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O saber na Educação Física a partir da fenomenologia da percepção

El saber en la Educación Física a partir de la fenomenología de la percepción

 

Doutorando em Educação / Unesp – Presidente Prudente

Prof. do IFMS-Três Lagoas

(Brasil)

Alan Rodrigo Antunes

alanantunes@ig.com.br

 

 

 

 

Resumo

          O trabalho apresenta um posicionamento a respeito da presença do corpo físico na construção do saber na Educação Física escolar. Apresentamos uma discussão a respeito do entendimento por fenomenologia e fenomenologia do corpo e depois relacionamos com a linguagem, a corporalidade e o saber. Nesta visão a percepção, a intencionalidade, a continuidade afetam a relação entre esquema e imagem corporal, que são modos pelos quais a representação de nosso próprio corpo é usada e que sofre fortemente a influência do desejo de usar a representação do corpo como imagem, ou seja, o impacto do nosso próprio comportamento sobre outras pessoas, sendo que esta representação da imagem corporal apresenta intima relação com o corpo físico em manter o equilíbrio e a presteza para agir. Outro ponto importante está na corporalidade como algo constitutivo, construído na e pela linguagem, assim apresenta o caráter de possibilidade já que está num interem entre o meio e o ser humano, o que possibilita a coordenação de ações consensuais mobilizadas por meio das emoções. Assim, temos a necessidade de ingressar num mundo por meio do aprender, desenvolvendo nossa identidade, estabelecendo uma relação com o saber que acontece de várias formas específicas e todas por meio da atividade do sujeito, de relações com ele mesmo e com os outros. Essas relações são possíveis por meio de nossas ações, e a mobilizações se refere às ações possíveis do outro em diferentes domínios o que permite a expressão do saber em diferentes domínios específicos. Portanto, chamamos a atenção para importância da ação na constituição do sujeito, já que a linguagem desenvolve-se por meio de coordenações de ações consensuais, na qual a espécie humana é definida como um modo de viver em um meio.

          Unitermos: Educação Física. Fenomenologia. Sujeito.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 196, Septiembre de 2014. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Trata-se de um trabalho que busca discutir o saber na Educação Física escolar, i.e., um posicionamento a respeito da presença do corpo físico na construção do saber. Antes de mais nada há necessidade de apresentar o que entendemos por fenomenologia e fenomenologia do corpo, para depois relacionar com a linguagem, a corporalidade e o saber.

    Com a proposta de analisarmos o tema a partir da fenomenologia concordamos com Costa (2004, p. 55) na apresentação do conceito do tema como “a maneira como as coisas, estado de coisas, processos ou eventos físicos e mentais aparecem à consciência do sujeito como tendo sentido”. O autor utiliza o termo corpo, em particular o corpo físico, como um dos componentes do conflito psíquico e não apenas um pano de fundo para embates entre afetos, pulsões, representações e instâncias subjetivas.

Fenomenologia do corpo

    Costa (2004), na discussão sob a fenomenologia do corpo, recorre as idéias de Merleau-Ponty, Gibson, Straus, Todes e Campbell para mostrar que as ações intencionais são expressões físicas e psíquicas indissociáveis. Utiliza o termo corpo físico de forma distinta ao corpo anatomofisiológico, sendo este descrito “como a soma das trocas metabólicas com o ambiente que visam à auto-regulação dos organismos individuais e à reprodução da espécie” (p. 56). Merleau-Ponty (apud COSTA, 2004, p. 57) mostra que as ações intencionais não são exclusivas de “uma mente” separada da materialidade corporal. Neste sentido, o “corpo vivido” teria como a papel a unificação das atividades físicas e psíquicas, consideradas indissociáveis; e a intencionalidade que estaria presente apenas na mente numa inspiração cartesiana é questionada, já que a capacidade de produzir atos com sentido e que visam à interação do sujeito com o meio, é perfeitamente realizável pelo corpo, ou seja, o corpo não reagiria apenas a estímulos de forma cega e reflexa, mas seria capaz de renovar suas ações de forma equivalente as funções mentais. Assim, Costa (2004) acredita numa continuidade entre o físico e o mental, porém, discorda de Merleau-Ponty na idéia de “corpo vivido” por minimizar a força de sua própria invenção teórica, o conceito de intencionalidade motora.

    Outra discussão apresentada por Costa (2004) está na atividade relacional do corpo, ou seja, o ajustamento criativo ao ambiente aconteceria em função de dois processos homeostáticos: o esquema corporal e a imagem corporal. O esquema corporal se daria à revelia de qualquer experiência intencional, seria automática, sem nenhuma indicação ao “eu corporal”, já a imagem corporal teria todas as qualidades de um fato mental: intencionalidade, privacidade e representacionalidade. Intencional por referenciar um outro que lhe é exterior; privada por acompanhar à existência ou emergência do eu; e representacional por ser linguisticamente organizada, de modo reflexivo ou pré-reflexivo, consciente ou inconsciente. Descrita dessa forma, a separação entre esquema corporal e imagem corporal reforçam as teses que negam ao corpo físico a intencionalidade.

    Para Gibson (apud COSTA, 2004, p. 60-61) a distinção entre propriocepção ou interocepção e exterocepção não condiz com a realidade. A interocepção é entendida como a orientação do movimento no eixo gravitacional, i.e., estruturaria a experiência do corpo próprio; contudo na exterocepção os sentidos estariam voltados para a percepção da visão, audição, tato, gosto e olfato, portanto, estruturaria a experiência dos fenômenos extracorporais. Porém, na concepção ecológica de Gibson – valorização do ambiente na constituição eu corporal - a experiência do corpo e constituição do eu são um só e mesmo fenômeno, e são formas diversas do corpo próprio se autoperceber, “A interocepção nos põe em contato com os aspectos mutáveis e persistentes do corpo e a exterocepção com os aspectos mutáveis e persistentes dos objetos e acontecimento extracorporais” (p. 61). Assim, o esquema corporal inclui obrigatoriamente elementos intencionais, e os sentidos interoceptivos é constantemente influenciado pelos sentidos exteroceptivos. Por conseguinte, os dois pólos concorrem para a formação da experiência do eu corporal, e tanto a interocepção quanto a exterocepção são corpocêntricas ou egocêntricas. Portanto, a visão gibsoniana de propriocepção reconfigura o esquema corporal, atribuindo a este a intencionalidade e a privacidade exclusiva da imagem corporal.

    Ainda na discussão perante a fenomenologia do corpo, há crítica feita por Straus (apud COSTA, 2004, p. 63-64) à teoria clássica quanto a natureza das sensações. O autor não separa as sensações como acontece no campo terapêutico ou na pesquisa empírica das ciências biológicas, “Qualquer sensação é uma maneira que tem o eu corporal de se relacionar com o mundo pelo movimento” (p. 63). Costa (2004) faz uma aproximação do vocabulário utilizado por Straus com o de Gibson, assim a experiência das sensações faz correspondência à experiência exteroceptiva de Gibson, sendo ambas modalidades intencionais de automovimentação corporal na comunicação ou interação com o ambiente. Como resultado, o esquema corporal envolvido na automovimentação e na experiência das sensações compreendem um componente que Merleau-Ponty chama de “arco intencional”, e não simplesmente uma manifestação reflexa.

    Nesse ínterim de crítica ao conceito de esquema corporal e imagem corporal, Todes (apud COSTA, 2004, p. 65-69) apresenta como responsividade o que até então chamamos de intencionalidade física ou motora; para ele “Responsividade é o substantivo coletivo que subsume os desempenhos corporais básicos do organismo humano em sua automovimentação no ambiente” (p. 65). Nessa concepção é pelo automovimento que são criados os termos que compõem a gramática da intencionalidade, a percepção de tempo, necessidade e satisfação. Por exemplo, a frente e o dorso do corpo, em inércia, são apenas dois lados do corpo-objeto, porém ao movimentar-se o deslocamento adquire uma significação temporal, assim a automovimentação e a divisão do corpo possibilita a apreensão do sentido da “passagem do tempo”. Além desse termo, o autor utiliza também o sentido da “circunstância espacial”, na qual a direita e a esquerda do corpo adquirem esse sentido quando giramos o corpo no mesmo lugar, percebemos, então, como uma “instância” em meio às diversas “circum-stâncias”.

    A responsividade,de acordo com Tode (apud COSTA, 2004, p. 65-69) acontece por meio de dois processos físicos de ajustamento do corpo ao trabalho de análise profunda do ambiente ou de prospecção do ambiente, sendo que os dois processos são o de poise ou preparação para agir e de equilíbrio. O equilíbrio permite o ajustamento ao ambiente de forma imediata por meio de mudanças internas, já o poise é mediatizado pelas experiências anteriores – antecipar objetos de satisfação de necessidades - baseados nos hábitos sensórios-motores adquiridos ao longo da vida ou do processo adaptativo individual. Com efeito a automovimentação permite ao corpo explorar o entorno, e em virtude faz desse um campo-de-vida habitável e durável, o que significa percebê-lo como um ambiente no qual a satisfação antecipada poderá acontecer, i.e.,

    rememorar os gestos bem-sucedidos na repetição ao mundo, tentando repetir os movimentos logrados na imaginação ou na ação motora. A expectativa de sucesso na repetição do movimento real ou imaginado é o que leva o eu a manter vivo o interesse pela realidade. Um ambiente que se nega, de modo sistemático, a se “tornar um mundo” nos é indiferente ou desconhecido” (TODE apud COSTA, 2004, p. 67).

    Algumas perguntas são levantadas por Tode (apud COSTA, 2004, p. 65-69) a respeito da satisfação e necessidades: o que faz de um ambiente qualquer um “mundo de satisfação e necessidades”? A resposta surge por meio do reconhecimento de que há um percebedor (utiliza o termo percipient) que se automovimenta na busca de experienciar sensações. Outra pergunta que surge é por que a automovimentação garante ao percebedor que ele é uma agência autônoma, inconfundível com qualquer outra? A resposta está na conseqüência da autolocomoção que permite o eu corporal experimentar o mundo de outra forma e perceber novos aspectos da realidade das coisas e eventos. Mas, o eu corporal apesar da alteração da aparência permitida pela mobilidade corporal, percebe que os objetos apresentam um ordem fixa, logo percebe o que é idêntico em meio ao que é variável. Contudo, a livre reversão da mobilidade conjectura um sentido de direção ou orientação invariável, atribuído pela irreversibilidade da constituição anatômica no eixo horizontal e vertical de movimentação. Todes afirma, segundo Costa (2004, p. 69), que “o eu corporal busca confirmar a sua identidade na mudança incessante das experiências com o mundo”, e, também, que todas as demais formas de satisfação tem origem nesse impulso primordial de autopercepção no ambiente.

    Em conformidade com os autores discutidos, Costa (2004), apresenta por fim a concepção de Campbell no debate a respeito da diferença entre esquema e imagem corporal. Campbell traz a discussão para o terreno da representação e da intencionalidade da representação. A representação aparece como sinônimo de autopercepção, e esta nada mais é do que manifestações fenomênicas distintas de fatos físicos e mentais, logo é a forma de autopercepção que o corpo assume nas diversas interações com o meio, sendo a forma e o conteúdo da representação decidido pela eficácia prática de ação antecipada ou efetivada. Campbell defende a idéia de que temos não somente um esquema corporal, mas uma imagem corporal, em virtude de reconhecermos a maneira pela qual o nosso comportamento afeta causalmente outros, com efeito apresenta modos pelos quais a representação de nosso próprio corpo é usada, podendo ser usada para avaliar as próprias percepções e ações – esquema do corpo – como para guardar o impacto do comportamento que temos sobre outras pessoas – imagem corporal. Por fim, a autopercepção como imagem corporal “é perceber que podemos induzir mudanças das atitudes dos outros em relação a nós mesmos” (CAMPBELL, apud COSTA, 2004, p. 71)

    Assim, os autores utilizados por Jurandir Freire Costa para elucidar a fenomenologia do corpo trazem a tona o conflito entre intencionalidade mental e intencionalidade física. O foco das discussões de Costa está numa abordagem psicanalítica dos conflitos centrados na corporeidade, porém acreditamos que tais intercorrências, discussões e considerações podem contribuir para o estudo e análise do saber na Educação Física escolar centrado na corporeidade. A idéia de corpo físico não apenas como anatomofisiológico, mas como continuidade de expressão das atividades físicas e mentais; a presença da intencionalidade, privacidade e representacionalidade na representação do eu corporal; as sensações como uma maneira do eu corporal se relacionar com o mundo pelo movimento; automovimentação como possibilidade do corpo perceber o ambiente no qual a satisfação antecipada poderá acontecer; e a percepção de que é possível induzir mudanças das atitudes dos outros em relação a nós mesmos são pontos chaves para a discussão da fenomenologia do corpo.

    Por tanto, a percepção, a intencionalidade, a continuidade afetam a relação entre esquema e imagem corporal, que são modos pelos quais a representação de nosso próprio corpo é usada e que sofre fortemente a influência do desejo de usar a representação do corpo como imagem, i.e., o impacto do nosso próprio comportamento sobre outras pessoas, sendo que esta representação da imagem corporal apresenta intima relação com o corpo físico em manter o equilíbrio e a presteza para agir.

Linguagem e emoção

    Maturana (1998) emprega a linguagem como um dos elementos de estudo da racionalidade. Salienta que o fundamento emocional da racionalidade não é uma limitação, mas para explicar essa tese o autor discorre sobre a origem do humano e da linguagem. Há 3,5 milhões de anos havia primata bípedes, com um cérebro muito menor que o nosso, viviam em grupos pequenos, eram comedores de grãos. Porém, Maturana não concorda com o argumento de que o cérebro tenha se desenvolvido pela capacidade de manipulação, já que outros animais possuem essa capacidade, “O peculiar do humano não está na manipulação, mas na linguagem e no seu entrelaçamento com o emocionar” (1998, p. 19).

    Nesse sentido a hominização do cérebro primata está relacionada com a linguagem. E a origem da linguagem? Normalmente utiliza-se o conceito de linguagem como um sistema simbólico de comunicação, porém Maturana (1998) defende que tal afirmação impossibilita de vermos que os símbolos são secundários a linguagem. O autor apresenta a concepção de que a se linguagem acontece no curso das interações entre as pessoas existe um fluir de coordenações de ações. Como exemplo cita a situação na qual duas pessoas estão conversando e não podemos ouvir os códigos simbólicos, e pode-se saber da existência de uma conversa quando o curso de suas interações se constitui num fluir de coordenações de ações. Assim, há linguagem quando há coordenações de ações ou comunicação, mas não qualquer coordenação de ação e sim coordenação de ações consensuais.

    Para explicar a coordenação de ações consensuais, Maturana (1998, p. 20) utiliza o argumento no qual a espécie é definida pelo seu modo de vida, “uma configuração de relações variáveis entre organismo e meio, e que se conserva, geração após geração, como um fenótipo ontogênico, como um modo de viver em um meio, e não como uma configuração genética particular”. Essa definição contrapõe-se a biologia moderna, sendo que para esta a espécie aparece definida como uma configuração genética mantida através da história reprodutiva de uma população ou de um sistema de populações, na qual a mudança na configuração genética – evolução – mantém-se conservada (ibidem p. 20). De fato, a mudança evolutiva defendida por Maturana (1998) constitui-se numa nova linhagem ao mudar o modo devida que se conserva numa sucessão reprodutiva, na conservação de novos fenótipos ontogênicos, logo o fenômeno é centrado na mudança do modo de vida e na sua conservação.

    Por conseguinte, para Maturana (1998) a evolução da espécie não envolve competição, mas a manutenção do modo de vida – fenótipo antogênico -, a saber, os animais não competem por alimentos, pois entre dois animais o que acontece com o que come não é condição que o outro não coma, porém com o ser humano a competição é cultural quando o não obter o que um obtém é fundamental para manter essa relação. Na conservação do modo de vida surge o linguajar que não requer nada especial e nesse processo de coordenações de conduta que ocorre o compartilhar de alimentos “recorrentes da sensualidade personalizada, que trazem consigo o encontro sexual frontal e a participação dos machos na criação dos filhos, presentes em nossos antepassados há 3,5 milhões de anos” (ibidem p. 21).

    Maturana (1998, p. 22), ao escrever referente às emoções, defende uma concepção onde as emoções têm relações ao domínio de ações que um ser se move, “Notamos que isto é assim pelo fato de que nossos comentários e reflexões, quando falamos de emoções, se referem às ações possíveis do outro, que pode ser um animal ou uma pessoa”, assim a conotação ao falar de emoções compreende os diferentes domínios de ações possíveis nas pessoas e animais, bem como as diferentes disposições corporais que os constituem e realizam. Para o autor não há ação humana sem uma emoção que a estabeleça como tal e a torne possível como ato, o que acontece nas interações recorrentes no plano da sensualidade em que surge a linguagem, neste seria necessário uma emoção fundadora, o amor que faz do outro um legítimo outro na convivência. A linguagem como coordenação de ações consensuais não pode ter surgido na agressão e o que nos leva a ação é a emoção e não a razão. Exemplificando, ao ouvirmos alguém afirmar que “é racional e não emocional, podemos escutar o eco da emoção que está nesta afirmação, em termo de um desejo de ser ou de obter”, e ao usarmos a expressão tradicional “Pelo seus atos os conhecereis”, fica a pergunta “O que é conhecermos observando as ações dos outros?”, nada mais é do que conhecermos as emoções como fundamentos das ações (MATURANA, 1998, p. 22).

A corporalidade e o saber

    Começamos a discussão com o que Maturana (1998) compreende a respeito da corporalidade, que será retomado mais a frente, já que se faz necessário relacionar com o saber. Assim, a corporalidade é algo constitutivo, que apresenta o caráter de possibilidade e não de limitação, que será retomado mais a frente. Entende que é por meio da realização como seres vivos que o ser humano é consciente e existe a linguagem. Neste caminho elucidativo o autor aceita a indistinguibilidade experimental entre ilusão e percepção como uma condição constitutiva do observador, e não uma limitação ou falha de seu agir, i.e., “há múltiplos domínios de realidade, cada um constituído como um domínio explicativo definido como um domínio particular de coerências experienciais” (p. 53-54), igualmente válidos, ainda que diferentes e nem todos comumente aceitos para se viver.

    Nesta perspectiva, de acordo com Maturana e Varela (1995), o fenômeno do conhecimento e as ações ocasionadas por ele, mostram que toda experiência cognitiva é apresentada aquele que conhece de uma maneira pessoal, enraizada em sua estrutura biológica. E também, que “toda experiência de certeza é um fenômeno individual, cego ao ato cognitivo do outro, em uma solidão que, como veremos, é transcendida somente no mundo criado com esse outro”, ou seja, a interação com o outro é fundamental para transmissão do conhecimento.

    Na discussão a respeito do saber concordamos com Charlot (2000) com a necessidade que o ser humano tem de ingressar no mundo por meio do aprender, de que há várias maneiras de adquirir um saber, que pode ser: um conteúdo intelectual, o domínio de um objeto ou atividade, e entrar numa atividade relacional. Neste sentido, “a definição do homem enquanto sujeito de saber se confronta à pluralidade das relações que ele mantém com o mundo” (p. 60). Na filosofia clássica, para Charlot, o saber ao longo de sua história encena o combate da Razão contra as paixões, as emoções e o corpo, na busca de cortar todos os vínculos do sujeito com o mundo para manter a relação do sujeito enquanto Razão com o saber enquanto ideia. Mas, para o autor, a razão é uma forma de relação com o mundo, uma forma específica dentre outras relações com o mundo, assim, o sujeito de saber desenvolve a argumentação, verificação, experimentação, vontade de demonstrar, provar, validar; atividades de ação do sujeito sobre ele mesmo que supõe e sugere um certa relação com a linguagem e o tempo. Tais atividades podem ser levadas pelas paixões, pela ideologia, pelo inconsciente, até por um empreendimento voluntário de atrativo.

    Por conseguinte, Charlot (2000, p. 61) defende a concepção de que a ideia de saber envolve a de sujeito, “de atividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo (deve desfazer-se do dogmatismo subjetivo), de relação desse sujeito com os outros (que co-constroem, controlam, validam, partilham esse saber)”. Para chegar a esse pensamento, o autor utiliza a análise feita por Monteil (apud CHARLOT, 2000, p. 61), pela qual apresenta a distinção entre informação, conhecimento e saber. A informação seria dada de forma exterior ao sujeito, podendo ser armazenada e estaria na primazia da objetividade. O conhecimento englobaria o resultado da experiência pessoal e ficaria na excelência da subjetividade. Já o saber seria uma informação da qual o sujeito se apropria, porém sem o dogma da subjetividade, pois teria na produção pelo sujeito o confronto a outros sujeitos, i.e., um produto comunicável.

    A concepção até aqui apresentada do saber entendida por Charlot está em conformidade com a fenomenologia do corpo, porém ao realizar a discussão do saber como relação surgem alguns desconexos entre essa ideia e a corporalidade. Charlot (2000) não classifica o saber, por exemplo, como prático, teórico, científico, etc., mas acredita na existência de formas específicas de relação com o mundo. Ao analisar o saber em uma forma específica, a prática, relata que não é o saber que é prático, mas o uso que se faz dele em uma relação com o mundo. Cita o exemplo de um enunciado de física dos materiais – sabe-se que foi produzido por meio de experimentação, validação, ou seja, uma relação científico com o mundo – que mesmo sendo usado por um engenheiro não o deixa de ser científico ou o torna prático, é mobilizado pelo engenheiro em uma relação prática com o mundo. Porém, não concorda que à prática é um saber, já que para Charlot (2000, p. 62) há distinção entre aprender e saber:

    Mas, dir-se-á, a prática é também uma forma de saber; ou, então: existe saber mesmo nas práticas. É verdade que uma prática deve ser aprendida para ser dominada; mas que se deva aprendê-la não significa que seja um saber; a não ser que o aprender e o saber sejam confundidos, o que – ressaltei e voltarei ao assunto – é um erro. É verdade que a prática mobiliza informações, conhecimentos e saberes; e, nesse sentido, é exato dizer-se que há saber nas práticas, mas, novamente, isso não quer dizer que sejam um saber (CHARLOT, apud CHARLOT, 2000, p. 62-63).

    Discordamos de tal concepção já que o enunciado nada mais é do que a expressão de um saber, e esse saber, como o próprio autor o define é a informação da qual o sujeito se apropria sem o dogma da subjetividade, já que é produzido no confronto com outros sujeitos, ou seja, um produto comunicável, portanto, como comunicar um saber senão pela prática, pela ação, pela expressão de atividades físicas e mentais. Se o saber se constitui como formas específicas de relação com o mundo o domínio de uma situação ou atividade compreende a expressão do saber da mesma forma que um enunciado de física dos materiais. Assim, o enunciado nada mais é do que uma das formas de expressão do saber, como existem outras formas chamadas pelo autor de figuras do aprender.

    Compreendemos de forma diferente o que Charlot (2000) apresenta por inventário das figuras sob as quais o saber e o aprender se apresentam as crianças. Entendemos, utilizando a fenomenologia da percepção, que objetos-saberes, objetos cujo uso deve ser aprendido, atividades a serem dominadas, dispositivos relacionais, que são figuras apresentadas pelo autor, são aprendidas por processos diferentes como também podem apresentar similaridades na aprendizagem. O saber que consta num livro pode ser aprendido por meio da leitura ou vivência do sujeito em confronto com outros sujeito e com o mundo. Pode ser aprendido por recepção ou por descoberta. O uso de uma máquina fotográfica pode acontecer por meio do manuseio da mesma sem a leitura do manual, por meio do manuseio com leitura prévia do manual, por meio do manuseio com o auxílio de uma outra pessoa. Ao aprender a utilizar a máquina fotográfica um novo saber pode ser construído, já que as informações adquiridas pelo manual ou pelo contato com a máquina adquire um caráter subjetivo e pode se tornar comunicável ao ser compartilhado por meio da escrita, da fala, da demonstração, etc. Nesse sentido, o saber é expresso e construído num contínuo. Com esse exemplo, é possível compreender o que Merleau-Ponty relata a respeito da presença da continuidade na expressão de atividades físicas e mentais, já que a ação do sujeito é o caminho para o saber, o corpo não reagiria apenas a estímulos de forma cega e reflexa, mas seria capaz de renovar suas ações de forma equivalente as funções mentais.

    Sob o mesmo ponto de vista, na visão de Gibson, o saber como relação envolve a experiência do corpo e constituição do eu num só e mesmo fenômeno, pois envolve formas diversas do corpo próprio se autoperceber. Nesse caminho os aspectos mutáveis e persistentes do corpo e dos objetos concorrem para a formação da experiência do eu corporal, já que tanto a orientação do movimento quanto as percepções dos sentidos possuem intencionalidade, privacidade e representacionalidade.

    No que se refere as sensações, também não há distinção para Straus, já que qualquer sensação é uma maneira do eu corporal se relacionar com o mundo pelo movimento. Assim, a automovimentação corporal na comunicação ou interação com o ambiente é intencional e portanto, envolve como produz o saber. Da mesma forma, para Tode, a automovimentação, a ação do sujeito, é mantida pela expectativa de sucesso na repetição do movimento real ou imaginado, o que leva a manter vivo o interesse pela realidade, ou seja, o mundo de satisfação e necessidades surge por meio do reconhecimento de que há um percebedor que se automovimenta na busca de experienciar sensações. E nessa relação com o mundo percebe que há novos aspectos da realidade das coisas e eventos, percebe que os objetos apresentam ordem fixa, e nesse ínterim o que é idêntico em meio ao que é variável. Portanto, se a ideia de saber envolve a de sujeito, de atividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo e com os outros, o saber só é saber por meio da ação, da autopercepção, a qual Campbell chama de representação, que o corpo assume nas diversas interações com o meio, sendo a forma e o conteúdo da representação decidido pela eficácia prática de ação antecipada ou efetivada. Por fim, a atividade do sujeito, a representação, permite reconhecermos a maneira pela qual o nosso comportamento afeta causalmente outros, possibilita avaliar as próprias percepções e ações, como, também, guardar o impacto do comportamento que temos sobre as outras pessoas.

    Outro argumento clarificador da importância da ação na atividade do sujeito está na concepção de Maturana a respeito da linguagem. Para o autor a linguagem só existe porque é possível entre duas pessoas a coordenação de ações consensuais, e mais, não há ação humana sem um emoção que a estabeleça como tal e a torne possível como ato. Maturana acredita que a emoção e não a razão nos leva a ação, e nesse processo a corporalidade nos constitui e por isso somos seres conscientes que existem na linguagem. Por fim, a corporalidade e é entendida como possibilidade e não limitação, já que nas nossas ações não hão distinção entre ilusão e percepção, pois há múltiplos domínios de realidade, domínios particulares de coerências experienciais igualmente válidos, mesmo que diferentes e nem todos sempre aceitos para viver, ou seja, o que é percepção para mim pode ser ilusão para outro e vice-versa.

    Andrade (2012) faz uma análise da autopoiesis defendida por Maturana e Varela, e nessa discussão aborda a forma como conhecemos e a influência de sua estrutura biológica na complexidade da vida humana. No processo de conhecer, para a dinâmica interna do sistema, o meio não existe, é irrelevante. Mas há possibilidade de considerar a relação do sujeito com o meio e descrever tal ação. Sendo, neste caso, a dinâmica interna irrelevante. Nessa perspectiva o conhecimento – não fazendo distinção entre conhecimento e saber, considerando ambos como resultado da interação do sujeito com o meio - depende de nosso corpo físico, o qual favorece nossa correlação interna, enquanto algo que organiza o entendimento, mas sem negar as interações. Acredita-se contudo que o processo de conhecimento ocorre por meio de uma relação cíclica entre ação e experiência, no qual tudo o que vivemos constitui os elementos que fazem parte deste processo. A autora também ressalta que por possuirmos uma estrutura biológica que se manifesta por meio de um sistema operacionalmente fechado em si, não exclui a possibilidade de termos autonomia no modo pelo qual apreendemos a realidade das coisas.

    Tomando como base a distinção entre informação, conhecimento e saber a prática é a manifestação do saber como constitui o próprio saber. Exemplificando, um enunciado só é saber na medida que envolve atividade do sujeito, relação do sujeito com ele mesmo e com os outros, isto é, o saber só é saber quando há ação, o enunciado em si não é saber, mas constitui-se como tal por meio da ação do sujeito, da sua atividade com ele mesmo e com o mundo. Portanto, amarrar o cadarço de um tênis é um saber como também sua manifestação. Aprender a amarrar é um saber diferente de aprender a ler um livro, concordamos, porém ao ler um livro ou amarrar um sapato, que são formas específicas de relação com o mundo, constituem-se na expressão e no próprio saber. Fazendo uma aproximação com a Educação Física, o mesmo acontece com o jogo, o esporte, a dança, a luta, tanto no que diz respeito aos enunciados quanto as práticas das manifestações da cultura corporal de movimento.

Considerações

    A idéia de corpo físico não apenas como anatomofisiológico, mas como continuidade de expressão das atividades físicas e mentais; a presença da intencionalidade, privacidade e representacionalidade na representação do eu corporal; as sensações como uma maneira do eu corporal se relacionar com o mundo pelo movimento; automovimentação como possibilidade do corpo perceber o ambiente no qual a satisfação antecipada poderá acontecer; e a percepção de que é possível induzir mudanças das atitudes dos outros em relação a nós mesmos são pontos chaves para a discussão da fenomenologia do corpo.

    Por conseguinte, a percepção, a intencionalidade, a continuidade afetam a relação entre esquema e imagem corporal, que são modos pelos quais a representação de nosso próprio corpo é usada e que sofre fortemente a influência do desejo de usar a representação do corpo como imagem, i.e., o impacto do nosso próprio comportamento sobre outras pessoas, sendo que esta representação da imagem corporal apresenta intima relação com o corpo físico em manter o equilíbrio e a presteza para agir.

    Chamamos a atenção para importância da ação na constituição do sujeito, já que a linguagem desenvolve-se por meio de coordenações de ações consensuais, na qual a espécie humana é definida como um modo de viver em um meio, i.e., a ação em um meio e na conservação desse modo. E nossas ações são dominadas pelas emoções, a emoção nos leva a ação, a mobilização se refere às ações possíveis do outro, diferentes domínios de ações possíveis nas pessoas, bem como diferentes disposições corporais.

    Outro ponto importante está na corporalidade como algo constitutivo, construído na e pela linguagem, assim apresenta o caráter de possibilidade já que está num interem entre o meio e o ser humano, o que possibilita a coordenação de ações consensuais mobilizadas por meio das emoções.

    Por fim, temos a necessidade de ingressar num mundo por meio do aprender, desenvolvendo nossa identidade, estabelecendo uma relação com o saber que acontece de várias formas específicas e todas por meio da atividade do sujeito, de relações com ele mesmo e com os outros. Porém, essas relações somente são possíveis por meio de nossas ações, e a mobilizações se refere às ações possíveis do outro em diferentes domínios o que permite a expressão do saber em diferentes domínios específicos.

Referências

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