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A dança e seus sentidos no ritual de iniciação 

Waymat da etnia indígena Sateré-Maué

La danza y sus sentidos en el ritual de iniciación Waymat de la etnia indígena Sateré-Maué

 

Professor Adjunto da Universidade Federal do Amazonas

Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia

Membro do Centro de Estudos Estratégicos da Amazônia Brasileira, UFAM

Comando Militar da Amazônia

Dirceu Ribeiro Nogueira da Gama

dirceugama@ufam.edu.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O objetivo do presente trabalho consiste em investigar os sentidos específicos atribuídos à dança pelos índios Sateré-Maué no contexto do ritual Waymat, tendo em conta que se trata de um dos acontecimentos mais significativos das tradições culturais desse povo. A hipótese de trabalho adotada é a de que a dança apresenta conotação mística para os Sateré-Maué. Assim, o presente estudo investigou, a partir de um enfoque hermenêutico e fenomenológico, documentos etnográficas cujas descrições enfatizaram a realização dessa prática. A leitura e análise desse material se deu em consonância com os procedimentos metodológicos apregoados por Goldenberg (1997) e Bardin (1977). Quanto à interpretação do conteúdo, as abordagens conceituais de Gheerbrant & Chevalier (2002), Leloup (2009), Eliade (1999), Eliade (s.d.) e Campbell (1992) fundamentaram-na. No que concerne aos resultados, duas grandes categorias heurísticas foram achadas: “Dimensões individuais da Dança” e “Dimensões Coletivas da Dança”. Conclui-se que a dança corresponde, no âmago do Waymat, a uma prática de condução a ancestral esfera do sagrado pelas vias do corpo. Dialeticamente, ela também possui a função de linguagem através da qual os índios Sateré-Maué se apropriam desse retorno ao começo de tudo e refundam as raízes de sua identidade sócio-cultural.

          Unitermos: Sentidos. Dança. Ritual iniciatório. Índios. Sateré-Maué.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 190, Marzo de 2014. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    A etnia indígena Sateré-Maué constitui um grupo da família lingüística Tupi-Guarani de mais ou menos dez mil indivíduos, cuja grande maioria (em torno de oito mil) atualmente habita a área de nome Andirá-Marau, situada no estado do Amazonas entre os municípios de Barreirinha, Maués e Parintins. Apesar disso, os índios desse grupo étnico freqüentam com constância os espaços urbanos dessas cidades e de outras (com destaque para Manaus) por motivos comerciais, laborais, políticos, de assessoria técnica, educação e saúde (Alvarez, 2009).

    Um dos acontecimentos sociais mais significativos para o povo Sateré-Maué é o ritual Waymat, a saber, uma prova de iniciação masculina onde jovens índios púberes devem colocar as suas mãos no interior de luvas de palha contendo formigas silvestres denominadas “tucandeiras” ou “tocandiras”. Tais insetos, conhecidos pelas suas picadas dolorosas, capazes de produzirem dor intensa, inchaço, febre e, não raro, alucinações, aferroam as mãos daqueles repetidas vezes por alguns minutos até que seja autorizada a retirada das luvas iniciatórias. Aqueles que conseguirem manter as mãos no interior da mesma serão considerados sujeitos respeitosos e dignos, podendo prosseguir na vida adulta com direito a matrimônio e outras benesses (Pereira, 2003).

    Sobre os neófitos, eles passam por uma rigorosa preparação baseada em dietas alimentares, escarificações e abstinência de água horas antes da colocação das suas mãos nas luvas repletas de formigas. Chegada a hora marcada para o ritual, a sua abertura é comunicada por sucessivos cantos e danças, efetuados tanto pela platéia de observadores como pelos jovens protagonistas que nele tomarão parte. Em se tratando da dança propriamente dita, há diversos documentos etnológicos ratificando que ela perpassa todo o Waymat, desde antes da inserção das mãos nas luvas até o comando para a retirada. Mesmo nos dolorosos instantes em que as formigas perfuram os dedos, unhas, vasos e punhos dos neófitos, as atividades de dança não cessam. Assim, consoante essa perspectiva, é legítimo asseverar que a realização do Waymat, na medida em que se desenvolve num ambiente dançante, indica o elevado status obtido por tal prática no conjunto das tradições iniciatórias dos Sateré-Maué (Beaufort. 2008).

    Portanto, o objetivo do presente trabalho consiste em investigar os sentidos específicos atribuídos à dança pelos índios Sateré-Maué no contexto do ritual Waymat. A hipótese de trabalho adotada é a de que a dança apresenta conotação mística, entendendo por misticismo a crença de que o homem goza da prerrogativa de poder acessar diretamente a esfera do sagrado caso algumas condutas e comportamentos sejam seguidos com rigor (Abbagnano, 2000).

    A justificativa para efetuá-lo vem da constatação de que a dança constitui um componente da cultura corporal de movimento da humanidade observado em todas as épocas e lugares, asseveram Cascudo (2004) e Grifi (1989). No caso específico da Amazônia brasileira, considerando que mais de oitenta etnias indígenas residem em seu perímetro exibindo modos de vida assentes em linguagens, hábitos, costumes e moralidades próprias, é possível, por conseguinte, projetar para a dança inúmeras particularidades estéticas, simbólicas, mitológicas e educativas no que concerne as razões de cada um desses povos para praticá-la (Neves, 2011). Dessa feita, registrar, dimensionar e compreender questões dessa natureza, pelo fato disso contribuir para a ampliação do acervo de conhecimentos acadêmicos existentes sobre as diferentes significações socioculturais da dança, torna-se um imperativo epistêmico. Além disso, cabe recordar que, de acordo com os Planos Curriculares Nacionais (PCN), a adaptação de múltiplas manifestações da cultura corporal de movimento, sob a forma de conteúdos pedagógicos, aos programas de ensino-aprendizado da educação básica é uma tarefa da qual a educação física escolar não pode deixar de dar conta, por mais desafiadora que ela seja (Darido, 2003).

    Malgrado essa orientação, por si só, já acenar favoravelmente para uma progressiva introdução das danças indígenas nas matrizes curriculares dos estabelecimentos de ensino formais localizados no Brasil desde 1999, ano em que os Planos Curriculares Nacionais de educação física foram pela primeira vez publicados, pode-se dizer que essa possibilidade tornou-se obrigação de fato com a promulgação da Lei Federal 11645/2008. Segundo esta, o estudo de aspectos da cultura afro-brasileira e indígena deve estar presente nos currículos escolares vigentes em todo o território nacional (Brasil, 2008). Assim, o estudo em voga, porquanto focaliza a dança de uma etnia indígena como objeto de pesquisa, indiretamente atina com as diretrizes dos PCN e com o teor da supracitada lei, pois sua efetivação concorre para a produção de informações científicas também detentoras de estimado valor pedagógico, haja vista poderem ser aproveitadas como conteúdos curriculares da educação física escolar a posteriori.

O ritual Waymat: apontamentos conceituais

    Como previamente citado na sessão anterior, o ritual Waymat apresenta suma importância para o cotidiano do povo Sateré-Maué. Uggé (1993) relata que é comum ela ocorrer em paralelo a encontros de chefias tribais, reuniões, finalização de grandes serviços coletivos, matrimônios e assembléias. Até mesmo nas visitas esporádicas de missionários religiosos, há registros de seu acontecimento. No fundo, isso demonstra que não há uma época rigorosa para a ocorrência desta manifestação cultural.

    Contudo, parece haver uma quantidade maior de eventos nos meses de verão. Quem decide quando praticá-lo é o próprio jovem indígena, o que confere ao Waymat uma certa dimensão personalizada. Normalmente, esse jovem é ensinado desde a infância que um dia deverá comunicar aos pais, parentes ou autoridades tribais o desejo de tomar parte no ritual como protagonista principal. Chegado o momento, ele efetua esse anúncio, no que lhe é relembrada a dificuldade e dureza da prova. Em seguida, parentes, amigos e demais membros da comunidade são avisados da data, assim como é escolhida a autoridade que atuará como cantor e dirigente máximo do ritual, o Wepyhat.

    Na véspera do ritual, segue Uggé (1993), alguns índios saem à floresta para procurarem as formigas, que, depois de achadas, são colocadas por meio de galhos num recipiente específico para recebê-las, o Tum-tum. No dia seguinte, é preparada uma infusão à base de água e folhas de caju maceradas. A preparação da solução cessa quando esta adquire tonalidade marrom-clara. Atingida essa etapa, as formigas são retiradas do Tum-tum e mergulhadas no caldo escuro, o que lhes causa torpor e, não raro, suspensão da consciência.

    Em se tratando da confecção das luvas destinadas a receberem as formigas tucandeiras desfalecidas, chamadas de Saaripé e feitas à base de uma fibra vegetal conhecida como Warumá, elas normalmente tendem a ser tecidas assim que a data do ritual é estabelecida. Os Saaripé podem ser cilíndricas, redondas, ovais ou de várias outros formatos. A escolha por um ou outro formato tem a ver com motivos de natureza social. Ainda com relação ao formato e aos desenhos ornamentais feitos nas luvas, elas são batizadas com nomes de peixes, aves, etc.

    A fixação das formigas nas luvas é feita com cuidado, lembra Uggé (1993), a fim de que estas não sofram machucados. Na parte de cima da luva, são amarradas penas de gavião. Terminada a ornamentação, a luva é pendurada no mastro central de um barracão, em forma de abóbada, onde ocorrerá o ritual. Decorridas duas a três horas, as formigas acordam e mostram-se bastante inquietas, pelo fato de estarem presas. Chegada a hora arbitrada para o começo do Waymat, o rapaz a ser iniciado apresenta-se com a cabeça coberta por uma proteção, mãos e braços enegrecidos pela aplicação de sumo de jenipapo como também exibindo riscos avermelhados de sangue, obtidos pela raspagem da pele com dentes de paca. No que compete ao condutor do ritual, ele confirma a presença dos escolhidos que deverão soprar pequenos tocos de bambu perfurados à sua ordem, cujo som assemelha-se a uma buzina. Tal zunido comunica a abertura da celebração.

Materiais e métodos

    Apesar de haver na literatura antropológica brasileira e internacional uma grande quantidade de registros etnográficos sobre as características mais notórias da sociedade e da cultura Sateré-Maué, em cujos conteúdos a descrição do Waymat figura com bastante riqueza de detalhes, ainda assim apenas não mais do que quatro trabalhos se propuseram a pormenorizar a dança enquanto elemento indissociável deste ritual. Tais trabalhos são, em ordem cronológica, os de Rodrigues (1882), Nimuendajú (1948), Figueroa (1997) e Kapfhammer (2009). Em função dessa especificidade, estas obras constituíram o corpus de análise do presente estudo, o qual pode ser classificado, de acordo com Faria Junior (1992) como de natureza qualitativa com viés hermenêutico-fenomenológico, ou seja, visa interpretar informações documentais existentes em textos pressupondo que tal ato parte do exercício de uma consciência que lhes outorga sentidos à medida que adentra as teias de significantes e significados responsáveis por comunicá-las (Dartigues, 1992; Russ, 2010). Em se tratando do processo de decodificação das estruturas lingüísticas dos textos do corpus, ele obedeceu aos procedimentos metodológicos apregoados por Goldenberg (1997), os quais constam de três etapas: leitura de familiarização, de exploração e de identificação das marcas textuais mais recorrentes. Na leitura de familiarização, estabeleceu-se um primeiro contato com as etnografias existentes sobre dança no âmbito do Waymat. Em seguida, na fase de exploração, procurou-se discernir os sentidos explícitos e implícitos associados a esta prática corporal. Depois, os sentidos identificados foram agrupados por semelhança semântica dentro de categorias heurísticas extraídas do próprio material do corpus (Bardin, 1977). Por fim, ocorreu a interpretação daqueles conforme os aportes teóricos de Gheerbrant & Chevalier (2002), Leloup (2009), Eliade (1999), Eliade (s.d.) e Campbell (1992).

Resultados

    Da análise do corpus, emergiram duas grandes categorias heurísticas, que receberam as denominações de “Dimensões Individuais da Dança” e “Dimensões Coletivas da Dança”.

Dimensões individuais da dança

    Percebe-se que os jovens submetidos ao Waymat devem efetuar algumas movimentações corporais específicas com os pés, as mãos e o corpo como um todo, onde ora recebem o auxílio do condutor do ritual e de alguns dos demais participantes, ora não.

    No caso dos pés, as seguintes assertivas, retiradas do material do corpus, também denotam a vinculação de implementos sonoros nas suas proximidades, mais precisamente abaixo do joelho. Merece destaque a ênfase dada ao pé direito:

  • “... um tipo de chocalho, ou maracá, é fixado pouco abaixo do joelho direito,...”

  • “imediatamente, o pé direito é levantado até ficar na altura do joelho esquerdo para ser repetidamente batido contra o solo.”

  • “o chocalho na canela direita vai ajudar na marcação rítmica da dança.”

    Com muita propriedade, vestimentas de origem não indígena de cobertura dos membros inferiores estão, às vezes, presentes na consecução do ritual, comprovando sua incorporação à tradição do Waymat:

  • “Hoje, o ritual da Tucandeira ainda continua na área Sateré-Maué, nas aldeias espalhadas ao longo dos igarapés e dos rios Andirá, Marau e Miriti; às vezes, os enfeites tradicionais indígenas, como os maracás, misturam-se às bermudas, sapatos e meias.”

    As batidas com o pé direito no chão, da parte dos neófitos, começam assim que as luvas com formigas são postas em suas mãos:

  • “Mal colocadas as luvas e as formigas a mordê-lo, o jovem começa a desferir golpes com a sola do pé direito no chão.”

    Acerca das mãos, a sua participação é marcada pela inserção das mesmas no interior das luvas. O candidato pode decidir se o ritual será para ambas as mãos ou apenas uma delas. O fragmento a seguir atesta essa possibilidade.

  • “Neste momento, quem consegue agüentar a dor, bate o pé repetidas vezes, erguendo a luva ou as luvas no caso (não raro) que o iniciado tenha pedido a prova para ambas as mãos.”

    A colocação das luvas segue uma direção específica (de cima para baixo) e ocorre no centro do barracão, bem próxima ao mastro central que lhe dá sustentação. É nessa hora que alguns ajudantes auxiliam o condutor do ritual:

  • “... segurando a luva pela parte de cima e descendo-a na mão do iniciado.”

  • “... O dirigente e outros ajudantes seguraram os cotovelos e o braço do iniciado num ângulo de noventa graus, com as mãos apontando para cima.”

  • “O condutor do ritual coloca o neófito do lado do mastro central e, ali, deposita-lhe a luva,...”

    Tão logo as mãos, apontando para cima, se encontram vestidas com as luvas, o neófito começa movimentar seu corpo em sentido giratório. Enquanto rodopia, o diretor do ritual lhe recita preces e mensagens míticas.

  • “Calçadas as luvas, o jovem gira em torno de si enquanto suas mãos são perfuradas pelos ferrões das tucandeiras. Mesmo de longe, percebe-se expressões de dor em seu rosto.”

  • “Batendo com o pé no solo, ele roda no mesmo local, sem sair do lugar, ouvindo recomendações.”

    Assim que o condutor finaliza a sua fala, segue-se o fim do Waymat, consumado com a retirada das luvas.

Dimensões coletivas da dança

    Nos dias em que um ritual Waymat foi marcado para acontecer, a maioria dos membros da aldeia recebeu, em algum momento, chamamentos para assisti-lo. Os que aceitaram o convite, à medida que adentram e se acomodam no barracão ritualístico, aguardam o comando do condutor que deflagrará a celebração propriamente dita. Esse comando advém de nota musical uníssona emitida por flautas, seguidas do som de maracás (chocalhos) agitados por alguns dos membros presentes outrora escolhidos para chacoalhá-los.

  • “Ao sopro das flautas, ouve-se uma nota aguda e prolongada; neste instante inicia-se o ritmo da dança marcado pelo barulho especial do chocalho.”

    A dança é aberta a qualquer um, independente de sexo ou posição social. Ao final do sopro das flautas, o comandante do ritual chama o neófito e segura uma das suas mãos. Este é o sinal para que o público presente venha a se posicionar atrás deles, dando as mãos para formar uma longa fila.

  • “Todos podem assistir. As mulheres, sobretudo as não casadas, podem entrar na fila da dança junto com outros homens, jovens e rapazes que também acompanham os outros candidatos. O tuxaua, o pajé e outros adultos podem estar presentes também.”

    Feita a fila, uma evolução circular em volta do eixo central do barracão da tribo, com passos para a frente, para trás e para o lado começa. Essa movimentação coletiva pode ir para um lado ou para o outro, dependendo do que for determinado pelo comandante. Este último, a partir de então, entoa cânticos cuja letra narra os feitos de personagens mitológicos da cultura Sateré-Maué.

  • "O movimento da dança é rítmico em passos para a frente, para o lado e para trás. Também a fila desloca-se para a direita ou esquerda, dependendo do que quiser o diretor do ritual. O envolvimento pelo ritmo e pelo canto é notório.”

    A movimentação da fila continua mesmo depois do diretor do ritual e do neófito se retirarem para o interior do círculo dançante, à vista da colocação das mãos deste último nas luvas.

  • “A dança giratória do público não cessa. Localizados bem no centro do círculo, o diretor põe as luvas no jovem...”

  • “A dança rítmica é despertada pelo canto e continua por alguns minutos em torno do candidato e do dirigente, cessando quando o primeiro demonstra que superou a dor das ferroadas. Depois a luva é retirada e a dança segue ate chegar à vez do próximo”

    A dança coletiva só termina quando todos os candidatos, se houver mais de um, calçarem as luvas repletas de tucandeiras. Não há nenhuma interdição definitiva para pará-la que não seja a liberação do último neófito pelo comandante do Waymat.

  • “Há intervalos para comida e bebida. A dança pode durar o dia inteiro até a noite, e ser repetida por outros dias em várias formas, a depender da quantidade de participantes.”

Discussão

    Segundo o observado, a utilização intencional do pé direito insurge como uma marca identitária do ritual Waymat. Entretanto, discutir esse uso, a partir de um prisma antropológico, exige antes alguns esclarecimentos no que concerne ao simbolismo dos pés.

    Para Leloup (2009), o pé equivale ao suporte estrutural do corpo humano, de quem as pernas são o prolongamento natural. Sem pés, o indivíduo não se sustenta na posição ereta e muito menos consegue realizar deslocamentos no tempo e no espaço. Por causa disso, frisa o autor, os pés desempenham, para o homem, o mesmo papel da chave, porque possibilitam a manutenção da verticalidade corporal e o movimentar-se de um ponto a outro. Eles “abrem” as “portas” do mundo às pessoas, dando-lhes a chance de irem ao encontro do que vislumbram e anseiam obter, seja para a satisfação das necessidades mais imediatas, seja para aquelas de maior envergadura espiritual. Mantendo o indivíduo atado ao chão, ele também é, dialeticamente, o vetor que possibilita a alteração de sua posição nela.

    Na interpretação de alguns psicanalistas, o pé teria também uma significação fálica. Sua integridade contém em si a força totalizante da alma que, jamais capitulando diante das adversidades, acarreta a reprodução do ser humano (Gheerbrant & Chevalier, 2002).

    Isto posto, porque então a recorrência ao pé direito? Gheerbrant & Chevalier (2002) lembram que nas mitologias de povos situados em todas as regiões do globo, é comum a associação do lado direito com a esfera celeste e solar. Assim, invocá-lo representa um meio de estabelecer contato com entidades que habitam esse domínio além do sensível.

    A fixação do maracá, ou chocalho, um pouco abaixo do joelho direito corrobora esse chamamento do transcendente. O maracá guarda homologia com o tambor dos xamãs siberianos, afirmam Gheerbrant & Chevalier (2002), sendo uma forma de entrar em comunicação com o divino e de trazer ao presente os ancestrais. Para a efetuação dessa operação, o som percutido desempenha um papel estratégico, porque repete a melodia primordial da criação, levando quem o escuta aos estados extáticos típicos de quem consegue vivenciar o mysterium tremendum (Otto, s. d.). Parafraseando Campbell (1992), o maracá e sua sonoridade estão na interface de dois universos separados: um superior e abrigador; o outro, conflituoso e desagregador. Por vezes, elos de ligação (uma árvore, uma montanha, uma corda, etc.) atravessam a zona limítrofe que separa a ambos. O chacoalhar ativa a ultrapassagem dessa cisão. Portanto, ele é como um veículo espiritual de condução ou de mediação entre o céu e a terra. A cada vez que é sacudido no Waymat, o maracá põe o neófito em consonância com o eixo do mundo, permitindo-lhe acessar o tempo primordial das origens (Eliade, s. d.).

    O eixo do mundo, por sua vez, ou axis mundi, nos termos de Eliade (1999), está representado pelo mastro no meio do barracão, em volta do qual a coletividade dança na forma de uma grande roda. É ali que há o rompimento da homogeneidade do espaço e do tempo, fazendo com que as energias fundantes que estiveram manifestas na origem do mundo reapareçam exatamente tal qual ocorreu no instante deflagrador de toda a criação. Em outras palavras, o mastro localizado no meio do barracão desempenha a função de coluna cósmica atando as regiões celestes superiores, a terra e as regiões inferiores abaixo da terra. “Essa coluna cósmica só pode situar-se no próprio centro do Universo, pois a totalidade (...) habitável espalha-se à volta dela. (...) – logo, o eixo encontra-se (...) no “umbigo da Terra.” (Eliade, 1999, p. 38).

    Por outro lado, que sentido tem a dança enquanto grande evolução circular efetuada em volta do mastro ou axis mundi? Analogamente, como interpretar o rodopio em torno de si feito pelo neófito após a colocação da luva em suas mãos? Segundo Gheerbrant & Chevalier (2002), movimentos circulares aludem à perfeição daquilo que não possui início ou fim.

    O círculo simbolizará (...) o céu, de movimento circular e inalterável. (...) Em um outro nível de interpretação, o próprio céu torna-se símbolo (...) do mundo espiritual, invisível e transcendente. Mais diretamente, porém, o círculo simboliza o céu cósmico, particularmente em suas relações com a terra. Nesse contexto, o círculo simboliza a atividade do céu, sua inserção dinâmica no cosmo, sua causalidade, sua exemplaridade, seu papel providente. E por essa via se junta aos símbolos da divindade debruçada sobre a criação, cuja vida ela produz, regula e ordena. (Gheerbrant & Chevalier, 2002, p. 250).

    Acerca do binômio mão-luva, ele reitera o supracitado encerramento das contingências que dicotomizam o céu e da terra. Logo, ele alude à idéia de uma união primordial entre os elementos, onde não havia separações ou cisões entre eles. Gheerbrant & Chevalier (2002) e Leloup (2009) asseveram que a mão expressa a ação diferenciadora que sintetiza a fusão do masculino com o feminino. Ela prolonga-se nos utensílios que segura, e por isso faz o homem único em relação aos outros espécimes animais. Ela guarda homologia com a flecha.

    Na qualidade de instrumento, (...) a flecha é o símbolo da penetração, da cobertura. A flecha simboliza também o pensamento, que conduz a luz e o órgão criador, que abre para fecundar, que desdobra a fim de permitir a síntese... é ainda o traço de luz, que ilumina o espaço fechado, porque o abrimos. (...) Ela é, igualmente, (...) símbolo dos intercâmbios entre o céu e a terra. (...) De modo geral, a flecha é o símbolo universal de ultrapassagem de condições normais; é uma liberação imaginária da distância e da gravidade; uma antecipação mental da conquista de um bem fora de alcance. (...) Ela indica a direção em cujo sentido é buscada a identificação, ou seja: é a sua ao diferenciar-se que um ser consegue alcançar sua identidade, sua individualidade, sua personalidade. Ela é um símbolo de unificação, de decisão e de síntese. (Gheerbrant & Chevalier, 2002, p. 435).

    Assim, a mão (ou flecha), ao penetrar a luva e nela se encaixar, materializa a execução de um ato de fecundação, fecundação essa que produz uma nova vida para o neófito. Essa nova vida firma-se no surgimento das formigas tucandeiras no mundo, porque, segundo a mitografia Sateré-Maué, tal manifestação remete a uma sabedoria irrompida no mundo in illo tempore. A respeito dessa aparição, Uggé (s. d.) relata a crença coletiva de que, um dia, o índio Mupynũkuri, membro descendente do grande Tatu, foi buscar as tucandeiras, originadas da genitália das cobras fêmeas, lá dentro da terra. Em seguida, ensinou ao irmão Kenenké como serem aferroados por elas, assim como a melhor forma de ornamentar as luvas com penas de araras e gavião. Com efeito, as penas de araras e gaviões, aduz Figueroa (1997), pertencem a estirpe dos símbolos ascensionais ou solares, ou seja, são vetores de remissão aos céus. Portanto, na luva cheia de formigas e decorada com plumas de araras e gaviões, que foi preenchida em seu interior com a mão do neófito, tem-se a suspensão dos antagonismos entre masculino e feminino, céu e terra, etc. Paralela a essa suspensão, o jovem em estado de iniciação vislumbra e é penetrado, por alguns breves momentos, pelo fidedigno e imutável conhecimento do Ser.

    Em resumo, cada segmento em separado da dança efetivada no Waymat (uso do pé direito, rodopios individuais e coletivos, inserção das mãos na luva ornamentada) prefigura, a seu tempo, o alcance de um estágio onde não vigoram mais separações opositoras entre os entes. Trata-se do retorno a uma dimensão mítica responsável pela origem de tudo; invocá-la também abaliza a proposta de gestação e renascimento do jovem Sateré-Maué, na circunstância de neófito, para uma nova situação existencial.

Considerações finais

    Em linhas gerais, pode-se afirmar que a dança corresponde, no âmago do Waymat, a uma prática de condução mística a ancestral esfera do sagrado. Dialeticamente, ela também possui a função de linguagem através da qual os índios Sateré-Maué se apropriam desse retorno ao começo de tudo e refundam as raízes de sua identidade sócio-cultural.

    Nesse contexto, é mister realçar o papel do corpo. Quanto a isso, as observações de Clastres (2012, p. 193) soam salutares: “É, sem qualquer intermediário, o corpo que a sociedade designa como único espaço propício a conter o sinal de um tempo, o traço de uma passagem, a determinação de um destino.” O corpo é convocado a ser o suporte de segredos que tomam posse por completo de quem está em iniciação. O corpo individual funciona como ponto de encontro do ethos tribal, que, entendido como saber acumulado, nele inscreve-se.

    O que isso significa? Antes de mais nada, que o ritual de iniciação do Waymat é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens, do passado ao presente, do virtual ao atual. Essa pedagogia ensina os cânones de uma lei cujo registro circuita a superfície da pele aos mais longínquos recônditos da memória.

    Em que pesem essa breves considerações, reitere-se a importância do aproveitamento dessa prática cultural, salvaguardadas as devidas mediações pedagógicas, na composição curricular de disciplinas da educação básica, como, por exemplo, além da educação física, a educação artística, a sociologia, a filosofia e a história. Conteúdos de ensino como esse são de grande valia para a compreensão da forma com que grupos humanos educados em preceitos outros que não aqueles alinhados com a tradição ética, epistêmica e religiosa do pensamento ocidental estruturam suas vidas correntes. Dessa feita, corroboram que comportamentos e atitudes não obedientes aos valores veiculados pela cultura de massas das sociedades de consumo ainda vigoram na cena contemporânea.

Referências bibliográficas

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