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Primeiro ensaio pela inutilidade da Educação Física: avaliação

Primer ensayo sobre la inutilidad de la Educación Física: una evaluación

 

*Mestrando em Educação

pela Universidade Federal Fluminense, UFF

**Pos-Graduandos em Pedagogia

da Educação Física e do Esporte, UFRRJ

(Brasil)

Felipe Lameu dos Santos*

Fernanda Santos da Silva**

Priscilla de Almeida Nogueira**
Thalita Albuquerque de Arruda**

felipelameu@gmail.com

 

 

 

 

Resumo

          Este artigo visa dar os apontamentos iniciais de uma perspectiva de Educação Física voltada para a formação para o lazer. Provisoriamente chamaremos essa perspectiva de Educação Física da inutilidade, pois ela visa romper com o modelo de escola que forma para a produção e o trabalho. Na parte final será apresentado uma proposta de avaliação dentro da perspectiva da Educação Física da inutilidade.

          Unitermos: Educação Física. Lazer. Inutilidade.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 19 - Nº 192 - Mayo de 2014. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

Todas as crianças crescem — menos uma...

(Peter Pan & Wendy, J. M. Barrie)

    Dizem que quem não vai à escola não chega a ser humano. Claro que existem pessoas que se metamorfoseiam em ‘burros’ e ‘mulas sem cabeça’. Mas será que o agente de tão dramática transformação seja a falta de escola? Rubens Alves1 acredita que não. Para ele a escola tem transformado mais as crianças em bonecos de pau do que em humanos. Em seu conto oiuqóniP (Pinóquio às avessas) esse autor defende a idéia de que a escola tem sido um espaço onde as crianças aos poucos deixam de ser crianças para se tornarem adultos:

    - É preciso ir para a escola [disse o pai]. Todos os meninos vão. Para se transformar em gente. Deixar as coisas de criança. Em cada criança brincante dorme um adulto produtivo. É preciso que o adulto produtivo devore a criança inútil (ALVES, 1984 p. 76-7,).

    Inútil, a inutilidade é a condição infantil primeira que a escola quer ver extinta. O corpo brincante de criança deve dar lugar ao corpo disciplinado, produtivo e eficiente2. Produtividade nos termos do trabalho na sociedade capitalista parece andar de mãos dadas com os objetivos da escola. O que você vai ser quando crescer? Por trás dessa pergunta talvez esteja outra: Quando você vai deixar de ser criança e se tornar útil?

    Neste contexto de escola produtiva, onde está a Educação Física? Essa é a principal questão que permeia esse ensaio. Sem o intuito de respondê-la vamos apontar alguns caminhos para pensar a Educação Física dentro da escola como um espaço de resistência ao modelo produtivista atual. Dialogando com proposições de Bracht (1997) sobre a inutilidade da Educação Física e com a teoria do lazer iremos propor uma prática avaliativa dentro de um modelo de Educação Física que visa romper com esse modelo de escola voltada para a produção.

Trabalho, lazer e Educação Física

A molecada lá da área como é que tá
Provavelmente correndo pra lá e pra cá
Jogando bola descalços nas ruas de terra
É, brincam do jeito que dá

(Racionais Mc’s)

    Poucos negariam hoje que a educação possui estreita relação com os processos de reprodução da sociedade capitalista. A educação em sua forma institucionalizada (Educação Escolar), em especial nos últimos cento e cinqüenta anos, serviu ao propósito de fornecer os conhecimentos e pessoal necessário para a maquinaria de produção, mas também serviu, e talvez principalmente, para gerar e transmitir um quadro de valores que legitimam os interesses dominantes (MÉSZÁROS, 2007). Nesse sentido a moral capitalista:

    lamentável paródia da moral cristã, fulmina com o anátema o corpo trabalhador; toma como ideal reduzir o produto ao mínimo mais restrito de necessidades, suprimir as suas alegrias e as suas paixões e condená-lo ao papel de máquina entregando trabalho sem tréguas nem piedade” (LAFARGUE, 1999, p.4-5).

    Todas as formas de produção capitalista – escreve Marx – têm em comum o fato de que não é o operário quem utiliza os meios de trabalho, mas, ao contrário, são os meios de trabalho que utilizam o operário; contudo somente com as máquinas é que esta inversão adquire, tecnicamente, uma realidade concreta. No trato com a máquina, os operários aprendem a coordenar seu “próprio movimento ao movimento uniforme, constante, de um autômato” (BENJAMIM, 1991, p.125 apud VAZ, 2006, p.40). Diante disso, na sociedade capitalista, o trabalho deixa de ser a dimensão formadora do humano e passa a ser alienado. O homem vende sua força de trabalho em troca de recursos mínimos para sua subsistência e a escola atua na (com)formação dos corpos na gramática do trabalho alienado, (com)formação tanto nos aspectos subjetivos como nos objetivos. De imediato podemos perceber que a escola e a estrutura social capitalista constituem um bloco histórico, como diria Frigotto (2007), dentro do qual se articulam dimensões econômico-sociais relacionadas estritamente ao processo produtivo e um superestrutural ideológico e político.

    Agora onde caberia a Educação Física num processo de resistência à estrutura escolar (com)formadora do capitalismo? Em nossa opinião, uma alternativa seria pensar a Educação Física como formadora para o momento do não trabalho, Educação Física para o inútil, para o não produtivo nos moldes do capitalismo. Uma Educação Física preocupada com uma formação para o lazer nos termos de Marcellino (2012), para o momento “livre”3 do trabalho alienado.

    Quando falamos em lazer não podemos deixar de enfatizar todo estigma que carrega tal palavra. No artigo Vício, pecado ou direito? Da historiadora Mary Del Priore (2013), logo no inicio a um relato interessante sobre o lazer: No seu pequeno Elucidário de palavras, de 1789, o padre Joaquim Viterbo ignorou o termo lazer. Do latim Licere, lazer significava “ser permitido”. A palavra expressava o estado no qual era permitido a qualquer um fazer qualquer coisa. Talvez o lazer fosse considerado tão nocivo à raça humana que não deveria contar em um dicionário, porém apesar de ter se passado os anos e ocorrido várias mudanças no estilo de vida em sociedade, o lazer não foi totalmente desmistificado para as camadas mais populares. Cremos que a Educação Física é a área de conhecimento dentro da escola que pode dar a maior contribuição no esclarecimento do que seria realmente o lazer e de como podemos nos apropriar de tal prática.

    Isso não quer dizer que nossa proposta de trabalho seja de uma aula de Educação Física como lazer. O aluno não está no seu tempo livre, a aula de educação física é uma aula como outra qualquer onde o aluno tem seus direitos, deveres e obrigações.

    As aulas de Educação Física, normalmente, são as mais lúdicas e tem a oportunidade de resgatar a ludicidade que a criança vai perdendo pela cobrança da produtividade. O aluno quando chega ao Ensino Médio está tão preocupado em ser um adulto produtivo para a sociedade que os momentos de lazer são. Mas é também no Ensino Médio que o aluno tem maturidade para entender que as práticas de lazer não são para recuperação para o trabalho. Podem não ser apenas para colaborar com nossa saúde, mas são importantes pelo simples fato de nos fazerem bem e servirem como formação humana. Afinal, quem não fica feliz em ter um tempo livre para fazer o que gosta e o que quer? É também nesta fase que o aluno tem a maturidade para compreender que são necessários recursos para a prática de lazer e o papel da Educação Física é levar ao aluno a possibilidade que este tem de buscar os seus direitos, lutar por práticas públicas para o lazer, lutar por um tempo maior de lazer não só para si mesmo, mas para a sociedade, e então se tornar um cidadão crítico e autônomo na busca do lazer.

A inutilidade da Educação Física

em la lucha de clases

todas las armas son buenas

piedras

noches

poemas

(Paulo Leminski)

    Do ponto de vista filosófico, a Educação Física tem várias vertentes, objetivos e metodologias. A verdade é que as pessoas não entendem muito bem qual é o papel da Educação Física na escola. Muitos explicam teorizando sua prática dando todo um sentido e significado para cada atividade abordada. Mas, porque não podemos apenas considerar o “inútil”? Uma Educação Física educando para a resistência ao modelo de produtividade obrigatória impregnada nos currículos. Será que essa produtividade não nos faz perder o melhor da Educação Física?

    Para Bracht, “não é porque o trabalho é importante que a Educação Física é importante, mas porque o lazer é importante, a Educação Física é importante. A ‘utilidade’ da Educação Física advém do seu caráter ‘inútil’” (1997, p.51). Sua razão de ser na escola, nessa perspectiva do inútil, é instrumentalizar o estudante com conhecimentos da Cultura Corporal de Movimento para que ele possa se utilizar desses conhecimentos nos seus momentos de lazer, bem como, para lutar por espaços e condições objetivas para a prática do lazer.

    Não é difícil perceber que essa perspectiva em face da realidade brasileira onde nem o direito ao trabalho é assegurado impõe muita coragem e reflexões para sua defesa e aplicação. É com esse intuito que esse trabalho esboça algumas primeiras linhas em sua defesa. Assim, no próximo item, vamos apresentar uma pequena proposta de uma avaliação na Educação Física do inútil.

Proposta de avaliação do inútil

    O processo de avaliação na escola, normalmente é um processo penoso e complicado tanto para alunos quanto para professores. Muitos professores de Educação Física são contra a avaliação somativa e tendem avaliar seus alunos apenas pela participação nas aulas e aqueles que não participam apresentam um trabalho e alcançam notas excelentes. Muitos outros avaliam seus alunos pela performance do movimento. É comum conversar com alunos e estes responderem que nunca fizeram uma prova escrita, que quase nunca faziam aula de Educação Física e sempre tiveram notas boas, ou sua nota não foi muito boa por ser menos habilidoso.

    Não acreditamos que a avaliação simplesmente da participação das aulas irá traduzir de maneira fidedigna o processo de ensino aprendizagem. Também não defendemos a avaliação dos gestos motores a fim de gerar notas ou conceitos, visto que cada aluno carrega uma cultura corporal de movimento diferente.

    A avaliação deve acontecer em todos os momentos, com o objetivo de observar se a maneira como as aulas e as atividades estão sendo propostas, estão atingindo os objetivos desejados, a fim de mudarmos e melhorarmos nossas práticas docentes.

    Porém, somos cobrados a gerar uma nota ou conceito final, lembrando que é necessário usar no mínimo três instrumentos de avaliação para gerar nota, como poderíamos avaliar a Educação Física do inútil?

    Neste breve ensaio vamos propor de uma forma simples o que acreditamos ser um início de uma discussão da avaliação da Educação Física para o lazer em turmas de Ensino Médio. Nesta proposta educacional, podemos pensar num processo avaliativo qualitativo. Ao invés de uma avaliação cheia de critérios e mensurações, as estratégias podem ser voltadas para que o aluno aprenda se divertindo e se divirta aprendendo. O aluno não precisa pensar na avaliação como um processo punitivo e sim como uma forma de saber suas dificuldades e limitações para que possa melhorar. O professor não precisa usar da avaliação para exigir disciplina. Essa avaliação pode e deve ser integrada. Através dessa relação professor-aluno, podemos identificar as necessidades do aluno e revisar o planejamento para que seja alcançado determinado objetivo. E que esse objetivo, acima de tudo, seja prazeroso.

    Após as aulas de Educação Física, na perspectiva, acreditamos que um dos instrumentos de avaliação a ser usado poderia ser uma redação, onde o aluno dissertaria o seu entendimento sobre o lazer antes das aulas e depois das aulas.

    Uma proposta para um segundo instrumento de avaliação poderia ser a observação do comportamento dos alunos em uma aula, onde seria disponibilizados para os mesmos, diversos materiais e estes teriam a opção de escolher o que fazer. Nesta aula, seria esclarecido aos alunos que estariam sendo observados em uma perspectiva da Educação Física para o lazer.

    Para um terceiro instrumento de avaliação fica a sugestão de um trabalho em grupo, onde cada grupo iria resgatar uma prática de lazer e socializá-la com o restante da turma.

    Sabemos que este ensaio é apenas uma proposta inicial, passível de críticas diversas, mas nosso intuito é mostrar de maneira simples como é possível utilizar no mínimo três instrumentos de avaliação, como muitos de nós professores já temos feito, utilizando apenas nosso instrumento mais simples, a criatividade. E mais, desejamos provocar uma discussão sobre a importância da Educação Física para o inútil.

Notas

  1. Na parte inicial do texto nos apropriamos do conto oiuqóniP de Rubens Alves (1984).

  2. Sobre a disciplinarização da criança na escola recomendamos o filme/musical The Wall (1982), baseado no disco homônimo do Pink Floyd (1979). Em especial a parte que trata da música Another Brick In The Wall: https://www.youtube.com/watch?v=vrC8i7qyZ2w

  3. Utilizamos o termo livre entre aspas, pois assim como Marcellino (2012) consideramos que nenhuma atividade é totalmente livre de coerções em nossa sociedade.

Referências

  • ALVES, R. Estórias de quem gosta de ensinar, 6ª. Ed. Cortez, São Paulo, 1984.

  • BARRIE, J. M. Peter Pan & Wendy. Fundação Hospitalar Infantil de Great Ormond Street, Londres, 1937.

  • BRACHT, V. Educação Física e Aprendizagem Social. 2ª ed. Porto Alegre: Magister, 1997.

  • DEL MARY, P. Vício, pecado ou direito? Revista de História da biblioteca nacional, ano 8, Nº 89, p.21a 24, 2013.

  • FRIGOTTO, G. MESA 4- Debate - Fundamentos Científicos e técnicos da relação trabalho e educação no Brasil Hoje. In: NEVES, L.M.V.; PRONCO, M.A. e Santos, M. A.C. (Org.). Debate e síntese do Seminário Fundamentos da Educação Escolar do Brasil Contemporâneo. 1ª Ed. Rio de Janeiro.: FIOCRUZ, p. 131-157, 2007.

  • LAFARGUE, P. O Direito a preguiça. São Paulo: Hucitec, 1999.

  • LEMINSKI, P. Melhorespoemas de Paulo Leminski. Seleção Fred Góes, Álvaro Marins, 6°. Ed. São Paulo: Global, 2002.

  • MARCELLINO, N. C. Possíveis relações entre educação física e lazer. Corpoconsciência (São Paulo), v. 16, p. 02-12, 2012.

  • MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. Revista Theomai, n 15, 2007.

  • RACIONAIS MC’S. Fim de Semana no Parque. Raio X Brasil, gravadora: Zimbabwe, 1993. http://letras.mus.br/racionais-mcs/63447/

  • VAZ, A. Marcas do Corpo Escolarizado, Inventário do Acémulo de Reínas: sobre a articulação entre memória e filosofia da história em Walter Benjamin e Theodor W. Adorno. In: TABORDA DE OLIVERIA, M. A. (Org.). Educação do Corpo na Escola Brasileira. Campinas: Autores Associados, 2006.

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