pouco se apoia no fato de, em pleno ano 2000 (ou seria mesmo 500?), as mulheres ainda enfrentam situações abusivas, oriundas de um machismo atuante em nossa sociedade.

     Esta é uma história, que a partir deste momento, estará voltada para modificar algumas regras que parecem indissolúveis, mas que não são. A disponibilizo para quem quiser, dela, fazer parte.

     Fernanda


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