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Educação de crianças na creche: implicações no corpo infantil

Educación de los niños en el jardín maternal: implicaciones para el cuerpo infantil

 

*Acadêmico do curso de Educação Física Licenciatura da Universidade Federal de Sergipe – UFS

Membro do Grupo de pesquisa “Corpo e Governabilidade: política, cultura e sociedade”

**Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe, UFS

Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Membro do Grupo

de pesquisa “Corpo e Governabilidade: cultura, política e sociedade”

***Professora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe, UFS

Mestre em Educação nas Ciências pela UNIJUÍ. Membro do EDUCON/UFS

Grupo de Pesquisa Educação e Contemporaneidade

Elder Silva Correia*

elder.correia17@gmail.com

Fabio Zoboli

zobolito@gmail.com

Roselaine Kuhn

roselainek@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este estudo objetiva analisar através de uma pesquisa de campo a educação do corpo da criança numa instituição educacional chamada creche situada na cidade de Propriá/Sergipe/Brasil. A partir da pesquisa de campo -do tipo observação livre- foi feito um diário de campo e por meio deste foram estabelecidas algumas categorias de análises que juntas ao nosso referencial teórico nos deram as condições de analisar e refletir sobre a educação das crianças na instituição observada. Percebemos que os diversos aspectos da creche, desde a arquitetura até o brinquedo e a brincadeira que a criança realiza, fazem parte do processo – que acaba ordenando e disciplinando o corpo – de educação da mesma – processo que ocorre no corpo e pelo corpo. Consideramos que para superar as velhas práticas, é preciso incorporar novas práxis que levem em conta a corporeidade da criança, oportunizando intervenções educativas mais centradas no lúdico e no movimento.

          Unitermos: Educação do corpo. Criança. Creche.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 18 - Nº 182 - Julio de 2013. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    O presente artigo é fruto de uma pesquisa de campo a qual foi proposta na disciplina Ensino da Educação Física na Educação Infantil, do curso de Educação Física licenciatura da Universidade Federal de Sergipe/UFS – Brasil.

    A criança neste texto é compreendida e delineada a partir de várias dimensões que a caracteriza como igual às demais ao mesmo tempo em que é única e diferente de todas. A criança, assim como todo ser humano, é um ser dotado de uma estrutura biológica e psicológica que lhe atribui características, de certo modo, universais. No entanto, não podemos reduzir a criança a isso, já que ela possui também um contexto cultural, econômico e político mediado por pessoas e instituições.Por isso, falar de infância é algo complexo, pois a criança tem em sua essência a fragilidade biológica e a estrutura psicológica em formação, ao mesmo tempo em que está mergulhada em um contexto social que denuncia o desenvolvimento econômico, social e político de um povo.

    O corpo, como um dos alvos da educação escolar é produto de concepções materiais e subjetivas que o mediam, ou seja, a práxis pedagógica fica a mercê da concepção de corpo que os sujeitos/educadores têm do mesmo. Por isso que Assmann (1994) é incisivo em mencionar que por uma série de razões ligadas à crise conceitual e paradigmática da educação, deveríamos chegar ao acordo de que a corporeidade é a referência básica para poder falar seriamente de qualquer assunto na ética, na política, na economia e evidentemente na educação. O autor menciona ainda que a corporeidade constitui a instância básica para qualquer discurso pertinente sobre sujeito e a consciência histórica.

    Neste sentido, a professora da disciplina tratou a respeito da proposta, que foi ir a uma creche e acompanhar a manhã ou a tarde de uma turma. Tais visitas foram 4 (quatro) horas por dia, durante 5 (cinco) dias, o que resultaram em 20 horas. Após cada visita, foram descritas no diário de campo as situações que ocorreram durante as visitas, bem como algumas observações pré-eliminares.

    Antes da ida/observações, foi feito na sala de aula todo um preparo, no que diz respeito ao aspecto comportamental do pesquisador bem como o aspecto metodológico. Para isso, nos baseamos em Triviños (1987), e no que o mesmo trata como pesquisador observador e observação livre. Foram também debatidos em sala de aula, textos que abordam o tema da infância e o modo com que a mesma é tratada; com o intuito de nos dar um arcabouço teórico para fundamentar as análises feitas a partir das observações e do escrito do diário de campo.

    A creche escolhida para as observações localiza-se na cidade de Propriá – SE. As visitas aconteceram no período entre 27 de Abril de 2012, a 15 de Junho de 2012, sendo que aconteciam de 15 em 15 dias. A turma acompanhada foi a “C” da creche, e que tinham alunos de 3 anos de idade (porém haviam duas crianças que estavam acima dessa idade). Oficialmente haviam 17 crianças na turma, porém sempre faltavam alguns.

    O foco de análise das observações foi centrado na criança e sua relação com: o espaço-tempo, o adulto, os brinquedos, as brincadeiras, e a instituição (creche) como um todo, ou seja, a educação do corpo da criança. A análise foi feita a partir do diálogo entre os textos debatidos em sala de aula e algumas categorias.

    Tal estudo estabelece relações no sentido de compactuar com as pesquisas elaboradas por Ritcher e Vaz (2005), bem como a de Mezzaroba (2011). No primeiro estudo, os autores fizeram uma investigação etnográfica em um ambiente educacional de 0 a 6 anos da rede pública de ensino de Florianópolis, analisando o processo de educação do corpo das crianças. Já o segundo, inclusive – utilizando-se das categorias de análise do primeiro – fez um diálogo entre o texto “As técnicas corporais” de Marcel Mauss, com os aspectos empíricos observados numa creche aproximando-se de seu objeto de análise que foi a educação do corpo.

    Frente a isso, o objetivo do presente trabalho é apresentar a pesquisa de campo citada no inicio do mesmo, fazendo diálogo entre os trechos retirados do diário de campo, com as categorias e nosso referencial teórico, que parte da idéia de que toda e qualquer educação se dá no corpo e através do corpo e os saberes se inscrevem no corpo.

    Sendo assim, apresentamos este escrito a partir da seguinte estruturação: num primeiro momento do texto descrevemos a metodologia e o tipo de pesquisa empregada. Na segunda parte fizemos a descrição das arquiteturas escolares, narrando a estrutura do lugar denominado creche, tendo em vista que a mesma é incisiva no processo educação do corpo da criança. Num terceiro momento, trazemos uma pequena discussão teórica, a fim de sustentar a premissa de que toda educação se dá via corpo e no corpo. Na quarta sessão fazemos o diálogo entre os trechos do diário de campo, alguns teóricos e as categorias aqui estabelecidas, com o intuito de refletirmos a respeito da educação corporal das crianças na instituição observada. Por fim, trazemos nossas reflexões e considerações finais sobre o estudo aqui apresentado.

Metodologia

    A creche observada situa-se na cidade de Propriá, cidade brasileira situada no interior do estado de Sergipe que possui cerca de 28 mil habitantes e fica a 98 km da capital Aracaju. Por volta de 1970 Propriá possuía a segunda maior economia do estado, porém nos dias atuais sofre na questão econômica as conseqüências da má administração que perduram por décadas. Sua economia hoje se baseia basicamente no comércio na própria cidade, bem como outras que ficam ao seu redor.

    A creche fica localizada em um bairro pobre da cidade, e recebe crianças de famílias com baixo poder econômico. A mesma é mantida economicamente exclusivamente pela prefeitura da cidade. A turma acompanhada foi a turma “C” da creche, e que tinham alunos de 3 anos de idade (porém haviam duas crianças que eram acima dessa idade). Oficialmente havia 17 crianças na turma, porém sempre faltavam alguns.

    A metodologia empregada para a pesquisa foi do tipo “Observação Livre”, que segundo Triviños (1987, p. 153): “A pesquisa qualitativa emprega usualmente a observação livre do desenvolvimento de determinada situação. Nela pelo menos devemos ter presente dois aspectos de natureza metodológica que são muito importantes. Um deles relacionado com a amostragem de tempo, e o outro, com as denominadas Anotações de Campo. Estas últimas são consideradas tão delicadas que merecem destaque maior, análise mais detida, para colocar em relevo suas características.”

    As anotações de campo foram no diário de campo. Triviños (1987) entende que tais anotações: “Num sentido restrito, podemos entender as anotações de campo, por um lado, como todas as observações e reflexões que realizamos sobre expressões verbais e ações dos sujeitos, descrevendo-as, primeiro, e fazendo comentários críticos, em seguida, sobre as mesmas” (p. 154).

    O foco das anotações foram os aspectos que faziam parte da educação corporal das crianças na creche, como: o tempo-espaço, o adulto, a alimentação, o momento do sono, os brinquedos, as brincadeiras e a instituição como um todo. Destas anotações, a partir da leitura e reflexão das mesmas, foram criadas algumas categorias a fim de ser feita a análise junto ao nosso referencial teórico.

A creche: aspectos arquitetônicos

    Nesta sessão, serão tratados alguns aspectos da creche em que foram feitas as observações, aspectos principalmente no que diz respeito a estrutura/arquitetura, pois o espaço físico da instituição está também no cerne do processo educacional do corpo, na medida em que a creche faz parte de toda uma rotina da criança (MEZZAROBA, 2011), pois: (...) é o único espaço social que é freqüentado diariamente, e durante um número significativo de horas, por adultos e crianças. Para os pequenos, que freqüentam creches, pré-escolas e as séries iniciais, especialmente os que permanecem em horário integral, é aí que, para além do convívio familiar, aprendem a viver e a conviver. Nove horas diárias, às vezes, mais! Para quem em entre 0 e 10 anos, o que resta de tempo em cada dia? (...) (TIRIBA, 2007, p. 1).

    O espaço-tempo da escola, como parte definitiva na educação do corpo da criança, é um mediador cultural em relação a formação dos primeiros esquemas cognitivos e motores, ou seja, um elemento significativo como fonte e experiência e aprendizagem, o que pode ser considerado uma forma silenciosa de ensino (VINÃO FRAGO, 2001).

O espaço-tempo da creche

    Na entrada da creche existe um muro alto, onde no mesmo existem algumas flores, e é onde fica o primeiro portão da instituição. Ao passar do mesmo, existe outro portão onde dá acesso a sala de recepção; sala essa quadrada que tem 3 bancos de madeira.Ao passar dessa área, pode-se observar o que se chama de pátio da creche. Nesse pátio existe uma grande gaiola, onde dentro existem alguns pássaros. Ao meio da área existe uma piscina, e ao redor algumas árvores. A presente área é aberta (ao ar livre). A área descrita fica no centro, e ao redor de tal área há corredores onde dão acesso aos quartos, salas, banheiros e refeitório.

    O quarto que a turma dormia era: “(...) em formato de quadrado, onde nas paredes possuem 2 dois quadros de desenho infantil (...) um armário o qual em cima tinha alguns brinquedos (...) nas camas em que as crianças estavam dormindo eram camas de solteiro e de madeira.” O banheiro ficava uma sala após o quarto das crianças. O era dividido em duas (2) partes. Na primeira tinham 2 bancos, e na segunda era onde se localizavam os vasos sanitário (3 vasos), as pias (2) e os chuveiros (2). Tanto os vasos, como as pias eram pequenas, adaptadas para o tamanho/uso das crianças.

    Após 3 salas do banheiro, localizava-se o refeitório. O mesmo era em formato de quadrado, as paredes de cores claras. Na frente era o local de onde o cozinheiro servia a comida. Ao centro localizam-se as mesas que eram quadradas e as cadeiras. Em cada mesa ficavam 2 cadeiras (ou seja, 2 crianças em cada mesa). Tanto as cadeiras como as mesas eram de plástico. Ao fundo do refeitório tinha uma pia e dois filtros de água.

    Destacamos aqui também, a área em que na maioria das vezes a professora levava as crianças para brincarem: localizava-se atrás do refeitório, era uma área grande, onde na parte de cima havia árvores e o chão era formado de terra com folhas; e na parte de baixo (era onde as crianças ficavam) era calçada de paralelepípedo.

    Cabe descrever também uma área onde ficavam alguns animais que eram criados na creche: a seguinte área para poder chegar até ela teria que pegar um caminho feito por uma trilha de pedras que se iniciava depois da piscina. Em volta dessa trilha de pedras havia muitas árvores com aquários naturais onde tinham peixes e patos. O solo era coberto de areia e algumas folhas, bem como havia árvores por todos os lados.

    Foi feita a descrição de tais espaços físicos da creche porque consideramos relevante, visto que constantemente as crianças que acompanhadas estavam em alguns destes espaços, é a partir dessa descrição que poderemos analisar melhor o relacionamento da criança com os espaços, lembrando que os mesmos agem de forma intensa na educação dos corpos destas.

A educação no corpo e pelo corpo

    As práticas sociais constroem e reconstroem constantemente o ser humano e a sociedade, tais práticas de alguma forma são educativas. Assim, educação e a sociedade estão totalmente ligadas, podemos dizer que ambas são inseparáveis. Neste sentido a educação é: “[...] um processo que visa inculcar nos indivíduos determinados saberes que trazem em si determinados valores e determinadas regras. Esses saberes vão orientar e dar base de ação a esses indivíduos nas suas relações consigo mesmos, com a sociedade e com o mundo no seu processo de devir. A educação vista sob esse viés é o processo concreto de produção histórica da existência humana (ZOBOLI, 2012, p. 113)”

    O corpo na perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty (1999) é o elemento central para a existência humana, é também através dele que o homem tem consciência do mundo. Pelo corpo o ser humano se experimenta enquanto ser no mundo. O corpo é a ferramenta da qual o homem se utiliza nas suas relações com o mundo. Trata-se de um corpo sujeito na complexidade do sentir, pensar e agir formando uma unidade corpórea dando sentido, significado, possibilidade à existência do homem no mundo, assim como também permitindo a interação desse corpo sujeito com o próprio mundo. Entendemos aqui que toda e qualquer educação é corporal.

    Podemos assim entender que a maior referência do ser humano enquanto vida é o seu próprio corpo. Sendo assim, qualquer forma de “governamentalidade” do ser humano – melhor dizendo, qualquer forma de educação – se dá no corpo e pelo corpo. “[...] dominar, controlar, governar esse corpo sempre foi interesse das sociedades e também das práticas escolares [assim como em qualquer ambiente educacional], haja vista que este corpo fácil de manipular, treinar e controlar. Então nada melhor [para ambientes educacionais tradicionais, como as creches] do que utilizar toda a “maquinaria escolar” com seus processos, estratégias e práticas pedagógicas para vigiar, modelar, corrigir e construir corpos de meninos e meninas (HERMIDA; BEZERRA, 2012, p. 116)”.

    Assim, a educação (corporal) do ser humano, acontece a partir das necessidades de produção social. Sob este aspecto, na menção de Bracht (1999, p. 71): “O corpo sofre a ação, sofre várias intervenções com a finalidade de adaptá-lo às exigências das formas sociais de organização da produção e da reprodução da vida. Alvo das necessidades produtivas (corpo produtivo), das necessidades sanitárias (corpo “saudável”), das necessidades morais (corpo deserotizado), das necessidades de adaptação e controle social (corpo dócil)”.

    Neste sentido, a educação da criança se dá no corpo e na mesma medida pelo corpo. Sendo assim, que tipos de corpos/crianças os ambientes educacionais – mais precisamente a creche observada neste estudo – formam ou estão querendo formar? Qual a intenção em se educar tais tipos de crianças/corpos? Como esse processo se dá?

    Gostaríamos de salientar que o meio em que a criança está faz parte da educação da mesma, desde o formato de uma sala, um olhar do adulto que está sob sua responsabilidade (neste caso, a professora), os aspectos relacionados ao sono, alimentação, higiene, até os brinquedos e as brincadeiras das crianças, afinal: “O corpo é educado por tudo o que nos envolve, desde um simples olhar até um gesto que o outro transmite, uma vez que esse “simples” gesto pode conter um poder de persuasão imenso, que talvez seja difícil para a palavra expressar (HERMIDA; BEZERRA, 2012, p. 128)”.

    A partir de agora estaremos atentos em fazer um diálogo entre algumas referências e alguns recortes do diário de campo no que diz respeito a interação entre a criança/corpo e: o espaço, o adulto, o brinquedo/brincadeira, as outras crianças – em suma, a educação do corpo da criança. Frente a isso, para alcançarmos o objetivo do presente estudo, fizemos um diálogo entre nosso referencial teórico e trechos do diário de campo – os aspectos empíricos – utilizando categorias que representam os diversos aspectos que fazem parte da educação do corpo da criança. Algumas destas categorias foram estabelecidas por Richter e Vaz (2005) em sua pesquisa, tais como:

    Além de tais categorias, fizemos também a análise utilizando-se de outras que foram criadas a partir das situações relatadas no diário de campo. As categorias são:

Corpo-sono

    Ao tratar da criança e o seu momento de dormir, Richter e Vaz (2005) entendem que trata-se de um encontro: (...) marcado em um terreno pré-figurado no qual a classe deve dormir junta, repetindo o ritmo maquinal que fetichiza os meios, quando a competência em provocar o sono converte a possibilidade de repouso revigorante em um apagamento brusco de corpos, amortecendo-os, colocando-os em silêncio, adormecidos e ausentes (p. 87).

    Tais considerações casa-se bem com situações que encontrei ao chegar a creche, como nos mostra o seguinte recorte do diário de campo: “Ao chegar à creche, me deparei com todas as crianças dormindo. Estavam crianças dormindo no quarto, todas elas dormindo em camas, uma ao lado da outra. Todas as crianças estavam enroladas e vestidas com o uniforme da creche (...) o horário marcado para as crianças acordarem estava para as 14 horas (...)”.

    Percebemos então um lugar específico para as crianças dormirem, com os horários certos para dormirem e acordarem, repetindo o “ritmo maquinal” constantemente. Às vezes ao dar a hora que estava marcada para as crianças acordarem, quando a professoras as acordavam, algumas saiam da cama, porém deitavam no chão, o que demonstra que o sono das crianças era controlado.

    O que isso evidencia também é uma padronização do sono, desconsiderando questões particulares de cada criança, como por exemplo, o tipo de colchão, a roupa que a criança dorme (elas dormiam com a farda da creche, que era uma camiseta e uma bermuda, onde muitas vezes a roupa era maior que as crianças), o tempo, a intensidade da luz, silêncio, o horário. Enfim, particularidades essas importantes no sentido de se ter um sono adequado para a criança.

Corpo-higiene

    Sobre a categoria corpo-higiene, Richter e Vaz (2005) mencionam que trata-se do momento de eliminação da sujidade. Os aspectos que se relacionam a saúde bem como a higiene, são tratados com muita atenção na educação infantil e estão relacionadas intimamente também com: (...) instalações, recursos, mobiliários, formas de organização do espaço e, em especial, a prestação de cuidados com a constituição de sujeitos higiênicos, purificados, moralizados (...) Muito embora a preocupação com uma infância higienizada penetre profundamente nos meandros da rotina, permanece na penumbra todo um outro conjunto de relações sociais (...) (p. 86).

    Fragmentos do diário de campo evidenciam que tais aspectos também estão no cerne da rotina da creche observada: “(...) ao fazerem a fila, a professora levou as crianças para o banheiro para as mesmas fazerem suas necessidades fisiológicas (...) logo após todas as crianças terem feito suas necessidades a professora mandou todos lavarem as mãos, depois pediu novamente para que fizessem uma fila. Após a fila está formada, a professora levou as crianças até o refeitório para lancharem.”

Corpo-alimentação

    Na categoria compreendida/denominada de corpo-alimentação, os aspectos gerais relacionados à alimentação da criança na creche estão em evidência. Englobam os gestos rápidos das professoras no que diz respeito ao servir, recolher, limpar, cortar, distribuir alimentos e, ao mesmo tempo, ingerir algum (RICHTER; VAZ, 2005).

    Nas observações feitas na creche, houve situações que tais aspectos estavam evidentes: “(...) ao chegarem no refeitório, as crianças sentavam nas mesas. Ficavam duas crianças em cada mesa, uma de frente pra outra. O lanche do dia era canja de galinha, a professora passava com uma bandeja e dava um prato a cada criança (...) houve rejeição do lanche por parte das crianças, porém aos poucos com o auxílio da professora, algumas crianças comeram. Após isso, a professora passava recolhendo os pratos e dando a cada criança caneca com água (...)”

    Deste modo, podemos fazer uma reflexão sobre a forma como tais aspectos relacionados à alimentação estão materializados na rotina da creche. Pensando de modo que as crianças conseguem transcender o momento em que ela está simplesmente ingerindo um alimento e saciando sua fome; para ela aquele momento pode ser de brincadeira, bem como uma experiência com a comida, experiência essa que é ressignificada e que vai além do simples movimento mecânico do comer. Mas do modo que são feitas as refeições, possibilitam a criança fazer isso, ir além do simples ato de comer?

    Destacamos também que acontece uma homogeneização do paladar das crianças, visto que sempre são servidas as mesmas comidas a todas as crianças, independente do gosto/paladar individual de cada uma. Neste sentido “[...] às crianças comumente não se pergunta a quantidade que desejam: as professoras é que “montam” o prato a ser degustado pelas crianças [...]” (MEZZAROBA, 2011, p.1).

Corpo-ordem

    Antes de especificar tal categoria, seria relevante apresentar algumas considerações. Em sua pesquisa, Richter e Vaz (2005) fazem uso de uma categoria denominada corpo-parque, que segundo os mesmo é o momento em que as crianças “se soltam” e que “elas ficam mais livres”. Seria também segundo as professores entrevistadas pelos autores, “o momento de observar”. Tal momento seria segundo as professoras, o de “atender”, “ajudar”.

    Não utilizaremos tal categoria em sua essência pelo fato de que na creche não havia um parque especificamente. Porém percebemos elementos na mesma como o observar/vigiar, que podem refletir fatos presenciados nas observações. Para isso a categoria corpo-ordem, caracteriza as estratégias da instituição para ordenar os corpos das crianças, ou seja, o seu brincar e se-movimentar.

    Anteriormente falamos que a creche em que foram feitas as observações não tinha parque. A própria diretora da creche me falou que antes havia um parque, porém devido ao comportamento das crianças, no sentido de ficarem agitadas, correndo, subindo nos brinquedos, etc.; a instituição decidiu tirar o parque, pois tinham receio de alguém se machucar. Ou seja, um protecionismo exacerbado dos adultos em relação às crianças não se sujarem, se machucarem; o que resulta em uma restrição do “se-movimentar”, impedindo da mesma ser plenamente criança.

    Tal acontecimento se encaixa perfeitamente na categoria corpo-ordem, sendo que tal medida foi feita para privar o brincar e se-movimentar e ordenar os corpos das crianças. Os acontecimentos abaixo que foram retirados do diário de campo, são situações que também se encaixam como medidas de controle dos corpos das crianças: “A professora pediu para que fizessem uma fila na qual os menores ficavam na frente e os maiores atrás. Depois, todos na fila, cada um atrás do outro e segurando no ombro do outro, foram para o banheiro (...) após cada um ter feito suas necessidades fisiológicas e lavarem as mãos, a professora mandou novamente formarem uma fila do menor para o maior e foram para o refeitório (...)”.

    Percebemos que em todos os dias sempre que as crianças iam se deslocar de uma parte da creche para a outra (como por exemplo, do quarto para o banheiro), a professora sempre mandava formar uma fila para que fossem até o local estabelecido. Isso nos remete a relacionar tal medida, com as filas de caráter militarista, cujo objetivo é manter e ordenar os corpos.

    Outra situação que pode ser dialogada com a categoria corpo-ordem é quando a professora leva as crianças para brincar em uma área descrita anteriormente, onde há arvores e o chão é de areia e parte desta é calçada com paralelepípedos. A professora deixa que as crianças fiquem apenas na parte com paralelepípedos, devido a parte de areia ter terra, folhas e árvores que pode sujar as crianças. Outro aspecto que merece ser destacado é que a professora fica sentada em uma cadeira observando e vigiando as crianças brincar.

    Podemos relacionar também com esta categoria, os momentos em que as crianças esperam seus responsáveis irem buscá-las na creche ao final do turno. Neste momento, a professora ordena que todas as crianças fiquem sentadas em cadeiras dispostas no corredor da creche, até o momento de irem embora. Qualquer movimento fora da cadeira ou mesmo que incite a criança a se levantar, é repreendido pela professora. Isso não acontecia apenas neste momento, mas também logo após as crianças acordar, antes de tomar banho, bem como antes de irem comer. Ou seja, em qualquer momento elas são obrigadas a se manterem imóveis, e só podem se movimentar quando tem permissão para tal.

    Tais aspectos citados acima, bem como a categoria “corpo ordem” nos levam a pensar sobre o que Zoboli (2012, p.165) menciona: Na escola [assim como em qualquer ambiente educacional] a consciência é reduzida ao corpo estático. O controle através do controle do tempo e do espaço é tão eficaz e imbrica a ele, pois, afinal o sujeito só existe via corpo. [...] Essa imobilização – não movimento do corpo – e as demais técnicas de assujeitamento encontradas na escola acabam internalizando no sujeito uma espécie de inércia que disciplina o indivíduo quanto às formas de ver e interagir com o mundo.

    Ainda no sentido um “corpo ordem”, podemos observar que o movimento – na instituição observada – é um ato de indisciplina, sendo “[...] a imobilidade física funciona como punição, e a liberdade de se movimentar, como prêmio” (ZOBOLI, 2012, p. 171).

Corpo-brincadeira

    “(...) 3 meninas sentadas no chão com revistas e catálogos que vendem produtos cosméticos, roupas, brincos, sapatos, etc. Essas meninas com as revistas, estavam brincando de faz de conta que estavam comprando os produtos que estavam à venda nas revistas e faziam de conta que elas eram as modelos que estavam nas revistas (...) 4 meninos com caixas de fósforo brincando primeiramente de carro, e depois de construir figuras/imagens, equilibrando umas nas outras (...)”.

    As situações acima foram recortes de trechos do diário de campo, no qual estivemos atentos em descrever as interações da criança com os brinquedos/brincadeiras. Para tratar de tal relação criamos a categoria corpo-brincadeira.

    O brincar é um ato humano, o homem enquanto espécie é um ser que brinca – homo ludens. Somos seres complexos que se assumem não tão somente no faber que há em nós, mas também secretamos o mito, a magia e o rito da brincadeira. O brincar e o brinquedo nos reportam a uma dimensão, não somente enquanto crianças, porque o brincar não é exclusivo da criança e sim do homem – que em determinado momento, se experimentou no mundo enquanto criança (ZOBOLI; SILVA, 2013, p. 13).

    O brincar é fundamental na infância. Segundo Maria Angela Barbato Carneiro, (coordenadora do Núcleo de Cultura e Pesquisas do Brincar da PUC-SP), em uma entrevista ao site UOL, menciona que quando as crianças brincam de faz de conta: “Aqui entramos para o mundo da imitação, da representação, da fantasia. Do faz de conta que surge para valer por volta dos dois anos, e não para mais. São os amigos imaginários, as brincadeiras com bonecos e fantoches, os desenhos, o teatrinho. A caixa de sapato vira carro, um lençol vira cabana da selva. A criança vira mãe, médico, caminhoneiro, professor - o que quiser.” Sobre a interação da criança com o brinquedo Santos (2008, p. 65) enfatiza que: O brinquedo supõe uma relação íntima com quem o utiliza e representa certas realidades que permite a criança recriar tudo que existe no seu cotidiano, o brinquedo assume o papel de substituto dos objetos reais.(...), ao contrário do jogo o brinquedo é livre de regras definidas, permite uma construção e desconstrução quase simultânea de modos de brincar, por não existir um sistema de regras que organizem a sua utilização, o brinquedo permite a transcendência do tempo e espaço pela criança.

    Neste sentido, por meio da brincadeira, a criança ressignifica, recria tudo que está em sua volta, e o brinquedo entra no lugar de objetos reais, como por exemplo, no recorte do diário acima, em que descrevemos que uns meninos fazem da caixa de fósforos uns carros.

Corpo-música

    Em meio a rotina das crianças na creche, constantemente deparamos com as mesmas cantando as situações que ocorriam, como nos mostra o trecho do diário de campo abaixo:

    “A professora mandou novamente as crianças formarem uma fila, e as levou para uma área que ficava atrás do refeitório. Durante o caminho, as crianças viram um pato, uma menina começou a cantar e os outros acompanharam: “oi o pato, oi o pato” (...) “se eu fosse um peixinho e soubesse nadar, eu tirava Arthur do fundo do mar” (...)”.

    Situações como as descritas acima, ocorriam com freqüência na creche. As crianças tanto reproduziam as músicas que provavelmente ouviam em seu contexto, como também criavam a partir das ocorrências do seu dia-a-dia/rotina na creche.

Considerações finais

    Fica claro e evidente o papel que a creche tem em relação ao educar da criança, visto que muitas passam metade do seu dia na instituição. Neste sentido, a instituição em um todo, ou seja, da arquitetura, os funcionários, até os brinquedos, participam da educação do corpo da criança. O processo da educação abarca vários aspectos, onde alguns como o sono e a alimentação, por exemplo, não levam em consideração as particularidades de cada criança.

    Evidencia-se também que, os espaços da creche são amplos e que dão muitas possibilidades da criança brincar e se movimentar. Porém devido a algumas medidas de ordem estabelecidas pela instituição as crianças são impedidas de praticar livremente o seu “movimentar-se”, seja por medidas de segurança exagerada (como a medida de tirar o parque da creche), como também medidas de higiene.

    Entendemos que a criança precisa ser considerada criança, onde os adultos, as instituições, devem intervir menos nelas no sentido de privá-las de movimento. Para isso, é preciso incorporar novas práxis que venham superar as velhas práticas que impossibilitam as crianças de realmente serem crianças.

Referências

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