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O desporto enquanto paz. Contributo para a história de uma idéia

El deporte como paz. Contribución a la historia de una idea

The sport as peace. Contribution to the history of an idea

 

Professor no Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais

e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigador

do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa

José Neves

jose.neves@fcsh.unl.pt

(Portugal)

 

 

 

 

Resumo

          Este artigo analisa e discute o modo como o desporto foi sendo idealizado como um factor de pacificação do mundo e da sociedade da segunda metade do século XX à actualidade. Em particular, analisaremos a inserção do desporto no quadro das relações internacionais do pós-guerra e os processos de modernização do espectáculo desportivo – e nomeadamente futebolístico – nas últimas décadas do século XX. Argumentaremos que, na sua articulação, estes dois processos atribuíram ao desporto um significado pacificador, ao mesmo tempo promovendo-se uma modificação nas formas modernas de concebermos a segurança.

          Unitermos: Desporto. Olimpismo. Futebol. Paz. Segurança.

 

Abstract

          This article analyzes and discusses how sports were idealized as a cause of the pacification of world and society from the second half of the 20th century until the present day. In particular, we will examine both the insertion of sports in the context of post-war international relations and the processes of modernisation of sports’ spectacles – namely soccer – in the last decades of the 20th century. It will be argued that the articulation of these two processes gave sport a pacifying meaning while at the same time bear witness to a modification in the modern forms through which we conceive security.

          Keywords: Sports. Olimpics. Soccer. Peace. Security.

 

Recepção: 27/01/2016 - Aceitação: 03/03/2016

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 20, Nº 214, Marzo de 2016. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Diferentes tipos de discurso têm vindo a estabelecer um vínculo – e dir-se-ia que inquebrantável – entre desporto e paz. Tal ocorre no discurso sobre si produzido pelas entidades desportivas, mas também nos discursos de promoção de políticas públicas e de actividades comerciais que envolvem o desporto. Em qualquer destas instâncias discursivas, tende a considerar-se que o desporto fomenta o convívio e a cooperação universal entre povos e nações, assim como hábitos sociais igualmente conviviais e cooperativos.

    Como emergiu e se consolidou esta ideia de que o desporto é um factor de paz – e tanto na acepção universal como social desta última – é a questão para cujo debate pretendo contribuir através deste artigo, onde procurarei chamar a atenção para dois processos históricos. O primeiro diz respeito à importância que o desporto assumiu no quadro das relações internacionais institucionalizado na segunda metade do século XX, após a experiência traumática das duas guerras mundiais. O segundo processo diz respeito aos projectos de modernização da indústria do espectáculo desportivo que foram desenvolvidos nas últimas décadas do século XX, os quais – sobretudo no domínio específico do futebol – podem ser vistos enquanto resposta a uma experiência de violência igualmente traumática (salvas as devidas proporções): a da violência associada ao hooliganismo. Finalmente, em jeito de conclusão, irei focar a articulação entre ambos os processos, indo assim ao encontro do desdobramento da ideia de paz na sua acepção universal e na sua acepção social.

    Ao desenvolver o meu argumento, utilizarei elementos empíricos resultantes de investigações que tenho desenvolvido em torno da história do desporto em Portugal, assim como o conhecimento resultante da leitura de trabalhos da autoria de colegas que têm estudado outros contextos nacionais.

Das tréguas olímpicas às Nações Unidas

    Ao longo da época contemporânea, o desporto foi uma e outra vez reivindicado como factor de encontro e reunião entre povos e nações. De acordo com várias entidades desportivas, da prossecução das suas actividades decorreria um efeito de suspensão da conflituosidade internacional, à imagem das tréguas decretadas por ocasião dos Jogos Olímpicos da Antiguidade. É sabido que esta atribuição de uma essência pacificadora universal ao desporto é um elemento central do discurso de Pierre Coubertin, mas é também certo que ela ganhou renovado ímpeto no quadro da segunda pós-guerra. Com a nova ordem internacional que então se desenhava, e de que a ONU seria a expressão institucional mais acabada, a ideia de paz constituiu-se como um desígnio tanto mais consensual na medida em que nenhum povo ou território dela poderia ser privada. Na senda de um universalismo reconstruído com base na crítica dos nacionalismos racistas dos anos de 1930, nomeadamente o nazismo, o tempo do desporto viu-se investido de um simbolismo pacifista que nenhum regime, ideologia ou política poderia ou deveria instrumentalizar (Riordan e Arnaud, 1998). De resto, na sequência deste processo histórico, em 2013, a Assembleia-Geral das Nações Unidas proclamaria o dia 6 de abril como "Dia Internacional do Desporto ao Serviço do Desenvolvimento e da Paz". Na ocasião, o então Presidente da Assembleia-Geral, Vuk Jeremic, declarou: “ao proclamar este Dia Internacional, prestemos homenagem às grandes lendas do passado, que através das suas proezas atléticas, carácter e força moral conquistaram um lugar de honra no panteão da glória olímpica”. E, na presença do – à época – presidente do Comité Olímpico Internacional, Jacques Rogge, mais acrescentou ser o desporto “um poderoso aliado da paz e da reconciliação”, dando como exemplo “campeões como Jesse Owens, que desafiou a ideologia nazi com a sua vitória espantosa em Berlim em 1936” (“Assembleia Geral da ONU proclama…”).

    Este vínculo universalista entre desporto e paz não foi, todavia, estabelecido apenas por instituições políticas e desportivas. Ele foi igualmente estabelecido nas dinâmicas mercantis associadas ao desporto. Veja-se o caso da organização dos grandes eventos desportivos internacionais. A sua expansão – isto é, o facto de, ao longo da segunda metade do século XX, mais e mais países fazerem parte da lista de organizadores – reflecte bem a vontade das entidades desportivas levarem o espectáculo a territórios em que o mesmo se encontraria ainda num estado de desenvolvimento incipiente, de caminho encontrando nos Estados aí constituídos parceiros disponíveis a realizar investimento público. Mas a sua expansão reflecte também a força das dinâmicas mercantis directa ou indirectamente ligadas ao espectáculo desportivo. A ideia da apoliticidade do desporto e da sua universalidade foi partilhada por instituições como a ONU e por organismos internacionais como a UEFA, a FIFA e o COI, mas também por grandes empresas globais do desporto ou a ele associadas, que procuraram justamente franquear todo e qualquer limite político-ideológico à sua actividade empresarial. Ao atendermos a acontecimentos como o Campeonato da Europa de Futebol de 1976, que teve lugar na Jugoslávia, os Jogos Olímpicos de 1980, com sede em Moscovo, ou, mais recentemente, os Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim, e o Campeonato do Mundo de Futebol de 2010, na África do Sul, difícil é não perguntar até que ponto o desporto se constituiu como um dos cavalos de Tróia da chegada do capitalismo global ali onde este ainda não afirmara toda a sua potência (Horne, 2015).

    Subjacente à ideia de que o desporto constitui um factor de paz universal, a alegação de sua natureza apolítica consolidou-se a um tal ponto que, mesmo quando intervieram na esfera desportiva, os actores políticos fizeram-no justificando essa sua iniciativa enquanto um esforço no sentido de contrariar tentativas de instrumentalização política do desporto. E, quando falamos aqui de actores políticos, tanto nos referimos aos grandes protagonistas da cena internacional como ao mais anónimo agente local. Por exemplo, em 1951, a direcção de uma pequena associação desportiva da povoação do Couço, uma das localidades portuguesas onde a cultura politica comunista obteve maior hegemonia, recusou apresentar publicamente os seus pêsames pela morte do então chefe de Estado da ditadura do Estado Novo, o Marechal Carmona, alegando tratar-se o clube de “uma associação desportiva e portanto apolítica” (Palacios, 2008, p.440). Efectua-se aqui, é bom de ver, um gesto de mobilização politicamente astuciosa do desporto semelhante ao das acções de boicote olímpico protagonizadas por vários Estados nacionais. Com efeito, estas acções foram quase sempre justificadas argumentando-se que os poderes políticos do país que organizava o torneio em questão estariam a instrumentalizar politicamente o desporto. Por exemplo, os Jogos Olímpicos de Helsínquia de 1952 não contaram com a participação de qualquer delegação da República Popular da China em protesto pelo facto de o Comité Olímpico Internacional haver autorizado a participação de atletas de Taiwan, os quais formaram uma delegação designada República Chinesa. Esta situação que, aliás, levaria à ausência de delegações da República Popular da China em edições posteriores, era vista pelo governo de Pequim como uma afronta política ao princípio universal – válido não importa que regime, ideologia ou política – da autodeterminação nacional. De igual modo, acrescente-se, na edição do torneio olímpico de 1956, realizado em Melbourne, países como a Espanha ou a Suíça primaram pela sua falta de comparência, assim enfatizando o seu protesto contra a invasão da Hungria pelo Exército soviético, ocorrida nesse mesmo ano e tida, ela também como desrespeito pelo princípio de autodeterminação (Wagg e Andrews, 2006).

    Em suma, a ideia do desporto como espaço de encontro pacífico entre todo e qualquer povo e nação inscreve-se no contexto de uma política universalista que se pretendeu, no âmbito do segundo pós-guerra, alheia a divisões imperialistas e nacionalistas, na esteira de um mundo pós-colonial. Se vários estudos sobre o período dos anos de 1930 nos convidam a relativizar a diferença entre, de um lado, as políticas higienistas cultoras da saúde que foram preconizadas pela generalidade dos regimes, ideologias e políticas, e, do outro, as políticas militaristas de destruição da vida que tiveram no expansionismo nazi o seu máximo exemplo (Krüger e Murray, 2003), certo é também que, ao longo da segunda metade do século XX, o inter-nacionalismo desportivo foi frequentemente celebrado por contraposição a formas de nacionalismo tidas como belicistas. Na verdade, o pacifismo foi e é considerado um traço tanto mais definidor do inter-nacionalismo desportivo na medida em que este se constituirá enquanto um processo propício à afirmação incruenta dos sentimentos de identidade nacional (Billig, 1995). Como se a energia antes colocada ao serviço da força militar se convertesse agora, por via do desporto, em fonte de lazer e cultura.

    Acrescente-se, ainda, que a mobilização política da ideia de apoliticidade do desporto não ocorreu apenas por via da participação ou boicote nos torneios. Igualmente implicou-se na interpretação das próprias prestações desportivas. No caso português, o episódio mais conhecido a este respeito é o do Campeonato do Mundo de Futebol de 1966. Torneio realizado em Inglaterra, nele a selecção portuguesa alcançou um inédito terceiro lugar, nas suas exibições destacando-se a prestação de jogadores nascidos nos territórios coloniais, como Mário Coluna e, em particular, Eusébio da Silva Ferreira. Na época, tanto o Governo português, chefiado pelo ditador António de Oliveira Salazar, como parte da imprensa portuguesa procuraram certificar, através do exemplo deste sucesso futebolístico, a inexistência de motivos para conflituosidade nos espaços do Império Português (Coelho, 2001). Poucos anos depois do início da Guerra Colonial que levaria à libertação de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, na Assembleia Nacional, no final do ano de 1966, um deputado do partido único, a União Nacional, fazia a defesa do regime salazarista afirmando: “Portugal tem sido chamado repetidamente aos contactos internacionais que o futebol propicia (…). Ora, quando se trata da prática do desporto, os povos, seja qual for a sua ideologia política e o limite de confiança internacional que essa mesma ideologia tenha traçado e exija, entendem-se sempre na linguagem clara e simples que é própria do desporto e as pugnas que travam não buscam qualquer supremacia à custa do aniquilamento do adversário (…)”. E prosseguia o mesmo deputado: “Assim o tem entendido, e continuarão certamente a entender, as nações, e daqui que se verifique liberdade plena nos sorteios das grandes competições de futebol internacional, em que o ordenamento dos adversários nem teme as distâncias nem as fronteiras, nem impacta em obstáculos políticos ou ideológicos (…) Mercê destes princípios incontroversos, o futebol português tem jornadeado por avantajada parte do Mundo e atravessado até as “cortinas”, tem deixado nessas sete partidas a segura afirmação do seu valor e, principalmente, a afirmação de Portugal como nação disciplinada e ordeira, em que não há discriminação, servindo, assim, com verdadeira elevação, as nobres causas nacionais” (Diário da Assembleia Nacional, 14-12-1966, p. 853.). Vemos em intervenções políticas como esta, em primeiro lugar, a reiteração dos tópicos dominantes na ideia de desporto enquanto factor de paz e, posteriormente, a mobilização da alegada apoliticidade do desporto em proveito político próprio – no caso, em proveito da política colonial portuguesa, de acordo com a qual, e na senda da teorização lusotropicalista de Gilberto Freyre, não haveria discriminação no Império Português, pois que o português seria um colonizador mais tolerante e pacífico do que os restantes colonizadores europeus (Castelo, 1998). Que melhor exemplo da famigerada multirracialidade do Império Português do que uma linha avançada em que os brancos Simões, Torres e José Augusto se associavam perfeitamente ao negro Eusébio?

    Em síntese, as competições desportivas internacionais permitem o desenvolvimento de um cerimonial internacional em que os principais símbolos nacionais são evidenciados ao resto do mundo, exibindo-se bandeiras e hinos, cada Estado podendo afirmar a sua presença ou primar pela sua ausência (Löfgren, 1989). Mas os grandes eventos funcionam como um laboratório de teste à capacidade de afirmação de cada nação também no próprio terreno da performance desportiva. Aqui a ideia de despolitização igualmente articula estratégias de afirmação dos Estados nacionais. A ideia de que o desporto é política e ideologicamente neutral permite que a competição desportiva seja configurada como um lugar em que competem, em plano de igualdade, regimes política e ideologicamente diversificados. Na alegação de neutralidade político-ideológica do desporto, funda-se assim um critério objectivista de medição do grau de desenvolvimento nacional, de tal modo que a capacidade de vencer uma prova acaba por ser simplesmente tida como sinal de evolução do país que o atleta ou equipa representam.

Do combate ao hooliganismo à modernização do espectáculo

    Em 29 de Maio de 1985, na final da Taça dos Campeões Europeus disputada entre a Juventus de Turim e o Liverpool, violentos desacatos no exterior e no interior do estádio de Heysel, em Bruxelas, culminaram na morte de perto de 40 pessoas. Com transmissão televisa para muitos países europeus e mundiais, o acontecimento contribuiu para que o problema da violência entre adeptos de futebol se tornasse uma das questões mais discutidas na imprensa mundial, nas instâncias desportivas e nas instituições políticas. Em particular, o hooliganismo – conotando certas culturas adeptas inglesas – converteu-se desde então num tópico frequente de discursos que, em nome do desporto, afirmaram querer remover deste o que consideravam ser uma sua excrescência. Nomeadamente, o discurso de apelo à “modernização” do futebol fez várias vezes caminho contra o que seria a prevalência no seu seio de fenómenos tidos como primitivos e arcaicos, como o hooliganismo. À “modernização” caberia investir o futebol de uma civilidade que o devolveria à sua essência pacífica.

Estação de Trem Heysel, em Bruxelas. No fundo o estádio. Foto: Acervo RG e TG, março 2013

    De acordo com um estudo seminal do sociólogo Anthony Smith, The End of Terraces – the Transformation of English Football, parte das medidas reformadoras que transformaram a indústria do futebol na Inglaterra dos anos de 1990, e que estariam na origem da Premier League, legitimaram-se contra o espectro do hooliganismo. Foi o caso, nomeadamente, da remodelação ou substituição de velhos estádios – com os seus lugares de cadeira, bancadas e zonas de peão – por novos estádios, exclusivamente compostos por lugares numerados de cadeira. Destes processos resultou uma modificação do perfil de adepto de estádio. King mostrou como, no caso inglês, as transformações dos anos 1990 implicaram directa ou indirectamente que uma certa cultura proletária e/ou popular do jogo – em parte renitente a novas componentes de espectacularização, como por exemplo a obrigação de ver o jogo sentado, e por outra parte incapaz de acompanhar a subida do preço dos bilhetes – perdesse espaço no interior do estádio. Ou seja, ao mesmo tempo que procurou reafirmar-se a ideia de que o desporto seria lugar de encontro e pacificação, e não de conflito e violência, projectou-se o futebol para um novo lugar no panorama cultural, social e económico das modernas sociedades liberais (King, 2002).

    Observando agora o caso português, se é verdade que neste país não se verificaram situações de violência similares às que marcaram o futebol inglês, é também certo que os poucos episódios que levaram ao registo de feridos graves ou mesmo de mortes de adeptos se constituíram motivo de apelos à modernização do espectáculo. E estes apelos induziram igualmente a modificações a nível da política de segurança dos espectáculos desportivos (Ágoas, 2004). Paradigmática desta modificação foi a criação da figura do assistente de recinto desportivo, os chamados stewards, cuja emergência pode ser vista a partir de vários ângulos.

    Em primeiro lugar, pode ser sustentado que a emergência da figura do steward respondeu a uma exigência feita pela UEFA por ocasião da realização em Portugal do Euro 2004. A exigência – que sugere até que ponto os processos de modernização são, em parte, efeito de processos de globalização conduzida a partir de cima – é reconhecida por António Florêncio, director de comunicação do torneio: “o Europeu de Futebol não poderia realizar-se sem a sua presença maciça nos estádios, fundamentalmente porque fardas de agentes da autoridade não são visíveis em campeonatos do Mundo ou da Europa” (Florêncio, 2005, p.84). Na verdade, antes do Euro 2004, a figura do steward não estava sequer prevista na lei. A “função dissuasora dos homens de amarelo”, uma função de controlo e prevenção, foi considerada essencial à nova economia do espectáculo e, ainda nas palavras do dito director, a sua introdução terá sido bem conseguida: “Hoje, quase um ano depois, os Assistentes de Recintos Desportivos são uma presença familiar e aceite com naturalidade nos estádios de futebol portugueses”, comenta o director (Florêncio, 2005, p.85).

    Em segundo lugar, a emergência do steward pode ser tida como resposta ao fracasso do polícia enquanto agente responsável pela manutenção da ordem pública no espaço do estádio. Este fracasso tem o seu lado mais visível na incapacidade do polícia controlar o hooligan, mas também resulta dos protestos que a sua actuação frequentemente suscitou junto de vários outros tipos de adeptos. Deixo apenas um exemplo, de 1981, com uma intervenção policial a tornar-se assunto de debate no próprio parlamento português, pela voz de um deputado: “Testemunha ocular do desenrolar dos acontecimentos ocorridos no final do jogo de futebol realizado no dia 24 de Maio do Estádio da Luz, posso afirmar que aquilo que se antevia como uma “festa”, exprimindo a alegria normal da conquista de um Campeonato Nacional de futebol – “festa” habitual em todos os estádios e com associados e simpatizantes de qualquer agremiação desportiva –, se transformou, por virtude da actuação das forcas policiais – nomeadamente do Corpo de Policia de Intervenção – numa autêntica batalha campal, que durou mais de uma hora e meia. (…). A repressão desencadeada pelos elementos deste corpo da PSP – cuja presença no exterior do Estádio pude verificar já antes do início do encontro de futebol – assumiu aspectos de tal barbaridade e violência que a sua actuação nem sequer poupou crianças, vendedores ambulantes e mulheres gravidas. (…) a fúria, as manifestações de odio, os actos concretos de violência repressiva, o desejo, concreto de bater e aleijar, que pude testemunhar no Estádio da Luz por parte dos policiais do Corpo de Policia de Intervenção, igualaram ou excederam ate as mais violentas repressões policiais de que me recordo durante o regime de Salazar, e Caetano” (Diário da Assembleia da República, 26-6-1981, p. 2703).

    Em suma, a emergência da figura do steward pode ser entendida no quadro de uma nova estratégia geral de segurança, que não implica a ausência de dispositivos de segurança no interior do estádio, mas, sim, a passagem de uma concepção disciplinar do policiamento para uma concepção de controlo, prevalecendo a “função dissuasora” – mas não repressora – dos stewards sobre as fardas da polícia, às quais estará associado um imaginário securitário mas cruento. E esta nova estratégia geral de segurança, por sua vez, é já também promotora de uma nova cultura do espectáculo, tida como própria de uma condição moderna. Em proposta de lei apresentada no parlamento português poucos meses após o Euro 2004, referia-se justamente que o recurso à segurança privada, então objecto de regime jurídico regulamentador da actividade, permite “direccionar elementos das forças de segurança para missões de natureza exclusivamente policial”, adequando-se a segurança privada às “exigências da modernidade e de rigor essenciais a uma área complementar da segurança pública”, adequação de que “a instituição dos assistentes de recinto desportivo e o seu desempenho” era considerada exemplar (Diário da Assembleia da República, 2005, p. 43).

    O steward vem assim corporizar, em primeiro lugar, uma nova solução técnica para o dilema da ordem pública. Como mostrou o historiador Diego Palacios Cerezales, tal dilema atravessa a época contemporânea em Portugal. A tentativa da sua resolução consiste em procurar atingir o máximo de controlo provocando o mínimo de conflito (Palacios, 2004). Procurando controlar a tensão entre quem tem o monopólio da violência e a população, procuram-se soluções de optimização de que constitui exemplo a substituição do polícia pelo steward: enquanto o primeiro faz uso tanto de técnicas repressivas como não-repressivas, o segundo mobiliza, sobretudo, recursos preventivos, empregando a hospitalidade onde se recorria apenas à agressividade. A figura do steward revela-se, pois, efeito e causa da necessidade de um novo modo de policiamento. Este novo modo, por sua vez, é afim à emergência de um novo tipo de público, de uma outra cultura do corpo, que procura uma nova disposição dos adeptos, sentados e individualizados, à semelhança do que tende a suceder em acontecimentos culturais eruditos, e não em pé e/ou em massa. A segurança é agora não apenas policiamento, mas também atendimento. A figura do steward opera assim uma hibridização entre a autoridade agressiva do polícia e a afectividade hospitaleira de um recepcionista.

Conclusão

    Eventos como os Jogos Olímpicos, o Campeonato do Mundo de Futebol ou, no caso deste artigo, o Euro 2004, permitem-nos observar a articulação entre os dois processos históricos que nos ocuparam nas páginas anteriores. Se, enquanto grande evento desportivo internacional, estes torneios se inserem no quadro das relações internacionais instituído a partir do segundo pós-guerra, sendo deste modo elaborados enquanto ritual de convívio e cooperação entre povos e nações, igualmente se constituem oportunidade para o incremento de projectos de modernização da indústria do espectáculo desportivo, projectos desenvolvidos nas últimas décadas do século XX e que fizeram da pacificação social do estádio uma condição de elitização económico-cultural de quem o frequenta. Na articulação destes processos, a ideia do desporto enquanto paz assume um duplo significado, um significado universal e um significado social, constituindo-se veículo de pacificação do mundo e da sociedade, contra os espectros do nazismo e do hooliganismo. Diversos em vários aspectos, estes dois processos de pacificação comungam uma nova prática de segurança e do poder requerido para a garantir. Esta nova prática resulta da passagem de uma prática disciplinar para uma prática de controlo, e de que neste seria testemunha, em última instância, o steward. Trata-se, é claro, de uma passagem que tem expressão em vários outros contextos institucionais e que investe outras tantas figuras e temas, conforme tem sido mostrado por inúmeros estudos realizados na esteira dos trabalhos de Michel Foucault (Gordon, Burchell e Miller, 1991). De resto, podemos por exemplo ver na figura do “capacete azul”, símbolo das mesmas Nações Unidas que fazem do desporto um factor de paz universal, um indício de uma transformação da própria ideia de policiamento, já não apenas repressiva mas também preventiva, já não somente belicista, mas também humanitarista (Negri e Hardt, 2000).

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