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A defectologia em Vygotski: do proposto
ao pensado na Educação Especial

La defectología em Vygotski: de la propuesta a la idea en la Educación Especial

 

*Doutor em Educação Especial

pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

**Graduanda em Terapia Ocupacional

pelo Centro Universitário de Araraquara (UNIARA)

Gustavo Martins Piccolo*

Sandra Cassiano da Silva**

gupiccolo@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O presente trabalho objetiva explorar a proficuidade analítica do conceito de defectologia em Vygotski, tendo por intuito materializar novas formas de pensar sobre a Educação Especial mediante a assunção de uma perspectiva ontológica que visualiza o humano em estado de devir. Constitui-se como uma pesquisa qualitativa, ancorada ao materialismo histórico, erigida mediante um estudo de corte bibliográfico cuja revisão de literatura almeja apresentar as categorias chaves para a compreensão dialética deste importante corpo teórico. O desenvolvimento do texto nos permite concluir que os pressupostos levantados por Vygotski acerca da defectologia, embora arquitetados no primeiro quartil do século XX, ainda se mostram extremamente atuais no que tange a sua potencialidade compreensiva quanto ao desenvolvimento histórico-cultural do ser humano, traduzindo sérios desafios para uma prática emancipatória em educação e na própria forma como encaramos a diferença enquanto pólo constitutivo da humanidade que nos é singular.

          Unitermos: Educação Especial. Educação. Desenvolvimento humano.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 19 - Nº 192 - Mayo de 2014. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Hodiernamente tornou-se flagrante a massiva utilização do pensamento de Vygotski para a explicação dos fenômenos educacionais e psicológicos nas ciências humanas, todavia, curiosamente, a defectologia, um de seus campos analíticos mais promissores, continua pouco explorada quanto a suas possibilidades gnosiológicas para um pensar sobre o intrincado processo dialético de desenvolvimento humano, conforme assinala Grigorenko (1998). No interstício desta lacuna o referido trabalho se insere, tendo por objetivo novas formas de pensar sobre a Educação Especial mediante a assunção de uma perspectiva ontológica, ou seja, que visualiza o humano em estado de devir e perfilhado pelas constantes relações com a sociedade da qual faz parte. Para tanto, realizamos um estudo de corte bibliográfico, ancorado ao materialismo histórico, cuja revisão de literatura que traz à baila alguns dos mais importantes escritos de Vygotski (1997, 2001), assim como de seus interlocutores sobre a questão da defectologia, intuindo apresentar o conceito de compensação como a categoria chave deste corpo teórico, a qual nos permite tecer relações projetivas para um novo pensar em educação, independentemente de seu público partícipe.

    O homem em seu tempo: as terminologias de Vygotski

    Uma das justificativas plausíveis quanto ao pouco utilizar das idéias de Vygotski na Educação Especial diz respeito à terminologia por ele empregada, nesse sentido, se faz importante apresentar brevemente o contexto que cerca sua produção intelectual.

    Inegavelmente, pensar em Vygotski também o é pensar na Rússia em princípios do século XX. Época singular caracterizada pelo emergir da Revolução Russa de 1917 e seu apoio incondicional a evolução da ciência, mas também pela condição periclitante vivida pelo povo russo desde o final do século XIX , marcada pela fome, analfabetismo e morte. Para Grigorenko (1998), a Rússia revolucionária teve de lidar com uma gama de problemas, principalmente àqueles oriundos da privação cultural e educacional experimentadas pelas crianças, originados pelos intensos anos de guerras (mundial e civil) que resultaram no falecimento de diversos familiares e no crescimento exponencial das deficiências físicas e sensoriais. Nesse contexto histórico, muitas crianças se tornaram do dia para a noite literalmente responsáveis por seu próprio destino, abandonando qualquer projeção ideativa quanto a uma formação educacional sólida e filosófica, elemento que engendrava, no entender de Vygotski (1997), uma mácula quanto ao desenvolvimento intelectual da população.

    Na senda de tais elementos, de acordo com Luria (1994), Vygotski assumiu o desafio da elaboração de uma nova psicologia cujo objeto não mais seria o mundo interno em si mesmo, mas, sim, a análise do reflexo do mundo externo no mundo interno, ou seja, a interação do homem com a realidade, tendo por teleologia a compreensão do desenvolvimento humano. No entender de Kozulin (1990) o estudo sobre o desenvolvimento humano era uma das principais tarefas do programa socialista científico implantado na Rússia pós-revolucionária, o qual teve em Vygotski um de seus cardeais propulsores. Colocado estes elementos sobressalta uma pergunta, qual seja: em que momento então Vygotski se preocupou sobre a questão da deficiência?

    Em todos. Vygotski (1997, 2001) acreditava que apenas quando compreendesse o complexo desenvolvimento das crianças com deficiência poderia enfim elaborar uma teoria geral do desenvolvimento humano gestada no entrelaçamento entre as linhas de formação biológica e sócio-cultural que coadunasse com o investigar analítico da gênese das funções psíquicas superiores. Isto porque para Vygotski (1997) a deficiência materializava fundamentalmente uma questão abstrusa de corte social, na medida em que o enriquecimento humano da pessoa deficiente se dava em razão diretamente proporcional aos meios e formas que a sociedade disponibilizava para as mesmas no que tange a apropriação da cultura historicamente acumulada pela humanidade. Vygotski (1997) não nega a concreticidade da existência da deficiência, contudo, enfatiza que o trabalho para com ela deve focar em suas conseqüências sociais, enfim, se situar nos conflitos gestados entre a necessidade de apropriação cultural e a impossibilidade de tal tarefa derivada por uma sociedade pouco sensível as diferenças e adaptadas para determinados tipos ideais

    Assim, inegavelmente, os aportes sobre a deficiência se constituem uma das heranças científicas de Vygotski, além disso, como aponta Gindis (1999) o campo da Educação Especial representava o lócus do qual o referido autor retirava os aportes empíricos de suas incursões analíticas, cujos dados intuíam fornecer apoio no que tange suas concepções teóricas gerais. Nas palavras de Vygotskaya (1999), Vygotski objetivou promover uma verdadeira ruptura de corte epistemológico acerca do vínculo quase que irrestrito existente entre psicologia e biologia, criando um verdadeiro alicerce para o desenvolvimento ulterior de uma ciência psicológica efetivamente histórica e cultural. A deficiência, por se tratar de uma área historicamente governada por recortes biológicos, representou o mote para tal constructo mediante a desconstrução das principais justificativas elucubradas pela velha psicologia acerca da radical distinção entre as linhas de desenvolvimento das crianças com e sem deficiência. Para Vygotski (1997, p.128), devemos ter em mente que a criança com deficiência é antes de tudo uma criança e somente depois uma criança deficiente, logo, “[...] não se deve perceber na criança com deficiência apenas o defeito, os gramas de doença, não se notando os quilogramas de saúde que a criança possui. Do ponto de vista psicológico e pedagógico deve-se tratar a criança com deficiência da mesma maneira que uma normal”, pois como aponta Carlo (1999, p. 64-65)

    A pessoa com deficiência, comumente, é vista como aquela que se diferencia do tipo humano “normal”, entretanto, o desenvolvimento comprometido pela deficiência apresenta uma expressão qualitativamente peculiar, que se diferencia conforme o conjunto de condições em que se realiza. Como todo o aparato da cultura está adaptado à constituição do ser humano típico, com determinada organização psicofisiológica, parece haver uma divergência entre os processos de crescimento e maturação orgânica e os processos de enraizamento da criança à civilização. Porém, as leis de desenvolvimento são iguais para todas as pessoas (deficientes ou não) e a diferenciação do padrão biológico típico do homem implica numa alteração da forma de enraizamento do sujeito na cultura. A cultura provoca uma reelaboração da conduta natural da criança e um redirecionamento do curso do desenvolvimento humano sob novas condições e sobre novos fundamentos.

    Em tal contexto, transparece-nos como nítida a idéia de Vygotski (1997, 2001) de que se o desenvolvimento biológico se encontra basicamente acabado, o progresso e o enriquecimento do gênero humano devem ser explicados por outras vias, de corte histórico, social e cultural. Nas palavras de Vygotski (2001, p.31), “no homem, cuja adaptação ao meio se modifica por completo, é incontinenti destacar em primeiro lugar o desenvolvimento dos seus órgãos artificiais – as ferramentas – e não a mudança de seus próprios órgãos nem a estrutura de seu corpo”.

    Tal inversão epistemológica produz conseqüências decisivas sobre o próprio entendimento do conceito de deficiência, na medida em que o mesmo está relacionado às possibilidades ofertadas de compensação e as formas como as instituições sociais se organizam para atender as mais variadas diferenças e possibilitar que sua história seja de fato apropriada, desdobrando-se, assim, a história do desenvolvimento humano em um novo plano no qual o cultural se estabelece em grau de primazia sobre o biológico e natural.

Princípios e fundamentos da defectologia

    Assim como o curso de uma corrente está delimitado pelas margens e pelo leito, o objetivo da vida do homem em desenvolvimento e crescimento, estão delimitados pela necessidade objetiva do leito social e as margens sociais da personalidade. Lev S. Vygotski.

    A assertiva acima é cristalina quanto ao caráter fundante do social na arquitetura do humano. Aliás, para Vygotski (2001) o ser humano poder ser definido como um agregado de relações sociais encarnada no indivíduo, sendo constituído nas relações pelas quais os homens criam sua própria condição de existência mediante a síntese dialética entre trabalho e linguagem. Em tal universo, o desenvolvimento humano se orienta em direção a internalização das relações sociais, as quais constituem a base para o aparecimento das funções psíquicas superiores, fundamento da estrutura social da personalidade. Esta é a primazia que destacamos do social e cultural na constituição humana.

    A cultura é um dos elementos do social, ainda que às vezes pareça incorporar toda sua totalidade. É produto da vida social, podendo ser pensada como prática derivada das relações sociais criadas pelo trabalho, ou seja, da natureza transformada pelo homem, estando intimamente ligada ao processo de desenvolvimento humano. Assim, a cultura não anula a natureza, mas a transforma, logo, enfatizar a primazia do cultural sobre o biológico não significa, em hipótese alguma, ignorar a realidade biológica, que faz parte do humano, mas, sim, enfatizar que no desenvolvimento humano o mesmo é entrelaçado cada vez com maior intensidade pela cultura.

    Devido a estes elementos, tal desenvolvimento deve ser encarado como um processo dinâmico, dialético, cultural e complexo, arquitetado mediante uma espiral que entrelaça cultura, sociedade e natureza. Por conseguinte, o desenvolvimento humano não deve ser pensado como fenômeno linear, posto que implique evoluções, crises, revoluções e as mais vastas transformações na forma de se constituir como ser histórico-cultural engendrada a partir da superação das dificuldades erigidas no que tange ao domínio da natureza e enraizamento social. São as dificuldades postas pelo meio que nos circunscreve quanto à apropriação da cultura que nos permite alterar nossa própria linha de desenvolvimento, enfim, que nos possibilita criar mecanismos de compensação objetivando a assunção mais plena de todas as potencialidades do gênero humano.

    Tais mecanismos de compensação, apesar estarem presentes na relação com a realidade externa em todos os seres humanos, têm nas pessoas com deficiência seus exemplos mais cristalinos e promissores, na medida em que na referida população as dificuldades para se apropriar da cultura estão massivamente acentuadas pela pouca sensibilidade do ambiente para com tudo aquilo que foge a norma e a certo tipo ideal biológico. Quanto a este aspecto são singulares as palavras de Vygotski (1997) de que onde resulta impossível um desenvolvimento orgânico ulterior, abre-se ilimitadamente o caminho do desenvolvimento cultural.

    Toda a defectologia de Vygotski (1997) está ancorada no conceito de compensação concebido mediante pressupostos histórico-culturais eivados pelo referencial marxista. Destarte, Vygotski (1997) se contrapõe dialeticamente ao conceito de compensação adleriano que governou os rumos da “velha” psicologia, o qual se concentrava no plano sensorial e orgânico. Na opinião de Vygotski (1997), tal conceito de compensação objetivava identificar os limites que a deficiência impunha ao indivíduo, estando ancorado em uma equivocada visão de desenvolvimento humano que o caracterizava a partir daquilo que era mensurável, por conseguinte, nessa lógica interpretativa, as pessoas com deficiência eram vistas como menos desenvolvidas se compradas àquelas supostamente sem deficiências.

    Neste arcabouço teórico não é de se estranhar que todo o ponto de partida anterior no que tange ao estudo da deficiência situava-se em suas limitações, em suma, naquilo que a referida pessoa não conseguiria fazer, por conseguinte, a deficiência era vista como um mecanismo que rompia negativamente a linearidade do processo de desenvolvimento humano. Ledo e duplo engano. Primeiramente como já assinalamos, Vygotski (1997) pontua nosso desenvolvimento como sendo revolucionário e não evolutivo, em segundo lugar, o referido autor reitera a importância em se compreender o desenvolvimento das pessoas com deficiência como um processo complexo e pluri-determinado no qual as limitações orgânicas, se em um sentido podem levar a diminuição no desenvolvimento, em outro se relacionam dialeticamente com a vontade cultural de superá-las, criando, assim, formas de desenvolvimento criativas, infinitamente diversas, às vezes profundamente raras, iguais ou semelhantes às que observamos comumente.

    De acordo com Vygotski (1997), as lutas que geravam como tendência a superação da deficiência e o enriquecimento relacional do desenvolvimento mediante um processo dialético de compensação foram esquecidas pela defectologia anterior. Cabe enfatizar que o movimento de compensação descrito por Vygotski não pode ser visto de forma simplista, tal qual a materialização de uma espécie de substituição de alguns órgãos do sentido por outros. A compensação de que fala Vygotski (1997) não se dá no plano biológico, mesmo porque, a natureza não contrabalança automaticamente determinada perda, ou seja, o deficiente visual não passa a ter uma audição apurada pelo fato de o mesmo ter perdido a visão. Colocado este elemento, é imperioso ao entendimento efetivo da compensação que a sociedade se livre da lenda, esparsa na consciência cotidiana, de que a natureza ao despojar o homem de alguma função o compensa com uma suposta receptividade ampliada de outros órgãos de forma automática e simultânea.

    A melhora de um sentido subjacente quando da perda de outro decorre pela maior utilização e trabalho em sua evolução e não por uma espécie de dádiva divina. Mais do que nunca é preciso resgatar a idéia marxiana de que todos nossos sentidos são produtos da história, portanto, se transformam revolucionariamente. Assim, a compensação em termos Vygotskianos em nenhum momento objetiva a eliminação de um suposto déficit orgânico, posto que a mesma intua como meta teleológica a busca de um meio para que a pessoa com deficiência possa se apropriar de maneira ativa do patrimônio histórico acumulado pela humanidade.

    Nesse sentido, torna-se clara que a compensação de que fala Vygotski (1997) está norteada para os aspectos históricos, culturais e sociais da vida concreta humana, ou seja, é uma compensação que se dá fundamentalmente pelas ferramentas e signos originadas a partir do trabalho e da linguagem. Coerente a tal pressuposto, são esclarecedoras as palavras de Góes (2007, p.5) ao ressaltar que quando Vygotski analisa a compensação sobre a cegueira o mesmo considera que “o alfabeto braile, ao dar acesso à leitura e à escrita, tem importância muito maior que a sutileza do tato e do ouvido; a cegueira não é vencida pela compensação sensorial em si, e sim pela linguagem, pela palavra, pelo mundo dos conceitos”.

    Vygotski (2001) ressalta que o ser humano é mais rico que qualquer animal devido ao fato de o raio de sua atividade se ampliar ilimitadamente graças ao emprego e criação de ferramentas e signos, os quais nos permitem transpor os limites da experiência imediata, transformando a natureza e o próprio homem em todas suas dimensões. Tais órgãos artificiais desempenham papel de potência revolucionária em nosso desenvolvimento, contudo, não se inscrevem em códigos genéticos, uma vez que estão registradas na história e sua transmissão as gerações posteriores se dão mediante um complexo sistema de mediações.

    Tal assertiva, além da historicidade da compensação de que fala Vygotski, traz a tona dois elementos, quais sejam: a) é a vida social e seus produtos que geram as lutas pelas distintas formas e mecanismos de compensação, e; b) as possibilidades e potencialidades compensatórias dos sujeitos materializam-se mediante relações que o mesmo desenvolve com o corpus coletivo e os diferentes espaços de valorização e simbolização da cultura.

    Todavia, também é importante ressaltar que, de acordo com Vygotski (1997), nem toda compensação terá como desfecho um ato bem sucedido quanto ao seu objetivo inicial. Não se pode esquecer que a compensação se estabelece em íntima relação ao próprio desenvolvimento humano, profundamente revolucionário e complexo, e depende de uma intrincada conjugação entre fatores externos e internos, da sociedade e cultura, mas também do indivíduo e a luta por ele travada para vencer dada adversidade, luta esta que, em alguns casos, pode ser extremamente inglória. Nas palavras de Vygotski (1997, p.16-17)

    [...] como qualquer processo de superação e de luta também a compensação pode ter dois desenlaces extremos: a vitória e a derrota, entre os quais se situam todos os graus possíveis de transição de um pólo a outro. Seja qual for o desenlace que lhe espere ao processo de compensação, sempre e em todas as circunstâncias o desenvolvimento agravado por um defeito constitui um processo de criação e recriação da personalidade da criança, sobre a base da reorganização de todas as funções de adaptação, da formação de novos processos sobrepostos, substitutivos, niveladores, que são gerados pelo defeito, e da abertura de caminhos colaterais para o desenvolvimento. Um mundo de formas e vias novas de desenvolvimento, ilimitadamente diversas, se abre ante a defectologia.

    Não há compensação unilateral, o processo, como tudo que cerca o humano, é complexo e multifacetado. Além disso, inegavelmente o movimento de compensação não elimina um suposto déficit orgânico, porém o preserva em um plano secundário e subordinado, na medida em que a principal força motriz da constituição do humano se configura na relação que o mesmo estabelece para com a sociedade conjuntamente a materialidade da dialética entre apropriação e objetivação da cultura historicamente produzida. Devido a estes elementos, Vygotski (1997, p.82) visualiza a sociedade e a cultura como palcos primordiais no combate a deficiência, por isso, para o mesmo

    Provavelmente a humanidade vencerá, tarde ou cedo, a cegueira, a surdez e a debilidade mental. Porém, as vencerá muito antes no plano social e pedagógico que no plano médico e biológico. É possível que não esteja distante o tempo em que a pedagogia se envergonhe do próprio conceito de “criança deficiente”, como assinalamento de um defeito insuperável da sua natureza. O surdo que fala e o cego que trabalha são partícipes da vida comum em toda sua plenitude, eles mesmos não experimentaram sua insuficiência nem deram motivo aos demais. Está em nossas mãos fazer com que a criança cega, surda ou débil mental não seja deficiente. Então desaparecerá também esse conceito, signo inequívoco de nosso próprio defeito. [...] Todavia, fisicamente, a cegueira e a surdez existirão durante muito tempo na terra. O cego seguirá sendo cego e o surdo, surdo, porém deixarão de ser deficientes porque a defectividade é um conceito social, tanto que o defeito é uma sobreposição da cegueira, da surdez, da mudez. A cegueira em si não faz uma criança deficiente, não é uma defectividade, isto é, uma deficiência, uma carência, uma enfermidade. Chega a sê-lo somente em certas condições sociais de existência do cego. É um signo da diferença entre a sua conduta e a dos outros. A educação social vencerá a deficiência.

    Por conseguinte, a idéia de defectologia inaugurada por Vygotski (1997, 2001) insurge como numa luta contra toda a espécie de pré-formismo paidológico que interpretava o desenvolvimento humano como estando irrestritamente ligado ao incremento das funções orgânico-psicológicas e também contra a caduca concepção de que a pessoa com deficiência experimentava um desenvolvimento significativamente reduzido se comprado as pessoas sem deficiência. Contrariamente a esta perspectiva, para Vygotski (1997, p.12) “[...] a criança cujo desenvolvimento está complicado pelo defeito não é simplesmente uma criança menos desenvolvida que seus contemporâneos normais, senão desenvolvida de outro modo”.

    Coerentemente, a defectologia de Vygotski (1997) está estruturada sobre uma base metodológica positiva, uma vez que sua teleologia não objetiva identificar as supostas deficiências em corte isolado como fazia a velha psicologia, mas, sim, em estudar os processos do desenvolvimento infantil em sua diversidade, este é o objeto ao qual a defectologia deve a partir de então se debruçar. Por isso, o referido autor ressalta que antes de se investigar a deficiência é preciso conhecer a pessoa deficiente, a qual não se resume a sua limitação. Ou seja, é necessário esquadrinhar o local que a deficiência ocupa no desenvolvimento da personalidade do indivíduo, assim como a forma que o mesmo luta contra ela, pois a pessoa com deficiência, conforme frisa Padilha (2000, p.206), “não é deficiente por si só, o tempo todo, como uma entidade abstrata e deslocada. A deficiência está contextualizada e marcada pelas condições concretas de vida social”, as quais podem ser adequadas ou empobrecidas, inibidoras ou facilitadoras do engendrar de uma luta dialética pela compensação.

    É nesta luta que se percebe a deficiência para além da debilidade, na medida em que a mesma engendra uma força social para sua superação, cujas conseqüências são sentidas nos mais diversos processos sociais, dentre eles, na educação sistemática e assistemática. Vygotski (1997, p.47) se regozija com tal inversão ao frisar “Oh, que verdade libertadora para um pedagogo. O defeito não é unicamente fonte de pobreza psíquica, é também fonte de riqueza; não é unicamente debilidade, é também fonte de energia”, sendo assim, as possibilidades favoráveis de intervenção educacional estão tracejadas em sua raiz cognoscitiva e ontológica, posto que o objetivo da escola não mais consista em se adaptar ao defeito, mas, sim, em superá-lo, enfim, torná-lo entreposto ao desenvolvimento omnilateral do ser humano.

    Como a aprendizagem guia e alavanca o desenvolvimento, para Vygotski (1930, 1997, 2001) grande parte do rótulo imposto sobre a deficiência deriva-se de uma relação educacional bilateralmente errônea, tanto do ponto do desenvolvimento individual como coletivo ao se esquecer que as leis do desenvolvimento revelam-se uma só, estejamos nos referindo as pessoas com ou sem deficiência, e que as supostas limitações são principalmente atribuídas socialmente a um indivíduo e não por sua configuração orgânica. Grosso modo, a aprendizagem impulsiona o desenvolvimento mediante a criação de zonas de desenvolvimento iminentes, o qual, por sua vez, incita a evolução de processos psíquicos superiores que, quando internalizados, se tornam aquisições independentes do ser humano, sendo que tais complexificações são decorrentes de uma correta organização da aprendizagem que tenciona os indivíduos para além das esferas cotidianas. Por isso, Vygotski (1997) reiteradamente faz duras críticas às escolas especiais que focam sua atenção nas funções elementares e nos limites colocados pela deficiência.

    Especificamente sobre as questões pedagógicas, Vygotski (1997) se mostra intensamente preocupado com a forma pela qual se desenvolvia o ensino direcionado à crianças com deficiência, pois o mesmo, via de regra, centrava-se no desenvolvimento das funções elementares fincado em um pensamento figurativo-concreto esvaído de qualquer possibilidade de abstração, ou seja, sustentava-se sobre o déficit como se sua meta consisti-se em conformar os sujeitos a sua deficiência e não superá-las, ou seja, era o ensino orientado com base no desenvolvimento já produzido, do já concretizado. Ora, mas se é para aprender o que já se sabe qual o sentido da escola?

    Com essa pergunta Vygotski (1997) inverte o sentido dado usualmente a educação das pessoas com deficiência, qual seja: se apropriar das coisas mais simples possíveis objetivando futuramente a realização de alguma tarefa prática e mecânica. Aliás, para o referido autor, a dificuldade da criança com deficiência em dominar pensamentos e lógicas abstratas deriva-se da exclusão promovida pela própria sociedade quanto ao desenvolvimento de suas funções psíquicas mais elevadas e ao massivo trabalho educacional voltado em sua instrução apenas para o concreto e visual. Posto isto, nota-se que historicamente se buscou trabalhar em uma espécie de linha que fornecesse a menor resistência quanto à materialização de uma dada atividade pelas pessoas com deficiência, quando, na verdade, deveria se almejar ir além do que a limitação hipotética a subscreve, em síntese, dar um passo para além do que a pessoa já apresenta. Nesse sentido, justamente pelo fato de a criança com deficiência, em geral, ter problemas com o pensamento abstrato, a escola deveria enfocar o trabalho e desenvolvimento desta capacidade se valendo para tanto de todos os meios ao seu alcance, pois assim contribuiria para o enriquecimento, complexificação do pensamento e a superação dialética da deficiência.

    É inadmissível em termos educacionais se partir de um pressuposto de que as crianças com deficiência são menos inteligentes e precisariam de programas de ensino simplificados para atender suas necessidades. Qualquer trabalho educativo efetivamente emancipatório deve estar orientado para a apropriação daquilo que mais rico a humanidade produziu em termos culturais, cuja consecução possibilitará a elevação do nível qualitativo cognoscitivo, além de criar outras possibilidades de significar o mundo.

    A teleologia escolar funda-se em possibilitar que os alunos, independente de suas características e diferença, se apropriem dos bens culturais desenvolvidos pela humanidade, sendo assim, é imperioso que a mesma garanta o mesmo acesso ao conhecimento, embora o possa fazer mediante uma gama díspar de metodologias. Colocado estes elementos, destacamos que a tão aclamada inclusão escolar apenas estará ocorrendo quando todas as crianças puderem tornar concreto o pressuposto acima, logo, incluir não é apenas alocar as mais diferentes crianças em uma sala de aula. É preciso fazer valer indistintamente a máxima da funcionalidade social da escola, que é a do trabalho com o conhecimento sistematizado mais evoluído e a possibilidade de se ofertar aos seus sujeitos formas e caminhos de transformação histórica da realidade. E o preparo para a transformação da sociedade se configura como o principal objetivo da educação, uma vez que nas palavras de Vygotski (1930, p.7)

    A educação deve desempenhar o papel central na transformação do homem. Nesta estrada de formação social consciente de gerações novas, a educação deve ser a base para alteração do tipo humano histórico. As novas gerações e suas novas formas de educação representam a rota principal que a história seguirá para criar o novo tipo de homem.

Considerações finais

    Esperamos ter aclarado alguns dos principais conceitos e pressupostos que envolvem o pensamento de Vygotski acerca da defectologia, campo científico que, embora arquitetado no primeiro quartil do século XX, ainda se mostra extremamente atual no que tange a sua potencialidade compreensiva quanto ao desenvolvimento histórico-cultural do ser humano, cuja materialidade traduz sérios desafios para um novo pensar em educação e na própria forma como encaramos a diferença enquanto pólo auto-constitutivo da humanidade que nos é singular.

Referências

  • CARLO, M. M. R, do. Se essa casa fosse nossa...: Instituições e processos de imaginação na educação especial. São Paulo: Plexus, 1999.

  • GINDIS, B. Vygotski’s vision. Remedial and Special Education, v. 20, n. 6, p. 32-64, 1999.

  • GÓES, M. C. R. Contribuições da abordagem histórico-cultural para a pesquisa em educação especial. Diálogo e Pluralidade: São Paulo, 2007.

  • GRIGORENKO, E. L. Russian “defectology”. Journal of Learning Disabilities, Austin, c. 31, n. 2, p. 193 -208, mar./apr. 1998.

  • KOZULIN, A. (1990). La Psicología de Vygotski. Madrid: Alianza.

  • LURIA, A. R. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais. 2. ed. São Paulo: Ícone, 1994.

  • PADILHA, A. M. L.; Práticas educativas: Perspectivas que se abrem para a educação especial. Educação & Sociedade, ano XXI, n.71, p.197-219, 2000.

  • VYGODSKAYA, G. L. Vygotski and problems of special education. Remedial and Special Education. V. 20, n. 6, p.330-332, 1999.

  • VYGOTSKI, L, S. Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Madrid: Visor, 1997.

  • VYGOTSKI, L, S. A transformação socialista do homem. URSS: Varnitso, 1930. Marxists Internet Archive: English version.

  • VYGOTSKI, L, S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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