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Sobre a periodização tática (parte I): o princípio da

especificidade, o modelo de jogo e o exercício específico

Sobre la periodización táctica (parte I): el principio de la especificidad, el modelo de juego y el ejercicio específico

About tactical periodization (part I): the specificity principle, the game model and the specific exercise

 

Bacharelado em Educação Física

pela Faculdade Metropolitana de Blumenau (Uniasselvi)

(Brasil)

Renan Mendes

renanm92@hotmail.com

 

 

 

 

Resumo

          Esta é a primeira parte de uma série de dois artigos sobre o tema Periodização Tática. Fruto dos meus estudos de caráter informal decidi organizar e compartilhar um pouco do que já aprendi sobre esta metodologia que tanto me fascina. Esta primeira parte é composta por uma introdução ao tema, em seguida esclarecemos sobre como é levado a cabo o Princípio da Especificidade de acordo com esta metodologia. No terceiro capítulo abordaremos sobre a construção e desenvolvimento do Modelo de jogo e por fim, falaremos sobre a importância do Exercício específico para a operacionalização do processo de treino.

          Unitermos: Periodização tática. Especificidade. Tática. Modelo de jogo. Exercício.

 

Abstract

          This is the first of a series of two articles on the topic Tactical Periodization. Fruit of my studies of informal character, decided to organize and share a little of what I have learned about this methodology that both fascinates me. The first part consists of an introduction to the subject, then clarified how is carried out the specificity principle according to this methodology. In the third chapter we on the construction and development of the game model and finally, we'll talk about the importance of specific exercise for the operationalization of the training process.

          Keywords: Tactical Periodization. Specificity. Tactic. Game model. Exercise.

 

Recepção: 21/04/2015 - Aceitação: 09/06/2015

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 20 - Nº 205 - Junio de 2015. http://www.efdeportes.com/

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1.     Introdução

    O processo de preparação das equipes no Futebol envolve um conjunto de procedimentos e situações/decisões que são resultado da forma como se vê e se operacionaliza o jogo e o treino (Gomes, 2008; Tajes, 2014). Contudo, os modelos tradicionais de periodização esportiva não condizem com as necessidades inerentes ao futebol praticado em formação e alto rendimento. Isso justifica a necessidade de uma ruptura conceitual para uma concepção coerente do fenômeno em conta (Pivetti, 2012).

    A denominada “Periodização Tática” é uma concepção de treino e competição para o futebol desenvolvida pelo professor Vitor Frade que apresenta princípios metodológicos próprios que rompem com os que habitualmente vigoram no futebol, e concebe o treino como um processo de ensino/aprendizagem. Nesta concepção, o processo de preparação deve centrar-se, do início ao fim, na operacionalização de um “jogar” através da criação e desenvolvimento contínuo de um Modelo de Jogo e sendo assim, de seus princípios, nos seus múltiplos níveis de organização (Gaiteiro, 2006; Gomes, 2008; Maciel, 2011; Pivetti, 2012; Tobar, 2013; Maciel, 2014). Tal metodologia faz uso de conceitos de complexidade para a compreensão do fenômeno Futebol, pois contempla o objeto na sua totalidade e contexto, e prioriza a modelação sistêmica para o processo dialético de ensino-aprendizagem que envolve o treinador e seus respectivos jogadores, tendo como intuito a construção de um modelo de jogo (Gaiteiro, 2006; Pivetti, 2012).

    Nesta concepção, a periodização do processo confere primazia a Tática, entretanto, deve-se entender a tática não como uma das dimensões tradicionais do jogo, mas sim como a dimensão unificadora que confere sentido e lógica a todas as outras, ou seja, é aquilo que regula o desenvolvimento de uma organização coletiva, sobrecondicionando a variável física, técnica e psicológica (Oliveira, 2004; Gomes, 2008), assumindo-se como modelo, cultura e linha de orientação organizacional do “jogar” (Casarin; Oliveira, 2010). Portanto, a Tática se estabelece como uma Supradimensão, que se assume como modeladora de todo o processo de treino, uma vez que é ela que dá sentido a um “jogar” (Maciel, 2011; Tobar, 2013) dinâmico e complexo, que se manifesta como interdependência organizacional intencionalizada, organização esta que os faz evidenciar uma identidade (Gomes, 2008; Pivetti, 2012; Frade, 2013). Por isso, as preocupações físicas, técnicas e psicológicas surgem por arraste e na respectiva singularidade (Pivetti, 2012).

    A fim de esclarecer essa idéia, utilizaremos o seguinte exemplo proposto por Tobar (2013): imaginemos uma situação de jogo em que um jogador está para receber a bola e realizará um passe a outro companheiro: Ao receber a bola, o jogador avalia suas as opções de ação (tomada de decisão: passa a um companheiro? Conduz a bola para frente? Dribla o adversário?) e decide fazer o passe a um colega que está bem colocado, com condições de fazer progredir o jogo. Ora, dentro deste passe esta presente também a dimensão técnica (gesto motor), mas também o desgaste fisiológico implicado na execução de tal gesto, assim como a dimensão psicológica, dado que o referido jogador decidiu pelo passe em segurança tendo como pano de fundo um sentimento (desejo de garantir a eficácia e a eficiência). Todas estas ações quando estão se inter-relacionando, de maneira intencionalizada (intenção esta possibilitada pela vivência hierarquizada de um “jogar” através do processo de treino), formam o que, em concordância com Tobar (2013), chamamos de dimensão tática. Analisando o jogo de Futebol a partir desta dimensão, o processo de interação assume uma importância fundamental na construção do treino e conseqüentemente do jogo (Oliveira, 2004).

    Assim, o processo tem como base a aquisição de determinadas regularidades no “jogar” da equipe através da operacionalização dos princípios do Modelo de Jogo, fornecendo assim uma organização coletiva, assumindo-se por isso num treino Específico (Gomes, 2008; Pivetti, 2012). Preocupada com tal propósito a Periodização Tática reconhece que o “jogar” é uma realidade em permanente construção tendo como pretensão fazer emergir de tal processo uma intencionalidade coletiva partilhada e intencionalizada (Modelo de Jogo), que ao manifestar-se de tal forma e com regularidade se revela como uma emergência que assume um caráter coletivo, singular, como um aspecto cultural por parte daqueles que o partilham (Gaiteiro, 2006; Maciel, 2011; Pivetti, 2012). Há a necessidade, portanto, de o treino ser encarado como um processo de ensino-aprendizagem (Oliveira, 2004; Maciel, 2014).

    Mas, para que tal seja possível, torna-se fundamental o desenvolvimento de “saberes” (Garganta, 2002), isto é, o desenvolvimento concomitante entre um “saber fazer” (“conhecer como”) com um “saber sobre esse saber fazer” (“conhecer que”). Uma aquisição individual tendo por base referências e propósitos coletivos que ao se manifestarem coletivamente, de forma coordenada, revelam uma verdadeira cultura específica, visto que o que manifestam é parte de cada um e de todos ao mesmo tempo. Estando estabelecida a fusão entre aquilo que é a pretensão, a Intenção Prévia (o sujeito forma conscientemente o projeto antes de efetuar uma ação, em outras palavras, é o fator de aprendizado oriundo do automatismo proveniente da transferência da idéia do projeto de jogo em treinamento), e aquilo que é de fato manifestado, a Intenção em Ato (consciência específica do gesto no momento em que ele vai ser realizado, em outras palavras, caracteriza-se pelo gesto individual circunscrito em uma idéia coletiva no momento presente). A busca de tal forma de expressão coletiva permite que um grupo de indivíduos pense em função da mesma coisa ao mesmo tempo (Costa et al., 2002; Gaiteiro, 2006; Maciel, 2011; Pivetti, 2012).

    Destarte, o principal objetivo deste processo de treino repousa no desenvolvimento integral do jogador, através de uma melhor compreensão do jogo nos seus diferentes momentos. Com a finalidade de os jogadores apresentarem uma melhor qualidade de jogo, este processo de treino procura desenvolver os conhecimentos específicos dos jogadores, coletiva e individualmente, tendo em conta que esses conhecimentos são manifestados pela interação entre as diferentes dimensões por meio dos comportamentos que se tem perante as diferentes situações de jogo. Portanto, nesta concepção, é o treino que cria o jogo (Oliveira, 2004).

2.     O Princípio da Especificidade: Enquadramento concepto-processual

    Logo de início, é importante salientar que o Princípio da Especificidade não se trata de um Princípio Metodológico, resulta da concretização interativa dos Princípios de Jogo e dos Princípios Metodológicos e tudo que envolve tal operacionalização. É a fase visível do processo e pode ser definida como sendo a concretização de uma intencionalidade coletiva num determinado contexto, resultando de tal processo uma identidade de jogo, um “jogar”, singular. É necessário ter a consciência de que se trata de uma noção probabilística identificadora quando se manifesta regularmente, como padrão, sendo por isso simultaneamente uma utopia, pois não existe como reprodução fiel da nossa concepção ideal e nem em permanência, mas em tendência, é uma emergência, por se tratar de uma realidade que resulta da conexão das partes acima referidas e cuja articulação quando feita de maneira organizada torna-se superior à soma das partes (Maciel, 2011). Por isso, a Especificidade pode ser designada como Supra Princípio (Gaiteiro, 2006; Maciel, 2011), e como um Imperativo Categórico (Gaiteiro, 2006; Maciel, 2011; Frade, 2013).

    No futebol, as equipes apresentam formas de manifestação diferentes umas das outras no jogo. Essa diferença é apresentada por padrões de comportamento coletivo e individual que são na verdade invariantes Específicas que cada equipe constrói através do processo de ensino-aprendizagem e de treino. Essa construção é proporcionada através da interação das idéias do treinador e dos conhecimentos dos jogadores, da interação entre os diferentes jogadores e da auto-organização proveniente das interações referidas (Oliveira, 2004). Trata-se dos jogadores aprenderem a falar a “mesma língua” para se jogar bem (Santana; Ribeiro; França, 2014). O conceito de Especificidade acentua, portanto, a necessidade de se trabalhar sempre dentro de um “jogar” pretendido (Tamarit, 2013).

    Para uma orientação didático/metodológica, o “jogar” inicia pela definição dos momentos do jogo (organização ofensiva e defensiva, transições ofensivas e defensivas) e então, cada princípio (princípios defensivos, ofensivos, de transição defesa-ataque e ataque-defesa) e respectiva relação entre eles, norteia um estado funcional requerido para cada situação, fazendo com que as ações coletivas dos jogadores reflitam a identidade geral da equipe, de modo a desenvolver um dado “jogar” (Gomes, 2008; Casarin; Esteves, 2010; Pivetti, 2012).

    Segundo diversos autores, os princípios de jogo são referenciais contextuais ou padrões de comportamento que orientam os jogadores na resolução dos problemas decorrentes da partida, os quais promovem uma lógica de ação nos diversos momentos do jogo, sem deixar de haver representatividade com o Modelo de Jogo, independentemente da escala de manifestação, o que corresponde ao conceito de fractal (Oliveira, s/d; Garganta, 2002; Santos, 2009; Soares, 2009; Pivetti, 2012). Os princípios são, portanto, geradores de auto-organização (Gaiteiro, 2006). Quanto mais ajustada e qualificada for a aplicação dos princípios, melhor poderá ser o desempenho da equipe e do jogador na partida (Teoldo et al., 2009).

    Contudo, essa Especificidade não se restringe à articulação dos princípios dos momentos de jogo, também compreende igualmente a articulação dos princípios, sub-princípios e sub-princípios de sub-princípios de cada momento de jogo (Gomes, 2008). Devemos treinar os princípios, sub-princípios e sub-princípios dos sub-princípios de jogo e a sua respectiva interação em todos os diferentes momentos do jogo, aos níveis coletivos, intersetorial, setorial, grupal e individual, revelando uma organização fractal no seu desenvolvimento (Oliveira, 2010, apud Tobar, 2013), isto é, todos os contextos de exercitação vivenciados, em todas as escalas, deverão ser representativos da Especificidade do “jogar” que se pretende (Tobar, 2013; Tajes, 2014). A fim de se treinar em especificidade, a exercitação deve, portanto, basear-se na aquisição e aplicação de princípios de jogo de modo contextualizado (Pivetti, 2012; Garganta et al., 2013) e, além disso, promover sua articulação de maneira hierárquica segundo o modelo de jogo (Pivetti, 2012).

    Como refere Cunha e Silva (1995, p. 175), “o grau de complexidade pode ser entendido como a quantidade de níveis hierárquicos de organização”. Neste sentido, Guilherme Oliveira (in Gomes, 2008) diz que “os princípios não assumem todos a mesma importância e por isso, há uma hierarquização de princípios”. Desta forma, a operacionalização de um modelo de jogo subentende a Articulação Hierarquizada dos princípios de jogo para eleger alguns objetivos parcelares a serem trabalhados, com o objetivo de fazer emergir um dado “jogar”. Compreende-se assim que mais importante do que uma articulação é estabelecer as prioridades do processo para o “jogar” que se pretende, ou seja, hierarquizar (Gomes, 2008; Casarin; Oliveira, 2010). Portanto, “é fundamental entender a hierarquização dos princípios de jogo em condições de perfeita articulação e congruência” (Casarin et al., 2011, p. 141).

    Conforme referido até aqui, a Especificidade não se remeterá a adaptações fisiológicas, ou a quantificações de ações técnicas específicas da modalidade. Ela estará sempre relacionada com o modelo de jogo do treinador e será sempre considerada como representativa do mesmo (Frade, 2004, apud Ferraz, 2005). Assim, mais importante do que a relação especificidade-modalidade, é a relação Especificidade-modelo de jogo (Faria, 1999, apud Ferraz, 2005). Diante disso, percebe-se que a Especificidade assumida pela Periodização Tática distingue-se da “especificidade” de esforço que a teoria e metodologia do treino Convencional desenvolveu (Gomes, 2008). Pode-se dizer então que a Especificidade é aquilo que diferencia e identifica os jogadores de diferentes equipes. É o que as torna singular em um fenômeno plural (Maciel, 2011). Portanto, não há nunca como contemplação aquisitiva qualquer capacidade condicional, mas sim e sempre, um “jogar” nos seus múltiplos níveis de organização (Frade, 2013).

    Buscando esclarecer a idéia de Especificidade abordada até aqui, Gomes (2008) nos da um exemplo prático: imagine uma equipe que em momento ofensivo desenvolve como princípio de jogo a manutenção da posse de bola através da sua circulação em amplitude. Este é um grande princípio porque contempla a globalidade da equipe no momento ofensivo. Este grande princípio resulta das interações individuais, grupais, setoriais e intersetoriais dos jogadores. Desta forma, o referido princípio de manutenção da posse da bola em amplitude concretiza-se numa relação Específica dos jogadores como por exemplo, entre os defesas, entre a linha média e os avançados, entre o setor de defesa e o médio. E por isso, o grande princípio de jogo é constituído por um conjunto de sub-princípios, de sub-sub-princípios e sub-sub-sub-princípios que se referem às relações mais pormenorizadas entre os jogadores na concretização desse princípio. Assim, os grandes princípios referem-se aos momentos de jogo e resultam da articulação Específica dos sub-princípios com os sub-sub-princípios e sub-sub-sub-princípios (Gomes, 2008).

    De forma sucinta, Oliveira et al., (2006, apud Tobar, 2013) colocam que treinar em especificidade significa subordinar todo o processo à vivência dos princípios que dão sustentação a forma de jogar da equipe que esta sendo treinada. Sendo assim, a estrutura de acontecimentos do treinar deve refletir a natureza da estrutura de acontecimentos do “jogar” (Oliveira et al., 2006, apud Tobar, 2013). Nesta perspectiva, a criação e o desenvolvimento de um modelo de jogo, ou seja, a modelação de um “jogar”, mais do que ganhar um sentido é um imperativo (Tobar, 2013).

3.     O Modelo de Jogo

    O Modelo de Jogo, segundo Maciel (2011) é uma noção central para quem quer compreender o que é a Periodização Tática. O autor refere-se a uma concepção complexa e dinâmica da idéia de Modelo, implicando a necessidade de conceber e perceber a complexa noção de Modelo de Jogo de acordo com a idéia de Modelação Sistêmica (Maciel, 2011). Com base na lógica do jogo e da atividade das equipes e dos jogadores à luz da abrangência estratégico-tática, reconhece-se que o modelo de jogo funciona como diretor da organização do jogo, conferindo coerência aos comportamentos (Garganta et al., 2013). Trata-se de um projeto de organização coletiva de jogo (Casarin; Oliveira, 2010) referente ao modo como se pretende jogar (Mendes; Besen; Ramos, 2014).

    As equipes em confronto operam como coletivos organizados de acordo com uma lógica particular, em função de regras e princípios (Garganta; Gréhaigne, 1999), assim as equipes respondem de forma adaptada aos acontecimentos do jogo (Santana; Ribeiro; França, 2014). Neste sentido, LeDoux (1996) e Changeux (2001) citados por Guilherme Oliveira (2004) referem que o processo de aprendizagem não deve ser abstrato, mas orientado em função dos contextos e interesses desejados, com o objetivo promover maior memorização, organização e aquisição de conhecimentos, como também a melhor recuperação dessas memórias e desses conhecimentos. Assim, a definição de um projeto coletivo de jogo é fundamental para o direcionamento dos processos de ensino-aprendizagem e de treino e, conseqüentemente, para o desenvolvimento dos conhecimentos específicos dos jogadores (Oliveira, 2004).

    Como referem Garganta e Gréhaigne (1999), na aparência simples de um jogo de Futebol esconde-se um fenômeno que assenta numa lógica complexa. Moigne (1990, apud Ferraz, 2005, p. 5) refere que “se pretendemos construir a inteligibilidade de um fenômeno complexo, devemos modelá-lo”. Modelar um sistema complexo é elaborar construções simbólicas de entendimento, a partir das quais poderemos definir projetos de ação em antecipação e por deliberação, prevendo conseqüências e, ao mesmo tempo, garantir um meio de avaliação do processo e da sua eficiência. Um modelo serve para tornar inteligível e entendível algo que é complexo. Desta forma, o modelo permite-nos conceber a inteligibilidade da complexidade e com isso a alusão à organização, pois ao conceber estamos a organizar. Por isso, a construção do modelo deve possuir, intrinsecamente, um potencial de capacidade organizadora. A modelação deve possuir traços concretos e definidos, entretanto, deve ser também uma realidade sujeita a alterações em nome da imprevisibilidade em causa e da constante necessidade de aperfeiçoamento (Moigne, 1990, apud Ferraz, 2005). Assim, um modelo pode ser considerado como uma representação simplificada da realidade e está relacionado com processos construtivos, que estão ligados a concepções de conhecimento de um fenômeno (Le Moigne, 1990, apud Gaiteiro, 2006). Trata-se de produzir esquemas de ação substancialmente pertinentes sobre o futuro, no sentido de conduzir as ações presentes (Gaiteiro, 2006). Pois o sentido do jogo é construído e depende de um modelo de referência (Garganta, 1997, apud, Garganta; Cunha e Silva, 2000).

    Em concordância com Ferraz (2005), ao transportarmos as idéias descritas no parágrafo acima para o Futebol e ao assumi-lo como um fenômeno complexo, facilmente percebemos a necessidade de criar um modelo como concepção tendo em conta a “inteireza inquebrantável do jogo” (Frade, 2004, apud Ferraz, 2005, p. 6) e o princípio da Especificidade como exigência metodológica (Ferraz, 2005). Pois de acordo com o treinador José Mourinho, o mais importante numa equipe é ter um determinado modelo, determinados princípios, conhecê-los bem, interpretá-los bem, independentemente do jogador utilizado. No fundo, é aquilo que o treinador denomina de organização de jogo (Rocha, s/d).

    O Modelo de Jogo é, portanto, aquilo que existe em termos estruturais e funcionais (Frade, 2013), é aquilo que identifica uma equipe (Tamarit, 2013). É o aspecto orientador de toda a operacionalização do processo (Soares, 2009), é o que confere um determinado sentido ao desenvolvimento desse processo frente a um conjunto de regularidades que se pretendem observar. Estabelecer o modelo é fundamental para desenvolver um processo direcionado para um determinado “jogar”, sendo assim, para um processo Intencional. A partir dele criam-se referências, ou seja, princípios coletivos e individuais que definem a organização da equipe e jogadores nos vários momentos de jogo em função do que é pretendido. Trata-se de desenvolver um jogar Específico e não um jogar qualquer (Gomes, 2008). Deste modo, o modelo se caracteriza por ser uma referência que se deseja atingir, havendo a necessidade de construir o presente em função daquilo que se projeta (Tobar, 2013), “o futuro a que aspiro vai condicionar o presente” (Frade, 2013).

    O desenvolvimento do jogo (“jogar”) decorre de uma interação entre uma dimensão mais previsível, induzida pelos princípios de jogo, e uma dimensão imprevisível, materializada a partir da autonomia dos jogadores (Garganta; Gréhaigne, 1999). Pois para Cunha e Silva (1995) é vantajoso que o processo de treino se habitue a conviver com a imprevisibilidade e a fazer desta uma força suplementar, em vez de tentar esconjurá-la. Mas é também óbvio que se não houvesse nada que ligasse o jogo a um território de possíveis previsíveis, deixaria de fazer sentido insistir e investir no futuro, na preparação de uma equipe (Cunha e Silva, 1995).

    Em relação à dimensão mais previsível do processo (princípios de jogo). É por meio da articulação destes princípios que se estabelece a configuração do modelo, fazendo com que o jogo (“jogar”) adquira uma identidade. Deste modo uma qualidade comportamental é definida, esta é promovida pelos princípios de ação sobre os quais são analisados e interpretados os fatos do jogo e o desenvolvimento do processo por parte do treinador e dos jogadores. Assim, é através do modelo que se concebem e avaliam as intenções e os acontecimentos do processo face ao que se pretende (Le Moigne, 1994, apud Gomes, 2008). Além disso, a forma como os jogadores interpretam e concretizam os objetivos condiciona o desenvolvimento do próprio modelo. Assim, a configuração dos princípios é adquirida em função das particularidades que envolvem a equipe e que tornam a evolução do processo singular (Gomes, 2008). Outra utilidade do modelo de jogo se encontra na possibilidade de melhor organizar e sintetizar os conhecimentos, induzindo assim a uma maior eficácia na ação selecionada como ideal pelo jogador, tendo em conta o modelo em que está inserido (Pivetti, 2012).

    Referente à dimensão mais imprevisível do processo (dimensão relacionada com autonomia dos jogadores). Segundo Garganta e Gréhaigne (1999) é importante para os jogadores saber gerir a desordem, pois em uma partida a oposição do adversário gera imprevisibilidade e a necessidade de adaptação aos constrangimentos que decorrem do confronto. Segundo Gaiteiro (2006), devido à imprevisibilidade nem sempre podemos simplesmente aplicar um modelo geral, ou um conjunto de prescrições, mas podemos proporcionar um espaço para liberdade dentro do próprio modelo no qual os jogadores gerem o desconhecido e o imprevisível, recorrendo-se de capacidades criativas individuais e de grupo, enriquecendo o equilíbrio adaptativo da equipe.

    Deste modo, o treinamento para a otimização do rendimento das equipes deve, estrategicamente, contemplar a imprevisibilidade, de modo que haja uma apreensão do jogar pretendido através da operacionalização do modelo de jogo (Pivetti, 2012), concebendo assim, uma organização flexível voltada para o futuro (Gaiteiro, 2006). Devemos saber para onde deve ir o processo (lado “Macro”), mas sem fechá-lo aos detalhes, sem desconsiderar o que os jogadores podem dar de positivo (lado “Micro”) para a concretização do Modelo de Jogo (Borges et al., 2014).

    Portanto, de acordo com Pivetti (2012) os padrões e o modelo de jogo adquiridos pela equipe no processo de treino definem os comportamentos escolhidos e realizados frente a uma determinada situação de jogo. O padrão de respostas coletivas (equipe) influencia o comportamento individual (jogador), assim, o objetivo do treino deve centrar no modo de atuação da equipe, ou seja, como ela se comportará nos diferentes momentos do jogo. Assim, o modelo de jogo é o aspecto essencial, nuclear do processo de treino, assumindo-se como um aspecto fundamental, a ponto de o processo deixar de ter sentido sem a sua existência (Pivetti, 2012; Rocha, s/d).

    Destarte, o modelo de jogo define-se na referência coletiva na qual os jogadores analisam e interpretam as situações do jogo conferindo-lhe uma significação pessoal. É importante que este entendimento individual seja congruente com o entendimento da equipe criando assim uma lógica comum, ou seja, as idéias dos jogadores devem estar em congruência com a cultura geral da equipe, em relação à estrutura, à função e à evolução nos diferentes momentos do jogo. Através desta lógica os fatos do jogo são interpretados segundo uma mesma perspectiva (Gomes, 2008; Pivetti, 2012). Entretanto, sabemos que é necessário tempo até o surgimento de tal funcionalidade, além de uma idéia e um processo que a sustente, sendo que esta fabricação é alcançada através da modelação da realidade que envolve todo o processo (Tobar, 2013).

3.1.     O Exercício Específico: A construção de um “jogar”

    Com base no sentido que lhe é conferido, o exercício assume-se como o principal veículo de manifestação da especificidade (Gomes, 2008), de modo a conduzir a construção de um projeto coletivo de jogo que afete positivamente as múltiplas dimensões e escalas de organização, sobrecondicionando a dinâmica do sistema e configurando a correspondente identidade (Garganta et al., 2013). Por isso, é através dos exercícios que o processo de ensino-aprendizagem/treino ganha consistência e coerência (Oliveira, 2004). Pivetti (2012) explica que a maneira como a Periodização Tática pressupõe o processo de aprendizagem dos princípios de jogo é através da exercitação sistemática de contextos propícios ao aparecimento de situações táticas que a equipe enfrenta na competição nos exercícios de treino. Como essa metodologia tem por princípio treinar em especificidade, de acordo com o modelo proposto, a constituição dos exercícios tem de ser em contexto de jogo (Pivetti, 2012).

    Seguindo esta lógica, o exercício deve ser um contexto que privilegie determinados acontecimentos que fazem referência ao modelo de jogo da equipe. Assim, é fundamental que se criem condições para que o contexto de treino concorra para a qualidade de aquisição dos princípios de jogo pretendidos para cada momento, segundo o modelo tático adotado (Pivetti, 2012). Uma forma de desenvolver nos jogadores os conhecimentos desejados é, durante o processo de treino, criar situações que evidenciem os padrões de jogo desejados e assim, os comportamentos pretendidos pelo treinador. Este tipo de direcionamento do treino vai provocar um aumento significativo do surgimento dos padrões de jogo desejados e, se bem direcionados pelo treinador, um aumento dos comportamentos pretendidos por ele. Estes fatos vão permitir um desenvolvimento dos conhecimentos, tanto processuais (como fazer) como declarativos (o que fazer), relacionando-os com o desejado. Entretanto, a repetição sistemática dos padrões de jogo desejados deve ser promovida em situações de grande variabilidade, pois são esses que promovem constantes problemas e conseqüentemente capacidade para resolvê-los (Schmidt, 1991 & Mendes, Barreiros et al., 2002, apud Oliveira, 2004). “Porém, essas situações problema e variabilidade de prática devem ser direcionadas e balizadas pelas idéias de jogo que o treinador tem, tanto para a equipe como para os jogadores” (Oliveira, 2004, pg. 105).

    Referente a aquisição da forma tática, vale ressaltar que nos exercícios propostos, as dinâmicas de contexto viabilizam que as adaptações bioquímicas e neuromusculares sejam específicas ao cumprimento coletivo dos princípios de jogo. Além disso, as técnicas individuais exigidas são condizentes com aquelas utilizadas em função da unidade coletiva da equipe em um determinado contexto (Pivetti, 2012). Deste modo, o objetivo de cada exercício é sempre o princípio tático requerido, por isso os aspectos ditos “condicionantes”, ou seja, os físicos, os técnicos, os emocionais e psicológicos, provêm de maneira natural, por arraste, em função de um propósito que é o “jogar” (Gaiteiro, 2006; Pivetti, 2012).

    Por seu lado, a operacionalização do modelo de jogo, como já referido anteriormente, subentende a articulação hierarquizada dos princípios de jogo. Com este intuito, Guilherme Oliveira (in Gomes, 2008) cria exercícios propensos ao surgimento de determinadas situações através das quais os jogadores e equipe adquirem determinados comportamentos. O autor esclarece, dando um exemplo de como desenvolve os sub-princípios da transição defesa-ataque: “crio situações em que acontecem muitas transições e direciono as escolhas dos jogadores para a forma como quero que eles joguem porque eles ao identificarem isso em situação de treino também o vão fazer em situação de jogo”. Desta forma, direciona as escolhas dos jogadores para criar o jogo pretendido (Gomes, 2008).

    Sendo assim, para que o processo de treino ocorra na direção pretendida, os exercícios e os conteúdos que permitem adquirir os conhecimentos para o reconhecimento e atuação no jogo, transformando-o em invariantes (princípios de jogo), devem cumprir a lógica das escalas fractais, isto é, independentemente da complexidade que possam assumir devem ser representativos da Especificidade do jogo da equipe. Assim, os exercícios e conteúdos que fazem parte do processo de ensino e de treino devem evidenciar o jogo que se pretende. A fractalidade do processo esta, portanto, dependente da intencionalidade da situação e da representatividade que esta possa ter com o jogo que o treinador pretende (Oliveira, 2004).

    Conforme esta perspectiva, o exercício é um contexto que privilegia determinados acontecimentos em função de um objetivo. Como refere Gomes (2008) se o treinador deseja que a equipe realize a transição ofensiva para uma zona de segurança deve criar situações em que os jogadores sejam estimulados a fazerem isso com regularidade. Entretanto, para que isso aconteça não basta que o treinador diga o que pretende, é fundamental que a situação seja adequada. Do contrário, vamos imaginar que para o referido sub-princípio de retirar a bola da zona de pressão após recuperá-la, o treinador cria um jogo de 10 contra 4 defesas e 2 médios num espaço grande. Devido à superioridade numérica, o exercício promove um jogo fundamentalmente de manutenção e circulação de bola e sendo assim, de organização ofensiva. Portanto, trata-se de uma situação que não está configurada para a realização de transições constantes. Por isso os jogadores não vivenciam as situações de transição e assim, o exercício não incide sobre os comportamentos pretendidos pelo treinador (Gomes, 2008).

    Além disso, é fundamental que o contexto do exercício crie condições para a qualidade do comportamento dos jogadores (Gomes, 2008). A fim de esclarecer esta idéia, a autora nos da o seguinte exemplo: imaginemos que o treinador cria um exercício de 6 contra 6 em espaço reduzido onde acontecem muitas transições. Entretanto, esta situação pode não ser Específica, ou seja, não promove as transições para as zonas de segurança como quer o treinador porque apesar de haver muitas transições, estas podem acontecer fundamentalmente em profundidade. Diante dessa situação, o treinador tem de intervir para que o exercício ocorra em direção ao que pretende, ou seja, criar condições para que os jogadores ao optarem pela transição em profundidade percam a posse da bola, porque se isso não acontecer, os objetivos ficam comprometidos pela dinâmica do exercício. Fazendo-os perderem a bola ao optarem pela transição em profundidade, gerando assim um insucesso, o treinador pode corrigir os comportamentos dos jogadores tendo em vista a transição em segurança. Desta maneira, corroborando com Gomes (2008) e Tobar (2013), o treinador direciona os jogadores para o que pretende, acentuando ou inibindo desempenhos conforme configura o exercício e também conforme intervém no mesmo.

    De acordo com o Supra Princípio da Especificidade, um exercício só é Específico se os jogadores entendem seus objetivos e sua finalidade dentro do jogo, tornando-se imprescindível a Intenção Prévia desse “jogar” (Tamarit in: Miranda, 2014). Sendo assim, para que as situações apresentadas no treino sejam realmente Específicas, é necessário que haja uma permanente interação entre os exercícios propostos e o Modelo de Jogo adotado pela equipe e os respectivos princípios que lhe dão corpo e sentido (Oliveira, 2004).

    Contudo, às vezes os exercícios estão completamente adequados ao modelo de jogo, no entanto, devido a não intervenção ou a intervenção inadequada do treinador eles podem tornar-se desajustados (Oliveira, 2004). Neste processo a qualidade do exercício é determinante, mas este é apenas potencialmente modelador/aquisitivo, há a necessidade de alimentá-lo para maximizar as suas potencialidades e o exercício é alimentado, dentre outras coisas, pela qualidade de intervenção (Romano, 2007; Maciel, 2011; 2014). Somente desta forma torna-se possível que a configuração dada ao exercício, juntamente com a intervenção condizente durante a exercitação, façam surgir interações que ao acontecerem façam emergir os critérios subjacentes aos nossos princípios de jogo (Maciel, 2011). Sendo assim, um dos aspectos determinantes na modelação do “jogar” pretendido é a intervenção e a liderança do treinador, a forma como conduz o grupo de jogadores, onde poderá ser uma intervenção errada, ou na hora errada, ou não dar uma intervenção frente a uma situação ocorrida durante o processo, que poderá colocar tudo em causa (Tobar, 2013).

    Na segunda e última parte deste artigo, iremos falar sobre a importância da intervenção específica do treinador para o cumprimento do princípio da Especificidade na construção de um Modelo de Jogo. Também será abordada a importância da Descoberta Guiada como ferramenta de intervenção e a influência das Emoções (marcadores-somáticos) no desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem/treino.

Bibliografia

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 20 · N° 205 | Buenos Aires, Junio de 2015  
Lecturas: Educación Física y Deportes - ISSN 1514-3465 - © 1997-2015 Derechos reservados